Para viver os princípios éticos da Bíblia o cristão precisa se posicionar obrigatoriamente contra a ética relativista

O século 20 começou com um otimismo generalizado na capacidade do homem para construir um mundo melhor. Esse sentimento caracterizava a sociedade moderna. Acreditava-se que a razão seria o instrumento que realizaria a maravilhosa façanha de construir um mundo em que os seres humanos pudessem alcançar a felicidade e viver em harmonia perpétua. Conforme transcorria o século, ficava cada vez mais evidente a incapacidade da razão de construir o ideal de modernidade e de uma sociedade de paz e harmonia.1 Duas guerras mundiais foram golpes devastadores contra a modernidade. Por meio da razão, o homem havia alcançado o ápice da ciência e tecnologia, mas também se viu no limiar do inferno de um holocausto nuclear. A razão tinha dado à humanidade extraordinárias conquistas na ciência, mas essas conquistas, longe de levá-la ao ideal da sociedade perfeita, voltaram-se contra o próprio homem.

Hoje, um sentimento de decepção abala o coração da humanidade. Ele é uma resposta quase exclusivamente emocional aos ideais frustrados da modernidade. Tal condição molda o que tem sido chamado de sociedade pós-moderna, o contexto em que vivemos, com suas grandezas e misérias. Vejamos algumas das características mais notáveis da pós-modernidade.

Supremacia do sentimentalismo midiático. Em nossa sociedade, o ideal racionalista fundamentado no princípio cartesiano “Penso, logo existo” tem sido substituído por outro que poderíamos chamar de: “Sinto, logo existo”. A preponderância dos meios de comunicação é esmagadora, e as multidões são atraídas para um universo virtual de imagens que emocionam, aterrorizam, fazem rir e chorar. Parece que somente o que toca as fibras da emoção é digno de ser seguido. A reflexão e a análise das ideias têm sido relegadas ao ostracismo midiático.2 Essas sucessões de experiências e emoções superficiais produzem uma sociedade superficial. Não importa tanto “ser” compassivo como “parecer” compassivo. Essa série de apelações superficiais e emocionais destroem qualquer compromisso real e altruísta pelo bem-estar do próximo e da sociedade em geral. É o que Lipovetsky tem classificado como a moral sentimental midiática.3

Ética relativista e estética. Na sociedade pós-moderna, não há lugar para valores absolutos. Cada pessoa constrói seu próprio sistema de valores. Bom e mau dependem de cada ser humano. Esse relativismo inclusivo tem se estendido até as artes, configurando uma espécie de relativismo estético. Mario Vargas Llosa assim descreveu esse cenário: “A liberdade que as artes plásticas têm adquirido consiste em que tudo pode ser arte e nada o é. Que toda arte pode ser bela ou feia, mas não existe maneira de saber. Não temos o ‘cânon’ que anteriormente existia e que nos permitia diferenciar o excelente do regular e do execrável: hoje tudo pode ser excelente ou execrável, ao gosto do cliente.”4

Um mundo sem passado. José Ortega y Gasset dizia que a principal diferença entre o ser humano e o animal é que o ser humano tem a capacidade de lembrar, ou seja, tem memória poderosa, que registra suas ações, boas ou más, enquanto o animal, geralmente, enfrenta cada dia como se fosse o primeiro de sua existência, o que torna impossível aprender com seus erros e consolidar seus sucessos.5 Deixando de lado a pressuposição evolucionista que fundamenta essa declaração, não há dúvida de que a história e seus protagonistas exercem grande influência sobre a civilização moderna, o que somos, como vivemos e em que acreditamos. A própria civilização não teria sido possível sem os esforços de inúmeras gerações que contribuíram para a arquitetura e cultura atuais. Entretanto, essa convicção de sermos herdeiros de uma longa e penosa conquista cultural que se estende por séculos está ausente na mentalidade pós-moderna. O ser humano do século 21 tem à sua disposição os maiores avanços tecnológicos da história, desfruta da sociedade mais opulenta que o mundo já conheceu e não tem a menor ideia de quanto custou essa conquista em termos geracionais. Ele parece interessado somente no aqui e no agora.

A constatação do pouco interesse demonstrado pelos pós-modernos nas questões sociais, políticas e tecnológicas, nos leva a entender a atitude arrogante das crianças que querem usufruir de todos os direitos possíveis sem ter a responsabilidade de se comprometer com os deveres mais básicos de seu ambiente e com as gerações futuras.

Fragmentação e tribalismo. Um dos poemas mais famosos de Cesar Vallejo é “Masa” [Massa],6 em que ele descreve a grande força que a humanidade teria se ficasse unida em favor de um objetivo comum. Seus versos falam de um combatente morto no fim de uma batalha e alguns dos seus companheiros implorando que ele não morresse. Somente quando todos se uniram, e gritaram contra a morte, o corpo morto reviveu, levantou-se e começou a andar. Esse poema, que exalta a solidariedade e a fraternidade, é um exemplo das grandes ideias modeladoras da modernidade: a utopia de uma sociedade perfeita, sem a luta das classes sociais, sem violência nem conflito.

O pós-modernismo baniu o ideal da sociedade perfeita e apresentou em seu lugar a realidade de uma sociedade fragmentada, diversificada e questionadora. Isso é ainda mais evidente quando olhamos para o fenômeno das tribos urbanas: grupos de indivíduos que reivindicam um estilo de vida próprio, uma forma diferente de se vestir, preferências musicais que os unem e têm seus próprios ideais políticos e éticos. Punks, góticos, emos, hippies e satanistas são alguns desses grupos, que caracterizam a paisagem social das nossas agitadas cidades pós-modernas.

Conformidade com o superficial. Estamos tão acostumados com os confortos da vida moderna que não valorizamos a água potável que chega à nossa casa, o chuveiro para se tomar um banho quente, o fogão a gás que nos livra de precisar cortar lenha ou os carros que nos permitem viajar grandes distâncias em pouco tempo, algo impossível antes. Ainda poderíamos mencionar muitos aspectos de nossa vida que foram facilitados pelo rápido avanço da tecnologia.

Contudo, esses benefícios têm causado um efeito colateral pernicioso: um desdém generalizado quanto ao desenvolvimento da capacidade de lutar para conquistar valores morais e superar desafios intelectuais e artísticos. Testemunhamos o predomínio de uma geração que não está disposta a se esforçar e tem horror ao sacrifício; entretanto, na vida, há muitos propósitos desejáveis que exigem enorme sacrifício pessoal. Por exemplo, a construção de relações saudáveis no casamento demanda grande dose de perseverança e comprometimento, mas o ser humano pós-moderno prefere não investir esforço nessa direção, então é superficial na construção e manutenção de seus vínculos pessoais e familiares. O cultivar do intelecto e o refinamento do prazer estético também exigem considerável esforço, porém a sociedade pós-moderna está contente com o superficial e o “light”.

Os cristãos frente à sociedade pós-moderna

Quando o cristão vive os princípios éticos da Bíblia, se coloca obrigatoriamente contra a ética pós-moderna fundamentada no relativismo moral. Não que o cristão busque essa confrontação, mas, em realidade, ela é o resultado natural dos paradigmas opostos sobre os quais se constituem a pós-modernidade e a cristandade.

Qual é o papel dos cristãos nessa sociedade? Em que podemos contribuir numa sociedade que está estabelecida sobre os fundamentos frágeis do relativismo moral? Alguns poderiam pensar que o melhor seria nos retirarmos definitivamente do mundo e manter uma atitude distante e indiferente diante do destino da sociedade. No entanto, confrontando esse pensamento, temos as palavras de Cristo: “Vós sois o sal da Terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens” (Mt 5:13).

Assim como o sal é necessário para evitar que os alimentos se estraguem, em uma sociedade que se deteriora dia a dia são necessários esforços para impedir seu apodrecimento. Logicamente, existem instituições que ajudam na proteção social, como o Estado (com seu poder para formular e fazer cumprir as leis) e a família7. No entanto, voltando ao exemplo do sal, ele só é efetivo se mantiver sua propriedade de salgar. De igual modo, o cristão só pode ser o agente que evita a decomposição da sociedade na medida em que é um genuíno cristão e vive à altura das exigências de sua profissão de fé. Ou seja, o cristão, para ser efetivo, deve manter a semelhança com Cristo, da mesma forma que o sal deve conservar intacta sua capacidade de salgar.

Ellen G. White disse: “Os seguidores de Cristo devem se tornar semelhantes a Ele – pela graça de Deus devem formar caráter em harmonia com os princípios de Sua santa lei. Isso é santificação bíblica.”8 Nesse sentido, a maior contribuição que o cristianismo pode dar à sociedade é apresentar um caminho alternativo ao do pós-modernismo relativista. Cabe aos cristãos ser a luz de um mundo mergulhado na obscuridade moral e espiritual. Jesus disse que essa luz são as “boas obras”. Parece que essa é “uma expressão geral que abrange tudo o que o cristão diz e faz, porque ele é cristão. Ela significa qualquer manifestação externa e visível de sua fé cristã”.9

O cristão verdadeiro é um embaixador de uma sociedade superior, conduz-se nessa sociedade terrena vivendo os valores de sua cidadania celestial e, ao fazê-lo, torna-se um farol de esperança para um mundo melhor. Por isso, Jesus afirmou: “Vós sois a luz do mundo”. Entretanto, a luz do cristão não é uma luz própria, é a que procede de uma fonte superior. Assim como a lua reflete a luz do Sol, o verdadeiro cristão reflete a luz de Jesus, que também declarou: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8:12). Por isso, a missão do cristão não é apenas iluminar, é também levar outras pessoas a se colocarem em tal harmonia com Cristo que possam refletir sua luz imarcescível.

É dessa maneira que podemos promover uma revolução na sociedade: a revolução do amor, do perdão e da verdade. A verdadeira essência da mensagem cristã é mostrar que o estabelecimento do reino de Deus começa por uma mudança real no coração de cada um de nós.

Referências

  • 1 Gianni Vattimo, El fin de la modernidad: Nihilismo y hermenéutica en la cultura posmoderna (Barcelona: Editorial Gedisa, 1987), p. 10.
  • 2 Daniel Bell, Las contradicciones culturales del capitalismo (Azcapotzalco: Editorial Patria, 1989), p. 110.
  • 3 Gilles Lipovetsky, El crepúsculo del deber – La ética indolora de los nuevos tiempos democráticos (Barcelona: Editorial Anagrama, 1994), p. 138.
  • 4 Mario Vargas Llosa e Gilles Lipovetsky, “Alta cultura o cultura de masas?”, Letras libres, nº 130, jul. 2012, p. 10-16.
  • 5 José Ortega y Gasset, La rebelión de las masas (Santiago: Editorial Andrés Bello, 1996), p. 45.
  • 6 César Vallejo, España, aparta de mí este cáliz, edição comentada (Madrid: Gráficas Mar-Car, 1937), p. 141.
  • 7 John Stott, Contracultura cristiana: El mensaje del Sermón del Monte (Illinois: Ediciones Certeza, 1991), p. 66.
  • 8 Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 469.
  • 9 John Stott, p. 67.