Mordomia e missão são temas que perpassam toda a Bíblia, de Gênesis a Apocalipse. Geralmente, onde as Escrituras tratam sobre mordomia, a missão de Deus também é abordada. Isso ocorre por uma simples razão: o objetivo da mordomia é fornecer os recursos humanos e materiais para o cumprimento da missão. Em outras palavras, a mordomia não tem um fim em si mesma, mas existe para fomentar a missão. Desse modo, podemos dizer que “mordomia sem missão é sem propósito; e missão sem mordomia é impossível! Em uma frase, mordomia e missão são tão indissociáveis quanto as duas faces da mesma moeda”.1

Observe, por exemplo, o primeiro texto da Bíblia em que o tema da mordomia é abordado: “E Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sejam fecundos, multipliquem-se, encham a terra e sujeitem-na’” (Gn 1:28). Adão e Eva receberam a bênção da procriação e também a incumbência de serem mordomos da criação. O propósito divino era que Adão gerasse filhos “à sua semelhança, conforme a sua imagem” (Gn 5:3), assim como ele próprio havia sido criado à imagem de Deus (Gn 1:26). O objetivo era que a Terra se enchesse de pessoas que refletissem o caráter divino (Sl 72:19). Isso é missão!2

Essa conexão entre mordomia e missão pode ser vista em diversos textos das Escrituras. Como o espaço não permite explorar o tema mais amplamente, este artigo se deterá em algumas passagens cruciais. Em seguida, abordaremos um exemplo prático no livro de Lucas sobre como a mordomia promove os recursos necessários para o cumprimento da missão.

O ensino de Jesus

Antes de passar à discussão sobre a relação entre mordomia e missão no ministério e ensinos de Jesus, é importante esboçar uma definição de mordomia. Um texto bíblico que sintetiza de maneira magistral a essência da mordomia cristã é Deuteronômio 6:4 e 5, que diz: “Escute, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor.

Portanto, ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e com toda a sua força.” Essa passagem apresenta dois aspectos que são um antídoto infalível contra a idolatria: (1) o reconhecimento de que Deus é o único Senhor e (2) o amor a Deus acima de tudo. Assim, podemos dizer que mordomia cristã é colocar Deus em primeiro lugar na vida, amando-O com todas as forças da alma.

É amar a Deus mais do que se ama qualquer pessoa ou qualquer coisa.

Após definirmos o que é mordomia cristã, veremos alguns textos bíblicos que tratam da relação entre mordomia e missão.

Marcos 12:29-31. Em resposta à pergunta do escriba: “Qual é o principal de todos os mandamentos?” (Mc 12:28), Jesus fez uma interessante conexão com Deuteronômio 6:4 e 5: (1) “Ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração” (v. 30). Isso é mordomia; (2) “Ame o seu próximo como você ama a si mesmo” (Mc 12:31). Isso é missão.

Marcos 10:21, 22. Quando o jovem rico perguntou a Jesus: “Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” (v. 17), a resposta do Mestre foi um eco de Deuteronômio 6:4: “Ninguém é bom, a não ser um, que é Deus” (Mc 10:18). A evidência de que o jovem rico não amava a Deus de todo o coração é que ele não estava disposto a sacrificar suas posses (v. 21, 22). Quanto bem ele teria feito aos pobres ao seu redor se tivesse um coração desprendido!

João 3:16, 17. A linguagem bíblica é de doação.3 Esse texto célebre afirma que Deus entregou Seu Filho unigênito por amor. Com esse ato, Ele tinha um propósito missionário. Enquanto João 3:16 afirma que Deus amou o mundo a ponto de dar Seu único Filho, João 3:17 diz que Deus enviou Seu Filho para salvar o mundo. O Deus que amou é o mesmo que enviou. Enquanto João 3:16 fala da essência da mordomia (amor e doação), João 3:17 fala da essência da missão (salvação). Para salvar, primeiro Deus deu Seu Filho para que os que cressem Nele não perecessem e para que “o mundo fosse salvo por Ele” (Jo 3:17). Portanto, o propósito da mordomia é cumprir a missão. Ao comentar esse texto, Ellen White escreveu: “Demonstrarão vocês, por meio de suas dádivas e ofertas, que não consideram coisa alguma boa demais para entregar Àquele ‘que deu o Seu Filho unigênito’ (Jo 3:16)?”4

1 João 3:16. Enquanto em João 3:16 Deus é o ofertante e Jesus é oferta, em 1 João 3:16 Jesus é o ofertante e Sua vida é a oferta. Em ambos os textos, o propósito da “oferta” é a salvação. Esse conceito é expresso na exortação: “Devemos dar a nossa vida pelos irmãos” (1Jo 3:16). Cristo entregou Sua vida para que sigamos Seu exemplo missionário. Ele deu o exemplo não apenas para ser admirado, mas sobretudo para ser imitado.

2 Coríntios 8:9. Paulo condensou nessa passagem o mesmo pensamento descrito em Filipenses 2:5-11. Ele escreveu sobre a encarnação e o ministério de Jesus usando a linguagem do mundo financeiro. A ação de Jesus nesse texto é exatamente inversa àquela do jovem rico. Se o jovem rico tivesse vendido todos os seus bens para dar aos pobres (Mc 10:21), ele próprio teria se tornado pobre. Em contrapartida, Jesus, sendo rico, tornou-Se pobre. Ele renunciou os tesouros e a glória celestial porque tinha um objetivo claro em mente: “Para que, por meio da pobreza Dele, vocês se tornassem ricos.” A riqueza que Cristo nos oferece é a oportunidade de salvação (1Co 1:4, 5).5

O princípio expresso nas passagens acima pode ser encontrado em outros textos da Bíblia. Em Marcos 10:29, por exemplo, o verdadeiro discípulo é descrito como aquele que está disposto a renunciar tudo por amor a Cristo e pela proclamação do evangelho. Em Filipenses 3:7 e 8, Paulo demonstra que compreendeu isso ao dizer: “Mas o que para mim era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. […] Por causa Dele perdi todas as coisas e as considero como lixo.” Ele investiu todo o seu conhecimento e tudo que tinha na proclamação do evangelho. Em Filipenses 2:17 e 2 Timóteo 4:6, o apóstolo Paulo usou uma linguagem sacrificial ao se referir tanto à sua ação missionária em Filipos quanto à sua morte iminente. Ele buscou imitar o exemplo de Cristo e apelou para que seus ouvintes fizessem o mesmo (1Co 11:1; cf. Rm 12:1). Paulo não considerava que suas posses lhe pertenciam. Esse pensamento foi transmitido aos recém-conversos de tal modo que “ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía” (At 4:32). Todos eles tinham consciência de que havia uma missão a patrocinar. Portanto, a mordomia deve estar a serviço da missão.

Lucas e Atos

De fato, mordomia não é sobre dinheiro. Essa é uma visão muito limitada do que é mordomia. Se uma pessoa pensa que tudo que Deus espera dela são dez por cento de sua renda e outro percentual voluntariamente definido em forma de oferta, ela verdadeiramente não entendeu o que é mordomia. Mordomia cristã é algo muito mais radical: é a entrega completa de si mesmo a Deus. É amar a Deus de todo o coração, a ponto de não considerar nada demasiadamente caro (tempo, talentos, bens, etc.) para depor no altar do sacrifício.

Porém, uma vez que o dinheiro vem como resultado do tempo, da saúde e dos talentos que investimos em nossas atividades remuneradas, entregá-lo na forma de dízimos e ofertas representa a entrega de nossa própria vida a Deus. Por essa razão, falar de dinheiro é uma das tarefas mais espirituais que podemos realizar em nossas igrejas. Não é de surpreender que Jesus e os apóstolos tenham falado tanto sobre os bens materiais.

Entre os escritores do Novo Testamento, Lucas se destaca como o autor que mais utilizou termos do mundo financeiro e monetário.6 Várias parábolas de Jesus contadas no evangelho de Lucas abordam a questão do uso do dinheiro. Klyne Snodgrass comenta que, em maior ou menor grau, todas as parábolas de Jesus são sobre discipulado.7 Algumas delas incluem uma discussão sobre o uso das posses materiais porque “a primeira questão do discipulado é o que fazer com o dinheiro”.8 Snodgrass acrescenta que “um pastor que se abstém de pregar sobre mordomia cristã está enfraquecendo o ensino de Jesus. […] Decisões econômicas não são fáceis, mas a igreja deve não apenas liderar o caminho, mas demonstrar pelo uso do dinheiro a realidade do evangelho”.9

O interesse de Lucas em abordar questões financeiras em seu evangelho se justifica pelo fato de que seu segundo volume (Atos) deixará claro que existe uma obra missionária a ser patrocinada. Em Lucas 10 a 18, ele reuniu um grupo de sete parábolas contadas por Jesus com o intuito de persuadir os ricos a se arrependerem de sua cobiça e avareza. São elas: do bom samaritano (10:30-35); do rico insensato (12:16-20); da grande ceia (14:16-24); do filho pródigo (15:11-32); do mordomo infiel (16:1-8); do rico e o mendigo (16:19-31); e do fariseu e o publicano (18:10-14).10A parábola do bom samaritano mostra que “próximo” é aquele que está disposto a desembolsar dinheiro em favor dos outros. As parábolas do rico insensato e da grande ceia evidenciam que a preocupação excessiva com coisas imediatas leva ao perigo de perder de vista as coisas eternas. A parábola do filho pródigo é um alerta contra o consumismo e o gasto desordenado de dinheiro, atitudes que levam à ruína financeira e à miséria. As parábolas do mordomo infiel e do rico e o mendigo trazem à superfície a ideia de que a maneira como usamos os recursos financeiros revela o nosso caráter e demonstra se estamos nos preparando devidamente para a vida eterna. Finalmente, a parábola do fariseu e o publicano nos ensina que não importa quanto dízimo e ofertas depositemos na tesouraria da igreja, nossa fidelidade financeira não nos recomenda diante de Deus. Obviamente, isso não significa que Deus desvaloriza o ato de devolvermos os dízimos e as ofertas, mas que Ele atenta mais para a motivação do que para o ato em si.

A grosso modo, esse grupo de parábolas transmite quatro ensinos básicos: 1. A vida não consiste dos bens que possuímos (Lc 12:15). A vida – a maior posse que temos – é uma dádiva divina; 2. O apego ao dinheiro é condenado como idolatria (Lc 16:31); 3. O uso de nossos bens deve ser norteado pelos valores do Reino e isso é um teste de discipulado; 4. Jesus nunca condenou o dinheiro em si, mas o apego a ele.

Conclusão

Deus confiou à igreja a responsabilidade
de gerir os recursos para o cumprimento da missão de proclamar a mensagem de salvação ao mundo. Como escreveu
Christopher Wright: “Não é tanto que Deus tem uma missão para Sua igreja no mundo, mas que Deus tem uma igreja para Sua missão no mundo. A missão não foi feita para a igreja; a igreja foi feita para a missão – a missão de Deus.”11 Para o cumprimento dessa missão, são necessários recursos humanos e materiais: tempo, talentos, saúde, relacionamentos, bens, etc.Várias vezes em seus escritos, Ellen White também demonstrou sua visão de que mordomia e missão são indissociáveis. Ela enfatizou que, “se aqueles a quem o dinheiro de Deus foi confiado forem fiéis em trazer à tesouraria do Senhor os meios a eles emprestados, Seu trabalho experimentará rápido avanço. Muitas pessoas serão trazidas à causa da verdade, e o dia da vinda de Cristo será apressado”.12 Ela também escreveu: “Dinheiro, tempo, influência – todos os dons que receberam das mãos de Deus – só serão por eles apreciados quando usados como meio de fazer avançar a obra evangélica.”13Deus espera que sejamos mordomos fiéis e missionários zelosos. Nossa vida como um todo – o que temos e o que somos – deve ser usado para o avanço do reino de Deus.

Referências

Adenilton T. Aguiar, “Mordomia e Missão: Uma Visão Cristocêntrica”, em Práxis Teológica 18 (2022), p. 1557.

2 Adenilton T. Aguiar, “‘You Must Prophesy Again’: The Mission of God’s People in Revelation 10–14” (tese de doutorado, Andrews University, 2022), p. 73, 74.

3 Adenilton T. Aguiar, A Entrega Perfeita: Lições da Fidelidade de Cristo (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2019), p. 24-36.

4 Ellen G. White, Conselhos Sobre Mordomia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 15.

5 David E. Garland, The New American Commentary – 2 Corinthians: An Exegetical and Theological Exposition of Holy Scripture (Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1999), v. 29, p. 378.

6 A ocorrência desses termos em Lucas (evangelho e Atos) representa basicamente o dobro em relação a Paulo (sem contar Hebreus), o triplo em relação a João (evangelho, cartas e Apocalipse) e praticamente empata com os evangelhos de Mateus, Marcos e João juntos. Porém, enquanto Lucas e Atos têm 52 capítulos, Mateus, Marcos e João têm juntos 65 capítulos. A lista de termos financeiros e monetários usados por Lucas inclui, mas não se limita a, chrema (dinheiro), argyrion (prata), chrysos (ouro), denarion (denário), drachme (dracma), assarion (asse), lepton (pequena moeda), mna (mina), plouteo (tornar-se rico), plousios (rico), ploutos (riqueza), euporia (prosperidade), mamonas (riqueza), hysterema (pobreza), penichros (pobre), endees (necessitado), ptochos (pobre), ktaomai (adquirir), peripoieo (comprar), prasso (cobrar), poleo (vender), piprasko (vender) agorazo (comprar), oneomai (comprar), prosdapanao (gastar) apodidomi (pagar), kerdaino (receber salário), prosergazomai (ter rendimento) ta agatha (bens), ta hyparchonta (bens), bios (bens), ergasia (lucro), pragmateuomai (negociar), diapragmateuomai (ter rendimento de investimentos), ergazomai (trabalhar), meros (parte de uma herança; ou profissão), porfyropolis (vendedor), agora (mercado público), daneizo (emprestar dinheiro), danistes (credor), tokos (juro), trapeza (banco), didomi (depositar), airo (sacar), etc. Alguns desses termos são usados apenas por Lucas: mna, euporia, penichros, endees, oneomai, prosdapanao, prosergazomai, pragmateuomai, diapragmateuomai, porfyropolis, danistes.

7 Klyne R. Snodgrass, Stories with Intent: A Comprehensive Guide to the Parables of Jesus (Grand Rapids, MI; Cambridge, UK: William B. Eerdmans Publishing Company, 2008), p. 327.

8 Snodgrass, Stories with Intent: A Comprehensive Guide to the Parables of Jesus, p. 389. Snodgrass comenta que quase todos os capítulos de Lucas e Atos têm algo a dizer sobre recursos materiais.

9 Snodgrass, Stories with Intent: A Comprehensive Guide to the Parables of Jesus, p. 418.

10 John A. Szulkalski, Tormented in Hades: The Rich man and Lazarus (Lk 16:19–31) and other Lukan Parables for Persuading the Rich to Repentance (Eugene: Wipf and Stock: 2013).

11 Christopher J. H. Wright, The Mission of God: Unlocking the Bible’s Grand Narrative (Downers Grove, IL: IVP Academic: An Imprint of InterVarsity Press, 2006), p. 62.

12 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), v. 9, p. 48.

13 Ellen G. White, E Recebereis Poder (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1999), p. 335.