Um estudo publicado na revista Cancer em 2020 mostrou que, comparados com o restante da população norte-americana, os adventistas do sétimo dia têm um índice menor de mortalidade de câncer e de todos os outros tipos de doenças.1 Historicamente, a Igreja Adventista do Sétimo Dia é conhecida no mundo por sua preocupação com a área da saúde, e vários estudos têm demonstrado como seu estilo de vida tem contribuído para que os adventistas que o seguem tenham menores índices de problemas físicos, emocionais e sociais.2
Olhando para o começo de sua história, entre 1844 e 1863, percebe-se que não havia uma condição melhor na expectativa de vida entre os adventistas e a sociedade de seu tempo. Analisando o obituário descrito na Revista Adventista da época (1857-1863), nota-se que um pouco mais de um quarto dos adventistas morriam antes dos sete anos de idade, enquanto outro quarto, entre 10 e 29 anos, tinha uma expectativa de vida de aproximadamente 30 anos. Nesse período, a principal causa de morte era de origem pulmonária, bem como tifo, diarreia e outras doenças relacionadas à nutrição e higiene.
Comparando a realidade passada com a atual, o que mudou? Por que os adventistas têm uma expectativa de vida maior e índices menores de doenças? Como foi o desenvolvimento da mensagem de saúde e sua aceitação entre os adventistas do sétimo dia? Qual foi o papel de Ellen White
nesse contexto? O objetivo deste artigo é analisar o desenvolvimento histórico da mensagem de saúde na Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Contexto histórico e cultural
As condições higiênicas da população na América do Norte, na primeira metade do século 19, eram precárias e proporcionavam um terreno fértil para a proliferação
de doenças. A maioria dos procedimentos médicos se baseava em pressupostos errôneos com relação à natureza das doenças. Substâncias hoje consideradas nocivas à saúde, como ópio, calomelano e outros estimulantes, eram comumente usadas para tratar doenças.3 Os hábitos nutricionais eram impróprios para o desenvolvimento de uma boa saúde. Na década de 1830, a dieta norte-americana era baseada principalmente em carne, pão branco, bolos, frituras e alimentos gordurosos.
Os problemas de saúde vivenciados pela população americana, aliados a um modo de vida imoral, levaram muitas pessoas a se envolver em terapias naturais e movimentos de reforma no início do século 19. Os movimentos de temperança defendiam fortemente a redução do consumo de álcool. No entanto, as instituições naturopáticas estavam buscando uma reforma de saúde mais ampla. Os principais pontos defendidos por esses reformadores da saúde diziam respeito à reforma da dieta, à ingestão e ao uso externo de água, aos exercícios, ao descanso e à abstenção de bebidas alcoólicas, chá e café.
José Bates
Entre os pioneiros da Igreja Adventista, José Bates foi o primeiro a adotar uma reforma de saúde. Mesmo antes de aceitar o cristianismo, Bates já havia abandonado o álcool e o tabaco. Após sua conversão, ele organizou uma sociedade de temperança em sua congregação local. Na época de sua aposentadoria, ele havia abandonado o chá e o café e feito mudanças em seus hábitos alimentares.
Bates era o mais saudável entre os líderes adventistas sabatistas. Surpreendentemente, ele nunca tentou impor seu estilo de vida aos outros. Foi somente após as visões de Ellen White que ele começou a defender abertamente a mensagem de saúde.
As visões de Ellen White
Ellen White teve quatro visões específicas sobre a mensagem de saúde. Em suas obras, há muitos outros conceitos importantes sobre o assunto. No entanto, em suas quatro visões, encontra-se o cerne da mensagem adventista sobre saúde.
A primeira visão de Ellen White ocorreu no outono de 1848.4 Os pontos principais da visão estavam relacionados aos efeitos prejudiciais do tabaco, do chá e do café. Em sua visão, o anjo disse que o tabaco é um ídolo e que aqueles que não o abandonassem não poderiam ser selados. Nessa visão, foi estabelecida a base para uma teologia escatológica da saúde, ligando espiritualidade, saúde e preparação para a segunda vinda de Cristo.5 Embora a visão de Ellen White condenasse claramente o uso do tabaco, relacionando-o à mensagem de selamento, o tabaco ainda foi tolerado até 1853.6 Somente em 1855 a igreja tomou um voto e definiu que os membros que não abandonassem esse hábito seriam excluídos.7
A segunda visão de Ellen White ocorreu em 12 de fevereiro de 1854.8 Nessa visão, ela falou sobre adultério na igreja, falta de limpeza corporal adequada entre os guardadores do sábado, necessidade de controle do apetite, linguajar inadequado (palavrões), negligência dos pais em relação aos filhos e casamentos imprudentes da juventude. É importante notar novamente a conexão apresentada entre saúde e espiritualidade. Um bom cristão é uma pessoa temperante.
A terceira visão de Ellen White sobre a reforma de saúde é a mais extensa. Nela, antigos conceitos foram enfatizados e novos aspectos foram apresentados. Ellen White recebeu a visão em 6 de
junho de 1863, em Otsego, Michigan.
Ela foi convidada a liderar um grupo em oração e, enquanto orava, foi levada em visão por 45 minutos.9 Sua visão foi direcionada primariamente para a recuperação da saúde de Tiago White, mas também para a igreja em geral.10 O conteúdo da visão pode ser resumido em dez tópicos:11
Kellogg e o trabalho médico-missionário
Na época da visão de Ellen White sobre a mensagem de saúde, muitos líderes adventistas do sétimo dia não estavam com boa saúde. Por isso, o assunto foi muito importante para eles. Impulsionados pela relevância da reforma de saúde e seu entendimento como parte da mensagem do terceiro anjo,13 os líderes publicaram o The Health Reformer e construíram o Instituto Ocidental de Reforma de Saúde.14 O médico mais renomado que trabalhou nessa instituição foi John H. Kellogg. Ele recebeu o apoio de Tiago e Ellen White em seus estudos médicos e também trabalhou como editor do The Health Reformer. Quando assumiu o controle do instituto, mudou seu nome para Battle Creek Sanitarium.15
Depois de um início pequeno, o sanatório teve um crescimento tão grande que se tornou o líder mundial em tratamentos naturais e uma fonte de treinamento médico para a Igreja Adventista. Ellen White havia declarado que o ministério adventista deveria combinar o ministério de cura com a pregação do evangelho, como Jesus fazia.16 Após a inauguração do novo edifício em 1877, o doutor Kellogg e seus associados abriram a Escola de Higiene, que promovia instrução básica sobre nutrição e higiene para qualquer pessoa interessada no trabalho médico e na divulgação do evangelho. Ele também organizou a Associação Americana de Saúde e Temperança que, em seu ponto de vista, deveria ter todos os adventistas do sétimo dia como membros.17
O doutor Kellogg se tornou um vigoroso defensor da mensagem de saúde. Seu objetivo era preparar todos os obreiros adventistas para que tivessem conhecimento de fisiologia, nutrição e tratamento simples de doenças por meio do uso de hidroterapia, massagem, exercício e reformas dietéticas.18
Porém os esforços do doutor Kellogg para a preparação de obreiros médicos missionários ficaram aquém em um importante aspecto, segundo Ellen White. Kellogg enfatizou mais a parte fisiológica e, na maioria das vezes, negligenciou a conexão com a mensagem do terceiro anjo.
Kellogg tinha uma personalidade forte e dificuldade para delegar responsabilidades e ouvir a opinião de outras pessoas. Sua maneira independente de trabalhar e os problemas entre a obra médica e a evangélica resultaram em uma crise na igreja. Além dos problemas administrativos, o doutor Kellogg teve problemas teológicos com a liderança da igreja. Seu livro The Living Temple tinha ideias panteístas. Se não fosse pela intervenção de Ellen White, ele teria convencido a liderança a publicar o livro na Review and Herald com o objetivo de arrecadar fundos.19 Os conflitos administrativos e teológicos de Kellogg resultaram em sua separação da igreja.
A apostasia alfa
Comentando sobre a apostasia do doutor Kellogg, Ellen White disse que essa era a apostasia alfa e que, no futuro, viria a apostasia ômega. Ela afirmou: “Fui instruída a falar claramente. […] ‘Enfrente-o
com firmeza e sem demora.’ Mas não deve ser enfrentado tirando nossas forças de trabalho do campo para investigar doutrinas e pontos de divergência. Não temos essa investigação a fazer. No livro Living Temple, o alfa das heresias mortais é apresentado. O ômega virá em seguida e será recebido por aqueles que não estão dispostos a dar atenção ao aviso que Deus deu.”20
A história da apostasia de Kellogg fornece as bases para a compreensão das advertências de Ellen White a respeito da apostasia ômega. Alguns pontos na vida e nas suposições teológicas de Kellogg são indicações do que será essa apostasia.
O primeiro ponto enfatizado por Ellen White é a visão espiritualista de Deus.
É interessante notar que, para ela, a compreensão teológica de Kellogg era uma mistura de verdade e erro: “Há nele sentimentos que são inteiramente verdadeiros, mas estão misturados com o erro. As Escrituras são retiradas de seu contexto e usadas para sustentar teorias errôneas.”21
O modo independente de trabalho do doutor Kellogg e a promoção de si mesmo é o segundo perigo da apostasia alfa. “Desde o início da carreira de John Kellogg, Ellen White o aconselhava a alterar certas ações e certos traços de personalidade. Ela o havia aconselhado a ser mais humilde, a estar mais disposto a aceitar conselhos de outros, a cuidar melhor de sua saúde pessoal, a delegar autoridade e a compartilhar os recursos do Sanatório de Battle Creek em vez de usá-los para aumentar continuamente as instalações da instituição.”22
Kellogg aparentemente aceitou os conselhos de Ellen White. Entretanto, ele adotou uma posição de independência em relação aos líderes da igreja e persuadiu muitos a segui-lo. Esse espírito de independência e autopromoção levou ao terceiro elemento da apostasia alfa: a rejeição do Espírito de Profecia. Essa postura é sempre seguida pela rejeição de outros pilares da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
Um quarto ponto está ligado ao modelo de obra médico-missionária propalado por Kellogg. Ele defendia um modelo alinhado com o evangelho social. Para ele, levar a mensagem de saúde e pregar o evangelho significavam ir às ruas e atender às populações que viviam à margem da sociedade. Era “pregar sem palavras”, apenas manifestando o amor na prática. Uma maneira mística de sentir a Deus e promover esse “relacionamento com Deus” aos outros.
Em 1900, Ellen White escreveu um artigo intitulado “The Work For This Time”, orientando sobre os perigos das ideias de Kellogg e como deveria ser realizado o trabalho médico-missionário. Ela apresenta que a obra médico-missionária é um meio de alcançar as pessoas, um meio de abrir portas para a pregação das três mensagens angélicas. O foco tem que estar em preparar um povo para a volta de Jesus, e não em resolver problemas sociais.
Expansão do trabalho médico-missionário
Após a perda das instalações médicas que estavam sob a direção de Kellogg, a igreja abriu uma nova escola de medicina na Califórnia, em Loma Linda, em 1910. Naquela época, a região já tinha um Instituto de Reforma de Saúde e uma escola de treinamento de enfermeiras. A escola de Loma Linda se tornou um centro educacional para o trabalho médico-missionário. A mensagem de saúde avançou para além de Loma Linda. Em muitas partes do mundo, foram construídas clínicas, hospitais e indústrias alimentícias. Em 1922, a Associação Geral organizou um Departamento Médico para coordenar as várias instituições em todo o mundo.
No entanto, a mensagem de saúde ainda não atingiu seu objetivo de ajudar a preparar um povo para encontrar seu Senhor. Ainda existe uma grande obra a ser realizada nessa área. Que a mensagem de saúde seja uma realidade na vida de cada crente, a fim de que seja uma luz a outros. Como Ellen White escreveu: “O Salvador tornava cada ato de cura uma ocasião para implantar princípios divinos na mente e na alma. Esse era o desígnio de Sua obra. Comunicava bênçãos terrestres, para que pudesse inclinar o coração das pessoas ao recebimento do evangelho de Sua graça.”23
Referências
1 Gary E. Fraser, Candace M. Cosgrove, Andrew D. Mashchak, Michael J. Orlich e Sean F. Altekruse, “Lower Rates of Cancer and All-Cause Mortality in an Adventist Cohort Compared with a Us Census Population”, Cancer 126 (2020), p. 1102-1111, disponível em <doi.org/10.1002/cncr.32571>, acesso em 11/5/2023.
2 “Adventist Mortality Study”, Loma Linda University Health, disponível em <adventisthealthstudy.org/studies/adventist-mortality-study>, acesso em 11/5/2023.
3 Dores E. Robinson, Revolução na Saúde: Origem e Desenvolvimento da Obra Médico-Missionária Adventista (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2018), p. 7-16.
4 A data de 1848 para a visão sobre tabaco, chá e café é encontrada no artigo de Tiago White na Review and Herald de 8/11/1870. Citado por Robinson, Revolução na Saúde, p. 50.
5 Ellen G. White, Manuscript Releases: From the Files of the Letters and Manuscripts (Washington, D.C.:
E. G. White Estate, 1981), v. 5, p. 377.
6 Robinson, Revolução na Saúde, p. 46.
7 Ellen G. White, Review and Herald, 4/12/1885.
8 Ellen G. White, Manuscrito 1, 1885.
9 Robinson, Revolução na Saúde, p. 54.
10 Robinson, Revolução na Saúde, p. 54.
11 Ellen G. White, Spiritual Gifts (Washington, D.C.: Review and Herald, 1945), p. 120-152.
12 Em uma lista posterior, Ellen White incluiu dieta adequada e confiança no poder divino.
13 Ellen G. White, Testimony Studies on Diet and
Foods (Payson, AZ: Leaves-of-Autumn Books, 1979), p. 87, 88.
14 Robinson, Revolução na Saúde, p. 109-113.
15 Richard W.Schwarz e Floyd Greenleaf, Portadores de Luz: História da Igreja Adventista do Sétimo Dia (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2009), p. 113.
16 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), v. 4, p. 197.
17 Schwartz e Greenleaf, Portadores de Luz, p. 157.
18 Schwarz e Greenleaf, Portadores de Luz, p. 201.
19 Schwarz e Greenleaf, Portadores de Luz, p. 269, 270.
20 Ellen G. White, Selected Messages from the Writings of Ellen G. White: Significant and Ever-Timely Counsels Gathered from Periodical Articles, Manuscript Statements, and Certain Valuable Pamphlets and Tracts Long out of Print (Washington, D.C.: Review and Herald, 1958), v. 1, p. 200.
21 White, Selected Messages from the Writings of Ellen G. White, v. 1, p. 199.
22 Richard W. Schwarz, John Harvey Kellogg, M.D. (Nashville, TN: Southern Publishing Association, 1970), p. 178.
23 Ellen G. White, A Ciência do Bom Viver (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 10.