Como abordar o Apocalipse em tempos de ansiedade

Antes mesmo da Covid-19, o mundo já enfrentava uma crise de esperança. Com a pandemia, a humanidade constatou que, realmente, muitas coisas fogem ao seu controle. A incerteza – impressão de que algo deu errado no mundo – tem provocado um medo existencial generalizado.
Apenas 6% das pessoas nos Estados Unidos, 4% na Grã-Bretanha e 3% na França consideram que o mundo está melhorando.1
Essa crise existencial deve, portanto, ter um impacto significativo na maneira como a mensagem do Apocalipse é pregada. A perspectiva escatológica constitui um recurso importante para atravessar este momento de incerteza, pois responde às questões fundamentais levantadas pelas crises.

Pensamento escatológico contemporâneo
A cultura secular, os filmes, a televisão, os jogos, as histórias em quadrinhos e a literatura têm interesse no fim do mundo. A possibilidade do fim não é apenas discutida, mas também prevista. Depois de Hiroshima, a ameaça nuclear trouxe ansiedade ao nosso subconsciente, e ameaças existenciais, como o medo de mudanças climáticas, são realidades atuais.2 Apesar dos sinais de alerta, não estamos mudando radicalmente nosso estilo de vida. Daí a recente advertência de que a vida humana “está em perigo porque não é mais amada, reconhecida e aceita”.3
A polarização e a fragmentação da sociedade – marcas do espírito de nossa época – representam riscos adicionais ao nosso planeta. As convulsões sociais, a injustiça social e o terrorismo internacional são apenas algumas das expressões mais visíveis dessa polarização. Apesar do progresso científico e
tecnológico, nossa era é esmagada por uma perda de confiança, fortemente alimentada pelas mídias sociais. As instituições que antes mantinham a sociedade unida agora estão debilitadas e até mesmo sendo ridicularizadas.
Ainda que cada época tenha seu lado sombrio e suas patologias, a nossa parece tão débil que tememos pela existência da própria humanidade. Em uma era de notícias falsas e manipulação, as pessoas estão famintas por autenticidade, solidariedade e justiça. Movidos pela necessidade de imperativos
morais, ficamos chocados com o mal que o próprio ser humano consegue causar. “Ironicamente, vivemos em um Universo no qual estamos no comando; porém, tudo o que vemos no horizonte é o nosso fim. Isso é distopia.”4
Em uma época marcada pela distopia, a pregação do evangelho deve ser realizada de maneira diferente da que era feita no passado, quando havia otimismo e esperança de progresso. O evangelho deve, antes de tudo, nos conscientizar de que “existe um ‘quadro geral’ na vida – não apenas uma série de
observações desconexas”.5 Deve nos lembrar constantemente do panorama cósmico em que a cultura da vida supera o mal.6 E, acima de tudo, deve nos assegurar que existe uma conexão entre este mundo e o vindouro, no qual temos um lugar assegurado pela provisão do próprio Deus.


Esperança cristã
A esperança cristã não é uma ilusão ou um otimismo cego; é em vez disso, fundamentada na fidelidade do Criador, que age na história humana e não permite que o mal tenha a palavra final. Ele nunca desistiu de nós, apesar da nossa rebelião. Pelo contrário, estabeleceu um plano de resgate da humanidade
caída. Esse é o evangelho, as “boas-novas” de salvação.

O ponto focal do grande plano salvífico de Deus é a cruz. É por isso que qualquer discussão sobre esperança precisa estar centralizada na morte e ressurreição de Cristo – a base de tudo aquilo que o cristianismo tem a oferecer para um mundo imerso em desesperança. A ressurreição de Cristo significa que a morte foi derrotada e o futuro está assegurado. Note que não é o progresso social ou econômico a base da esperança do cristão, mas o próprio Deus que, por meio de Cristo, uniu-Se à humanidade com laços que nunca mais poderão ser rompidos.

O gênero apocalíptico reúne várias visões reveladoras (Dn 8:19; Ap 1:11) recebidas pelos profetas por intermédio de mensageiros celestiais. No entanto, nossas interpretações dessas visões nunca devem ofuscar a Fonte. O próprio Deus é o tema principal desses livros proféticos. O fato de que Ele, como Criador, age na história humana – de acordo com o plano definido para nossa restauração – é prova de Sua fidelidade. Não há prova melhor do que esta: Ele “nos amou e nos deu eterna consolação e boa esperança, pela graça” (2Ts 2:16).

Portanto, a abordagem das profecias apocalípticas deve estar centrada em Cristo, não na besta ou nas pragas, porque a ênfase principal desses escritos é o triunfo dos propósitos divinos, não a agenda enganosa das forças das trevas. Quando as forças do mal são desmascaradas, elas mostram a nítida diferença entre o caráter Daquele que é o Autor da vida – “a Fiel Testemunha”, o “Cordeiro que parecia que tinha sido morto” (Ap 1:5; 5:6) – e aquele que está por trás de todo o mal: a “antiga serpente, […] o sedutor de todo o mundo” (Ap 12:9).

Cosmovisão distorcida

Todos os seres humanos vivem em um “imaginário social”, composto pelas opiniões e práticas adquiridas da família, da comunidade e da sociedade em geral. Essas ideias e práticas estão profundamente arraigadas em nosso ser e formam nossa visão de mundo. A atual distopia na sociedade ocidental revela quão vulnerável é a cosmovisão antropocêntrica e secular, enraizada no individualismo e no instrumentalismo (uma mentalidade que mede o sucesso por meio da eficiência máxima).7 Evidentemente, se ignorarmos a existência de Deus e de uma ordem moral transcendente, seremos forçados a crer que a humanidade existe por conta própria e vive apenas para si mesma.

O ensino das profecias é um recurso valioso para uma geração que busca uma alternativa significativa para esse cenário sem esperança. Ele retrata a realidade por meio de uma teologia de duas cidades, Babilônia e Jerusalém, que incorporam dois sistemas de pensamento radicalmente diferentes e duas perspectivas diferentes da vida humana (Dn 1:1; Ap 17; 21; 22). Esses dois sistemas têm como base diferentes conjuntos de valores: sacrifício e serviço versus violência e despotismo.

A teologia apocalíptica implica que a humanidade está aprisionada no conflito entre essas duas cosmovisões, por trás das quais estão duas forças: a de “Alguém que estava sentado no trono” (Ap 4:2; cf. Dn 7:9) e daquele que resiste ao plano de Deus pela violência e engano (Ap 12:9; cf. Dn 10:13). O motivo do conflito cósmico, centrado na questão do poder e da lealdade humana, fornece uma estrutura fundamental para a compreensão da realidade.8 Em nossa época de valores distorcidos, notícias falsas e manipulação, uma revelação autêntica sobre o verdadeiro caráter de Deus, em contraste com o caráter enganador da humanidade, é de extrema importância.

Dimensões práticas da esperança

Daniel e Apocalipse revelam não apenas quem é Deus e quais são Suas intenções na história humana (comunicadas por meio das profecias), mas revelam também quem somos e como devemos viver. Deus é revelado na literatura apocalíptica como Aquele que ama a vida e não permitirá que ela seja extinta. É por isso que a teologia apocalíptica aborda intensamente o problema do mal e do sofrimento.9

A humanidade não é percebida como a criação de um governante cósmico indiferente ou envolvido parcialmente, mas como digna do amor e autossacrifício do próprio Criador – uma criação cuja restauração já está em andamento. O gênero apocalíptico se interessa na resposta da humanidade à obra divina de restauração. É por isso que, no coração do Apocalipse, encontramos o chamado para que “temam a Deus e deem glória a Ele” (Ap 14:7).

Se pregada de modo fundamentado e adequado, a mensagem apocalíptica tem grande possibilidade de moldar a cosmovisão dos cristãos e estimular seu compromisso, porque chama atenção para várias dimensões de nossa realidade e para o trabalho incansável de Deus nos bastidores. No entanto, precisa ser pregada de modo que a vida seja validada, em oposição ao terror e à ameaça. Deve ser pregada para que a noção de esperança substitua o desespero, e Deus triunfe sobre o caos provocado pelas forças da morte. Nesta era de distopia, enquanto as calamidades ocorrem ao nosso redor, o evangelho deve ser ouvido como o “evangelho do reino” (Mt 24:14), que gerará a esperança viva tão necessária neste mundo instável.

O fim prometido

O mundo está cheio de problemas, aparentemente insolúveis, que alimentam o sentimento universal de desesperança. Por outro lado, a mensagem apocalíptica bíblica oferece uma solução ampla e definitiva. Embora a solução esteja fundamentada na morte e ressurreição de Cristo, alcança seu cumprimento final na vinda do reino de Deus em sua plenitude. Por essa razão, a pedra cortada “sem auxílio de mãos humanas” em Daniel 2:34 é uma “pedra de esperança”,10 e a cidade de Apocalipse 21:9 a 22:5 é a materialização da novidade trazida pela obra de restauração de Deus.

A morte e ressurreição de Jesus é o evento fundamental a partir do qual a obra de uma nova criação divina iniciou. Deus “Se fez carne e habitou entre nós” temporariamente (Jo 1:14). No fim da história humana, no entanto, Ele habitará conosco permanentemente, e a humanidade redimida será o Seu povo (Ap 21:3). Em um mundo em que a salvação por intermédio de obras humanas é uma impossibilidade, o evangelho trata da restauração por meio da obra do próprio Deus. O medo existencial é substituído pela esperança existencial – e a cultura do terror e da morte é substituída pela cultura da vida.

A literatura apocalíptica bíblica costuma ser pregada como uma bola de cristal cristã para ler o futuro. O valor das visões proféticas não é comumente questionado, mas nessa época de ansiedade, a mensagem apocalíptica deveria ser ensinada e pregada como uma literatura que inspira esperança. Isso requer uma abordagem cristocêntrica e atenção especial aos motivos práticos da promessa de redenção oferecida pelo Céu. As profecias apocalípticas serão ouvidas com maior nitidez se apresentadas de maneira que ecoem às necessidades existenciais de nossa época. Mantenha Jesus, Seu amor e Sua segunda vinda diante das pessoas o tempo todo. E lembre-se: “No amor não existe medo; pelo contrário, o perfeito amor lança fora o medo” (1Jo 4:18).

Referências

1 Ver Max Roser, “Most of us are wrong about how the world has changed (especially those who are pessimistic about the future),” Our World in Data, 27/7/2018, http://link.cpb.com.br/db8d7d.

2 Philip Jenkins, Climate, Catastrophe, and Faith: How Changes in Climate Drive Religious Upheaval (Oxford: Oxford University Press, 2021).

3 Jürgen Moltmann, The Spirit of Hope: Theology for a World in Peril (Louisville, KY: Westminster John Knox, 2019), p. 4.

4 Robert Joustra e Alissa Wilkinson, How to Survive the Apocalypse: Zombies, Cylons, Faith, and Politics at the End of the World (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2016), p. 5.

5 Alister McGrath, The Christian Life and Hope, Christian Belief for Everyone (Londres: SPCK, 2015), viii.

6 A respeito da “cultura da vida” como uma alternativa à “cultura da morte” em nossa sociedade, ver Moltmann, Spirit of Hope, p. 3-14.

7 Para uma discussão abrangente sobre este problema, ver Charles Taylor, A Secular Age (Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 2007).

8 Sobre o motivo do conflito cósmico, ver Sigve K. Tonstad, Saving God’s Reputation: The Theological Function of Pistis Iesou in the Cosmic Narratives of Revelation, Library of New Testament Studies 337 (Londres: T&T Clark International, 2006); Laszlo Gallusz, The Throne Motif in the Book of Revelation, Library of New Testament Studies 497 (Londres: Bloomsbury T&T Clark, 2014); Steven Grabiner, Revelation’s Hymns: Commentary on the Cosmic Conflict, Library of New Testament Studies 511 (Londres: Bloomsbury T&T Clark, 2015).

9 Reconhece o mal e o sofrimento provocados pelas escolhas e lealdades das pessoas no mundo em detrimento das experiências consideradas “males naturais” (desastres naturais, doenças ou catástrofes). Para um tratamento detalhado de Apocalipse como teodiceia, ver Gregory Stevenson, A Slaughtered Lamb: Revelation and the Apocalyptic Response to Evil and Suffering (Mumbai, India: St. Pauls, 2013).

10 Timothy Keller, Hope in Times of Fear (Nova York, NY: Viking, 2021), p. x.

Laszlo Gallusz
professor de Novo Testamento no Newbold College, Inglaterra