A Bíblia menciona diversas obras que registram patrimônio intelectual, conhecidas como rolos ou livros. Merrill Tenney afirma que há mais de 500 ocorrências das palavras “livros”, “escrita” e “leitura” na Bíblia, desde Gênesis até Apocalipse.1 Uma menção de destaque é o Livro da Vida do Cordeiro (cf. Ap 21:27), um registro importante no julgamento final, pois apresenta os nomes dos salvos. Este artigo busca destacar as referências ao Livro da Vida na Bíblia, focando o que essas ocorrências revelam sobre sua natureza, significado e funções teológicas.2
O Livro da Vida no AT
O Antigo Testamento, com seus 39 livros divididos na Bíblia Hebraica em “Lei”, “Profetas” e “Escritos”, apresenta menos referências ao Livro da Vida do que o Novo Testamento. Contudo, há oito possíveis menções a esse tema: Êxodo 32:32, Salmos 40:7, Salmos 56:8, Salmos 69:28, Salmos 139:16, Isaías 4:3, Daniel 12:1 e Malaquias 3:16.3
No Antigo Testamento, a seção da Lei (tôrâ) contém várias referências ao termo hebraico sefer, que pode ser traduzido como “livro” ou “documento escrito” (Gn 5:1; Êx 32:32, 33; Nm 5:23; Dt 28:58).4 Entre essas menções, Êxodo 32:32 e 33 é a única que alude diretamente ao Livro da Vida, sendo possivelmente a primeira referência a ele no uso do termo sefer. Willem Vangemerem observa que, das 181 ocorrências desse termo no AT, ele geralmente se refere a registros de patrimônio intelectual, como livros, cartas, escrituras, leitura, cultura, termos e história.5 O verso subsequente (Êx 32:33) esclarece o significado: “Então o Senhor disse a Moisés: ‘Riscarei do Meu livro todo aquele que pecar contra Mim.’”6 Isso sugere que o Livro da Vida registra nomes de pessoas às quais Deus aplicou Sua misericórdia e justiça, e que pecadores são “riscados” dele, implicando sua destruição.
Na seção dos Profetas (nevi’im), o termo hebraico kattaab, que é a forma comum do verbo “escrever”, é frequentemente utilizado para se referir a registros administrativos e até às palavras ditas por Deus aos profetas (cf. 1Rs 11:41; Jr 36:4; Êx 24:4; Dt 17:18).7 Em relação ao Livro da Vida, os textos de Isaías 4:3 e Malaquias 3:16 parecem fazer referências específicas. Isaías 4:3 diz: “Os restantes de Sião e os que ficarem em Jerusalém serão chamados santos, isto é, todos os que estão inscritos [katub] em Jerusalém, para a vida.” O termo katub é semelhante ao encontrado no Salmo 69:28, referindo-se à “lista dos justos”. Há um debate sobre esse texto ter ou não uma conotação escatológica. De qualquer forma, o livro mencionado em Isaías 4:3 parece ter a função de registrar aqueles que serão separados “para a vida”, em um contexto de idolatria e pecado.
Malaquias 3:16 diz: “Então os que temiam o Senhor falavam uns aos outros. O Senhor escutou com atenção o que diziam. Havia um memorial escrito [yikkateb sefer zikkarôn] diante Dele para os que temem o Senhor e para os que se lembram do Seu nome.” Esse “escrito” (yikkateb)8 é um documento que assume o papel de um memorial ou recordatório de direitos de herança ou recompensa, enfatizado pelo termo “lembrança” ou “memorial” (zikkarôn).9 Aqueles inscritos nesse memorial receberão um título valioso e distintivo diante de Deus (Ml 3:17, 18).
Na seção dos Escritos (ketuvim), encontramos vários termos hebraicos relacionados à escrita, dentre eles sefer, siprah e katab. O termo siprah é uma forma feminina de sefer,10 ambos significando livro ou documento escrito contendo registros (cf. Jó 19:23; Sl 40:7; 69:28, 139:16; Ec 12:12; Dn 1:4, 12:1). No entanto, entre esses exemplos, os textos dos Salmos 40:7, 56:8, 69:28, 139:16 e Daniel 12:1 parecem sugerir referências ao tema do Livro da Vida. O texto do Salmo 40:7 menciona o “rolo do livro” (sefer bimgillat), que aparenta se referir a um registro das ações do autor. Esse trecho é citado em Hebreus 10:7, relacionado ao pacto davídico.11
O Salmo 69:28 menciona o Livro da Vida (sefer hayyim), com interpretações variadas sobre quem é registrado nesse livro e o seu significado celestial. Allen Ross,12 Susan Gilingham13 e Longman III14 sugerem que esse não é apenas uma lista dos salvos, mas dos vivos. No Salmo 139:16, o termo “livro” (sefer) é usado figurativamente para descrever como Deus conhece os dias de uma pessoa.
Em Daniel 12:1, a palavra usada para “livro” também é sefer, associada à ação de “salvar” aqueles que estão “inscritos” (katub) no livro. Essa passagem não parece estar relacionada ao “Livro da Verdade” de Daniel 10:21, nem aos livros específicos mencionados em 7:10, mas deve ser uma lista dos nomes daqueles que pertencem ao povo de Deus, possivelmente relacionados a uma realidade celestial.
O Livro da Vida no NT
O Novo Testamento aborda o tema do Livro da Vida em diversas passagens (cf. Lc 10:20; Fp 4:3; Hb 10:7; Ap 3:5, 13:8, 17:8, 20:12,15 e 21:27), cada uma delas fornecendo uma perspectiva sobre sua importância e significado.15
Na seção dos Evangelhos, o termo grego engraphō, que significa “registrar” ou “escrever em algo”, é encontrado apenas em Lucas 10:20. Nesse versículo, a expressão “arrolado nos céus” (engegraptai en tois ouranois) sugere uma alusão ao Livro da Vida. Essa expressão estabelece uma conexão com Êxodo 32:32 e Isaías 4:3, em que o termo hebraico katab também significa “escrever, registrar, decretar”, indicando uma semelhança semântica entre ambos.
Na seção das Cartas Paulinas, encontramos a expressão biblō zōēs em Filipenses 4:3. A palavra “livro”, traduzida a partir de biblō, pode significar um documento em forma de rolo, livro ou registro. Paulo parece indicar que os nomes de seus companheiros estão no Livro da Vida, apontando que o modo de vida do indivíduo impacta a inscrição ou não do seu nome no livro. Os inscritos eram cooperadores no evangelho. Na mesma linha, em Hebreus 12:23, o termo “arrolados” (apogegrammenon), derivado de apographō, carrega a noção de uma lista de censo. Esse termo é semelhante ao encontrado em Lucas 10:20, embora tenham raízes diferentes. A ampla realidade aludida nesse texto aponta para a “Jerusalém celestial”.
Na seção apocalíptica do Novo Testamento, as expressões biblō zōēs, biblou tēs zōēs e biblion tēs zōēs referem-se ao Livro da Vida. Em Apocalipse 3:5, o Livro da Vida é mencionado como biblō tēs zōēs, registrando os nomes daqueles que serão vestidos com vestiduras brancas. O termo “apagar” sugere uma conexão com Êxodo 32:32. Em Apocalipse 13:8, o Livro da Vida (biblō tēs zōēs) aparece no contexto do conflito de adoração. Aqueles cujos nomes não estão escritos no Livro da Vida são os que adoram a besta. Novamente, em Apocalipse 17:8, o Livro da Vida reaparece no mesmo contexto. Aqueles cujos nomes não estão no Livro da Vida são descritos como os habitantes da Terra que se maravilharão com a besta. Para Herbert Kiesler,16 a terminologia usada indica que os fiéis adoradores vêm sendo registrados no Livro da Vida desde a fundação do mundo.
Em Apocalipse 20:12, diante de uma cena de julgamento, diversos livros são abertos, incluindo o Livro da Vida. Osborne, Kistemaker e Rollof17 apontam que são abertos dois tipos distintos de livros celestiais para base das sentenças: um com os feitos e erros dos seres humanos e outro, o Livro da Vida, com os nomes dos salvos. Apocalipse 21:27 afirma que nada impuro entrará na Nova Jerusalém, exceto os inscritos no Livro da Vida do Cordeiro. Assim, no Novo Testamento, o Livro da Vida é um registro celestial que serve para distinguir entre ímpios e justos, ao incluir apenas os nomes daqueles que se opõem à falsa adoração e permanecem fiéis a Deus.
Conclusão
Em síntese, o Livro da Vida é descrito na Bíblia como sendo de natureza celestial, ou seja, seus registros são feitos diante do trono de Deus e sob a supervisão divina. Sua menção nas Escrituras e sua relevância no contexto do plano da redenção ressaltam sua importância para o crente e a igreja. No que diz respeito à sua função, o Livro da Vida tem um importante papel soteriológico, pois registra o direito de herança dado por Deus, incluindo o acesso à Cidade Santa, diferenciando-se de outros livros relacionados ao julgamento divino. Ter o nome inscrito no Livro da Vida significa salvação; sua ausência, condenação.
No contexto escatológico, o Livro da Vida exerce um papel crucial, pois aqueles cujos nomes estão nele registrados são reconhecidos como santos e pertencentes a Deus. Esses indivíduos são considerados justos e cooperadores de Deus, demonstrando fidelidade ao recusarem adorar a besta, mesmo sob intensa perseguição. O Livro da Vida registra os nomes dos justos que entrarão na Cidade Santa e documenta episódios significativos de sua vida, testemunhando sua lealdade a Deus. Assim, ele é fundamental no julgamento final, auxiliando os salvos a compreender melhor o caráter de Deus ao lidar com eles desde a fundação do mundo. O estudo sobre quando os nomes são
inscritos ou removidos está aberto a futuras pesquisas.
Nota: Na página seguinte, você encontrará um quadro que apresenta um resumo deste artigo e algumas inferências sobre os conteúdos em sua relação com o Livro da Vida.
Carlos Flávio, professor de Teologia no Unasp, campus Engenheiro Coelho
Kevin Oliveira, pastor em Imperatriz, MA
Referências
1 Merril Tenney (org.), Enciclopédia da Bíblia Cultura Cristã (São Paulo: Cultura Cristã, 2008), v. 2, p. 995.
2 A versão completa deste artigo pode ser lida em: Carlos Flávio Teixeira e Kevin Vinicius Felix, “As Menções ao ‘Livro da Vida’ na Bíblia: Um Estudo Teológico e Introdutório”, Revista de Cultura Teológica 32 (2023), p. 277-301.
3 William Klein, Graig Blomberg e Robert Hubbard, Introduction to Biblical Interpretation (Nashville, TN: Thomas Nelson, 2004), p. 103-109.
4 Francis Brown, Enhanced Brown–Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon (Oxford: Clarendon, 1977), p. 706.
5 Willem A. Vangemerem, Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento (São Paulo: Cultura Cristã, 2011), p. 286, 287.
6 James Swanson, Dictionary of Biblical Languages with Semantic Domains: Hebrew (Oak Harbor: Logos Research Systems, 1997), p. 2627. A palavra para pecado no texto em questão é hata, que tem que ver com praticar um erro e ser culpado pelo ato.
7 Douglas Mangum, Derek Brown, Rachel Klippenstein e Rebekah Hurst (eds.), Lexham Theological Wordbook (Bellingham: Lexham, 2014), p. 507.
8 Swanson, Dictionary of Biblical Languages with Semantic Domains: Hebrew, p. 4180.
9 Swanson, Dictionary of Biblical Languages with Semantic Domains: Hebrew, p. 2355.
10 Daniel Carver, em Lexham Theological Wordbook.
11 Thomas Schreiner, Hebrews (Bellingham: Lexham, 2021), p. 299.
12 Allen Ross, A Commentary on the Psalms 42-89 (Grand Rapids, MI: Kregel Academic & Professional, 2013), p. 488.
13 Susan Gilincham, Psalms Through the Centuries (Chichester: Wiley-Blackwell, 2018), p. 375.
14 Tremper Longman III, Psalms: An Introduction and Commentary (Westmont: InterVarsity, 2014), p. 220.
15 Delbert Burkett, An Introduction to the New Testament and Origins of Christianity (Cambridge: Cambridge University, 2002), p. 19-21.
16 Herbert Kiesler, Christ: Son of Man: Lamb, em Frank Holbrook (ed.), Symposium on Revelation: Exegetical and General Studies (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 1992). v. 7, p. 426.
17 Grant Osborne, Apocalipse: Comentário Exegético (São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 564); Simon Kistemaker, Apocalipse (São Paulo: Cultura Cristã, 2014), p. 498; Jürgen Rollof, Revelation (Minneapolis: Fortress, 1993), p. 158.