EIa ainda não chegara aos sete anos, mas todas as manhãs, enquanto a maioria das crianças de sua idade ainda dormia, já se encontrava na piscina do prédio no qual morava. Ali, sem o comodismo da água aquecida, diariamente nadava cerca de três mil metros.

Certo dia, um vizinho que sempre a observava perguntou-lhe: “Que tal nadar?” E a menina prontamente respondeu: “É bom!” O curioso vizinho resolveu fazer mais uma pergunta: “Isso é prazeroso, é divertido?” Contraindo a face, como quem acabara de provar o sabor de uma fruta ácida, a garota não titubeou: “Não.” Para aquele homem, pareceu estranho uma criança manifestar, precocemente, tanto interesse e vontade de auto-aperfeiçoamento através da prática de um esporte tão exigente de disciplina como a natação. E isso sem achá-lo divertido.

Sem dúvida nenhuma, a grande lição daquele diálogo está por trás das respostas que a menina deu ao seu interlocutor: a capacidade, que muitos já perderam, de abraçar o que é necessário mas nem sempre é prazeroso, pela razão de que isso forma a garantia de uma desejada e promissora recompensa, em busca da qual se vive. Esse processo não é divertido mesmo; entretanto, produz um estado de alma que é superior a qualquer prazer fugaz.

Buscar o reino eterno é buscar o aperfeiçoamento e a recompensa futura. A disciplina que essa busca acarreta não é divertida porque “toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria” (Heb. 12:11). Mas a mesma disciplina que não parece ser motivo de alegria para um observador distraído, para aquele que sabe o que está buscando, pode ser a razão da própria alegria. Não diriam assim os apóstolos do Senhor? Eles que foram injustamente presos e açoitados, mas “se retiraram do Sinédrio, regozijando-se por terem sido considerados dignos de sofrer afrontas por esse Nome” (Atos 5:41).

Justamente porque perseveraram até o fim, certamente apreciaram e aceitaram de bom grado a disciplina que não parecia ser motivo de gozo. A disciplina resultante da procura de um objeto digno proporciona dignidade àquele que o busca. Sendo essa uma boa razão para o regozijo dos discípulos, é também uma boa razão para a nossa alegria.

Entre o prazer e a dor

Os estudiosos do comportamento humano convencionaram dizer que entre o prazer e o sofrimento oscilam os indivíduos num esforço supremo; buscando o primeiro, mas fugindo e renegando o segundo. Prazer é definição para a sensação de agrado, o que é agradável, mas “o prazer mesmo no seu sentido lato, é de definição difícil, sendo mesmo impossível. No sentido escrito é a sensação específica oposta à dor”.1 Isso está em harmonia com o termo latino placere, que embora sem sentido próprio também significa agradar, agradável, etc.

O apóstolo Paulo tinha prazer renegava a dor, porque encontrou um sentido para ela. Assim, o que lhe parecera desagradável veio a ser conseqüência de sua satisfação e de seu prazer (grego eu-dokeo)’. “Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte” (II Cor. 12:10). O prazer daquele que imitava a Jesus, nada tinha em comum com o prazer do Mazoque que os cínicos procuraram lhe atribuir. Desse mesmo prazer (eudokeo) nosso Pai celeste experimentou quando fez a apresentação de Seu Filho, batizado por João Batista no rio Jordão: “Este é Meu Filho amado em quem Me comprazo” (Mat. 3:17: Luc. 3:22; Mat. 17:5).

Todos devemos experimentar um prazer assim, o qual o mundo confuso já não conhece, embebido que está por um prazer eufórico ou sensual, de natureza variante e equivocada. Um prazer que não demora em revelar o seu lado rude, o tédio. E mais, a dor poderá ser a indesejável colheita, segundo a sentença de Schopenhauer: “À medida que conseguimos distanciar-nos da dor, nos aproximamos do tédio e assim reciprocamente.”2

O princípio

Com o reconhecimento da proposta tripartite de Freud, dividindo a mente humana em ego, id e superego, o id inconsciente, encerrando as emoções, o gozo, os instintos primitivos e o “princípio do prazer” como seu poder regente, ganhou como que por convenção tácita o apoio social. Como lembra Pascoal lonata, “a nossa sociedade assumiu como valor principal o hedonismo… O ‘princípio do prazer’ freudiano foi adotado como sentido e significado da vida”.3

Poderia essa sociedade adotar de bom grado e conscientemente valores verdadeiros e positivos, como a verdade e a justiça expressas em atos e ações contrários ao “princípio do prazer”? Dentro do hedonismo de Freud seria impossível, porque “por mais forte que se suponha um ego, jamais ele chegará a integrar todo o consciente”.E para usar as sentenças de Lowen, no prazer, a vontade se perde: e o ego, sem conciliar as duas partes, cede sua hegemonia sobre o corpo ao prazer. Do mesmo modo, o superego com seus valores morais e idéias perde sua força.

O “princípio do prazer” é um caso para séria consideração, pois como significado da vida não é nem mesmo um princípio psicológico, mas psicopatológico. Se ele tem uma certa validade, isso não se aplica aos fatos normais mas somente aos fenômenos patológicos.5

placere latim com o mesmo sentido de agradar nada tinha em comum com o hedoné – prazer sensível e imediato – da primeira escola hedonista, conhecido como volúpia, prazer sensual, um mecanismo falso pelo qual se tentava fugir de toda sensação de dor. O hedonismo moderno, hoje denominado pelos críticos de “cultura das sensações” ou “cultura do prozac”, incorpora as mesmas doutrinas do antigo hedonismo, que ensinava ser o prazer o único sinal ou a única norma do bem, e que a dor era o único sinal ou norma do mal. O humanismo atual vive e ensina a mesma coisa, segundo o jornalista Jurandir Freire Costa: “O indivíduo hoje já nasce recebendo indicações de que não deve sofrer, mas sim buscar o prazer sensível… A idéia de dor e sofrimento foi se tornando marginal… Você é tanto mais autêntico e mais realizado como pessoa, quanto menos sofrer.”6

O filho de Deus segue, noutra direção. Por não aceitar o “princípio do prazer”, ele sabe que contraria a sociedade hedonista atual. E sabe que, por contrariá-la, pode acarretar para si sofrimento. Mas aceita conviver com tal situação. Reconhece que a dor está inserida no seu viver, em conseqüência do seu perseverante relacionamento com Cristo, do mesmo modo que a dor acidental está inserida como conseqüência de alguma causa natural. A dor será recebida sem fuga, porque o cristão fiel é direcionado por um princípio mais compensador que o prazer.

Todos sabemos, por exemplo, que a necessidade de comer ou beber cria em nós um estado de tensão, o qual sendo descarregado através da satisfação produz uma sensação de agrado e bem-estar. Uma sensação assim poderia ser chamada de sensação de prazer, mas “o segredo do prazer está oculto no fenômeno da excitação”7, daí preferirmos defini-la como alegria, que não pode ser ocultada num mero fenômeno excitante, nem revelada numa simples satisfação momentânea: porque na vida cristã ela é transcendente. “Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (I Cor. 10:31).

O prazer, como princípio traz maus resultados: “Os que bebem da fonte do prazer egoísta, estão enganados. Confundem a hilaridade com a força, e uma vez passada a excitação, a inspiração termina, e são deixados entregues ao descontentamento e acabrunhados.”8 Os que estão buscando a vida perfeita escolhem a alegria que não tem gradação com variações infinitas: chara, charan, chairen, chirete, tudo isso é alegria, gozo, júbilo, regozijo: e ainda há o termo charis, que na mesma raiz grega significa graça. Embora não sendo alegria, é favor satisfatório que contribui para a alegria, pois pela graça divina praticamos o ato perfeito. E a alegria, na observação de Aristóteles, é o acompanhamento do ato perfeito.

A alegria deve ser adotada pelo povo de Deus como um dos verdadeiros princípios de vida. Não apenas um princípio antagônico ao “princípio do prazer’ hedonista: mas porque o nosso senhor deseja ver Seus filhos dominados pela alegria, e não simplesmente como caçadores de prazer. “Alegrai-vos sempre no senhor; outra vez digo: alegrai-vos” (Fil. 4:4). Que princípio!

O prazer não resistiria a um confronto com a alegria, em virtude da superioridade desta. “A alegria é tão diferente do prazer como a jóia difere do estojo que a encerra… O prazer é uma satisfação mais material, enquanto que a alegria é mais espiritual; o prazer é mais tumultuoso, a alegria mais profunda; o prazer mais passageiro, a alegria mais permanente; o prazer mais localizado, a alegria mais difusa; o prazer é mais inquieto, a alegria é mais expansiva; o prazer é cansativo, extenuante às vezes, mas a alegria é sempre revigorante, reanimadora. A alegria é um estado… ela vem do interior; o prazer nos é oferecido de fora.”9

Glória de Deus

Deveríamos refletir mais seriamente nestas considerações, sem ficar preocupados com divertimentos. “Que ninguém comece por crer que os divertimentos são essenciais e que o inconsiderado desrespeito pelo Espírito Santo durante horas de prazer egoísta deve ser considerado coisa sem importância. Deus não se deixa escarnecer… Deus não reconhece os caçadores de prazer como Seus seguidores.”10

Ser alegre não significa estar privado de todo gozo ou recreação, pelo contrário, “é privilégio e dever dos cristãos procurar refrigerar o espírito e revigorar o corpo mediante inocente recreação, com o intuito de empregar as energias físicas e mentais para a glória de Deus”.” Não deveriam os pastores, professores e pais caçar a alegria, em favor daqueles que estão sob os seus cuidados?

Esaú foi buscar longe a caça, a fim de preparar um guisado prazeroso para o seu pai. São assim como Esaú os caçadores de prazer. Mas a alegria está perto de nós, tão perto como estava o animal com o qual Jacó preparou a refeição que alegrou Isaque, na ausência do irmão. Se a alegria acompanha o ato perfeito, ela deve estar dentro de nós e sempre em nós. Porque “não é o que está ao nosso redor, mas o que está em nós; não o que temos, mas o que somos, que nos faz realmente felizes… a alegria do cristão é produzida pela consideração das grandes bênçãos que gozamos por sermos filhos de Deus… pela certeza de que temos reconciliação com Deus, a esperança que temos da vida eterna por Cristo, e o prazer de ser uma bênção aos outros”.12

Nossa alegria é produzida pela “consciência de um tesouro. Não é possível sermos tristes e nos lembrarmos dos bens naturais e sobrenaturais que possuímos”.13 Com a consciência de um tesouro. e fazendo tudo para a glória de Deus, a alegria interior aflora até nas dificuldades. “A alegria interior, quando autêntica, promove naturalmente sensibilidade mais apurada, tornando tudo mais fácil e suportável. Até mesmo as dificuldades cotidianas são superadas sem tédio, sem frustração.”14

O prazer na moldura em que foi colocado pelo hedonismo moderno, não serve mais para nós cristãos. Em compensação, resta a alegria resultante de um agradável, embora não divertido viver, mas porque é agradável “viver de modo digno do Senhor, para o Seu inteiro agrado” (Col. 1:10), “mantendo fé e boa consciência” (I Tim. 1:19).

O bom efeito desse viver é alegria; pois “a alegria é o estado normal da consciência em ordem: é a saúde da alma”.15

Referências:

1 Dicionário Enciclopédico Brasileiro Ilustrado, pág. 1.245.

2 Arthur Schopenhauer, Sabedoria da Vida. pág. 51.

3 Paschoal lonata. Prazer Equivale a Felicidade7. Cidade Nova 1/89. pág. 26.

4 Ignace Lepp, Luzes e Trevas da Alma. pág. 32.

5 Paschoal lonata. Op. Cit., pág. 51.

6 Jurandir Freire Costa. Folha de S. Paulo. 15/11/98. Caderno Mais, pág. 6.

7 Paschoal lonata. Op Cit., pág. 27.

8 Ellen G. White. O Melhor da Vida. pág. 152.

9 Henri Pradel. Os Lazeres Meios de Formação, pág. 147.

10 Ellen G. White. O Lar Adventista, pág. 525.

11 ________________. Mensagens aos Jovens, pág. 364.

12 ________________. Nos Lugares Celestiais, pág. 245.

13 Narciso Yrala, Controle Emocional e Cerebral, págs. 51 e 52.

14 H. Lindberg. Jornal de Psicologia, setembro de 1986, pág. 13.

15 Henri Pradel. Op.Cit., pág. 102.

MOZANIEL VIANA DE OLIVEIRA, Secretário ministerial da Associação Pernambucana