Alguma vez você já se perguntou por que a Bíblia não menciona a China, faz referência à Índia apenas uma vez e parece ignorar bilhões de pessoas que hoje compõem quase metade da população mundial? Esse aparente silêncio sobre certas regiões do mundo pode dar a impressão de que a mensagem bíblica é limitada a uma área geográfica restrita. Mas será que esse conceito está correto?
O Deus da Bíblia é um Deus missionário.1 A Bíblia inteira é um documento missionário, pois revela os propósitos e ações de Deus em missão. O Antigo e o Novo Testamentos estão interligados, evidenciando a atividade redentora de Deus, que busca reconciliar o mundo consigo mesmo – primeiro por meio de Israel e, depois, por intermédio de Cristo.2
Desde as primeiras páginas da Bíblia, vemos Deus em missão. Vários eruditos sugerem que a base para a compreensão da universalidade da missão é encontrada em Gênesis 1 a 11.3 Esses capítulos narram os primórdios da história da humanidade e demonstram que, desde o princípio, o propósito de Deus para a salvação sempre esteve ligado a todas as pessoas. Os eventos da criação, a entrada do pecado, o julgamento e a dispersão têm implicações universais. De igual modo, a oferta divina de salvação é direcionada a todas as famílias da Terra que escolhem crer.
Os capítulos iniciais da Bíblia introduzem o meio pelo qual Deus pretende alcançar todas as famílias da Terra. As nações devem ser abençoadas pela semente: a “semente” da mulher (Gn 3:15); a “semente” de Sem, em cujas tendas Deus viria habitar (Gn 9:27); e a “semente” de Abraão (Gn 12:1-3), a quem é revelado o propósito divino de atrair todas as nações da Terra a Si mesmo.4 O propósito de Deus foi abençoar um povo para que ele se tornasse um canal por meio do qual todas as famílias da Terra pudessem receber a bênção da salvação.
Ao observar a universalidade da missão de Deus no início da história humana, é importante perceber que, em Gênesis 1 a 11, a humanidade é uma só, e Deus lida com o mundo como um todo. O chamado de Abraão, entretanto, introduz uma mudança radical na atividade missionária de Deus. Em Gênesis 12, não há menção aos pecados, sofrimentos e problemas que afetam toda a humanidade. De maneira quase abrupta, um único homem e sua família estendida são colocados no centro da história, e Deus passa a usá-los como Seus instrumentos em favor de todas as famílias da Terra.
A narrativa bíblica então avança de um único indivíduo para uma família, uma tribo e, então, a nação de Israel. A escolha desse povo eleito,5 que se tornou canal selecionado das bênçãos de Deus, foi um ato de amor e graça (Dt 4:37; Dt 7:6-8) com o propósito de trazer redenção a todas as famílias da Terra. Assim, o chamado de Abraão e, consequentemente, o de Israel, deve ser visto sob a ótica do propósito de Deus de salvar as nações.
A história de Israel é apenas a continuação do relacionamento de Deus com as nações e, por isso, deve ser entendida à luz dessa relação não resolvida. Israel foi eleito para servir a Deus na tarefa de conduzir as outras nações a Ele. O propósito divino era que as nações de todo o mundo reconhecessem o Deus de Israel como o Senhor de toda a Terra. Esse propósito abrange a China, o Japão e todas as demais nações não mencionadas na Bíblia.
Não há eleição sem missão. O chamado de Deus pressupõe um convite à ação. As Escrituras Hebraicas não fazem qualquer referência à eleição para a salvação, mas reconhecem uma eleição para a missão (Êx 3:7-10; Êx 7:1,2; Êx 19:5,6; Jr 1:5).6 Em Israel, Deus buscou o mundo.
A pergunta inevitável que surge imediatamente após essa afirmação é: Como esse objetivo seria alcançado? A história de Israel parece evidenciar que a soberania de Deus foi o princípio dominante, o fator primordial que assegurou que o propósito divino seria cumprido.
A soberania de Deus
Para reivindicar soberania, é necessário oferecer pelo menos dois elementos de confirmação: um reino onde se exerce domínio e uma narrativa que descreva os atos soberanos nesse território. O relato da criação, por si só, já seria suficiente para demonstrar que a soberania de Deus é um tema de vital importância na Bíblia. As Escrituras evidenciam que Seu reino é tudo o que existe, e a história da salvação é o registro das ações de Deus cumprindo Seus propósitos eternos e inevitáveis ao longo da história.7
Embora Deus reine sobre toda a Terra (Sl 47:2,7), ao escolher Israel como Seu veículo de redenção, o reinado do Senhor passou a se concentrar nessa nação. A estratégia divina era fazer de Israel uma expressão do reino de Deus na Terra, utilizando-o como agente para mediar Sua vontade e implementar Seus propósitos. Esse critério exigia que Deus estabelecesse um relacionamento especial com Seu povo escolhido, a fim de capacitá-lo a cumprir o propósito para o qual havia sido chamado.
Em qualquer relacionamento, os eventos do dia a dia oferecem as melhores oportunidades para conhecer o outro. Israel conheceu a Deus por meio dos atos de libertação que o Senhor realizou em sua história. A memória coletiva da nação tornou-se efetivamente um mirante para a observação das intervenções divinas. Eventos como as pragas do Egito e a aliança no Sinai não eram interpretados apenas como uma herança nacional, mas como revelações divinas. Os feriados nacionais dos israelitas apontavam para um único herói: Deus. Com o tempo, os israelitas passaram a entender que a existência deles como nação derivava e dependia de Deus.
Deus está trabalhando dentro da narrativa da história do Seu povo – explicitamente ou nos bastidores – iniciando, reagindo, direcionando.8 Em cada novo ato, a soberania de Deus permeia o tema, os personagens, o local, a trama, o conflito, a resolução e o ponto de vista.
Enquanto as nações circunvizinhas a Israel tinham uma cosmovisão politeísta e associavam seus deuses às suas terras natais, Israel tinha evidências suficientes para entender que o seu Deus não era um Deus nacional, mas o único Deus verdadeiro, o Senhor de todas as nações, que reina sobre todos os povos.9 Deus é soberano em Midiã e em Jericó, no deserto e no mar, nas montanhas e nos vales, no Egito e em Canaã. Toda a Terra pertence a Ele e a Sua soberania não conhece fronteiras (Êx 9:14,16, 29).
A primeira demonstração desse fato ocorreu quando o povo de Israel ainda estava no Egito. A decisão de faraó, “não conheço o Senhor e não deixarei Israel ir” (Êx 5:2), exemplifica uma negação explícita do direito do Senhor de reinar. Venerado como um ser quase divino, faraó entendia corretamente a natureza transcendente do conflito em que estava envolvido. Não era meramente uma luta entre Deus e um ser humano, mas entre Deus e um deus.10 A lição ensinada a faraó foi também aprendida de maneira prática por Israel, à medida que Deus manifestava Sua realeza ao colocar as nações sob o controle do Seu povo.
Assim, a soberania de Deus, exercida na história do Seu povo escolhido por meio de atos miraculosos de livramento, orientação contínua e revelações especiais, foi o fator determinante que habilitou Israel a conhecer a Deus e, consequentemente, cumprir a comissão de transmitir esse conhecimento a todas as nações da Terra. Ao mesmo tempo, sempre que Israel falhava em cumprir o propósito de seu chamado, a soberania de Deus se tornava evidente: às vezes utilizando outras nações para punir Seu povo, mas sempre garantindo que o Seu propósito salvífico ainda assim fosse cumprido.
A soberania de Deus na missão contemporânea
As rédeas da missão continuam nas mãos de Deus, que continua sendo soberano. Precisamos abordar a tarefa missionária com a perspectiva correta: estamos apenas participando com Deus no que Ele está realizando.
Os propósitos eternos de Deus serão cumpridos inevitavelmente. A variável nessa equação é a participação humana. A soberania de Deus não restringe o livre-arbítrio; Ele não impõe Sua vontade sobre cada uma das nossas decisões. Podemos participar da missão à nossa maneira ou segundo a maneira de Deus, mas os resultados não serão os mesmos. Nossos melhores planos, iniciativas, esforços e resultados serão irrelevantes se não estiverem avançando na direção para a qual Deus está indo.
Na missão, é essencial trabalhar em sintonia com Deus para que algo útil aos Seus propósitos seja realizado. O pedreiro não constrói a casa de acordo com as ideias que vão surgindo; ele segue o projeto! Quanto mais complexa a construção, maior a necessidade de seguir o plano. O Deus soberano, que iniciou Sua missão universal e a fez avançar até o estágio atual, já possui o projeto para concluí-la, um plano amplo o suficiente para incluir todos os que permitem que Ele exerça soberania em sua vida.
Em outras palavras, se desejamos ter a oportunidade de executar uma pequena parte do projeto de Deus para a edificação do Seu Reino, no local em que estamos servindo a Ele, precisamos permitir que o Senhor seja soberano em nossa vida. A soberania de Deus é especialmente exercida onde Seu povo está.
A soberania é evidenciada por meio de ações soberanas. A aceitação da soberania é mais bem demonstrada por meio de uma atitude de submissão. Se Deus é soberano em nossa vida, devemos refletir isso por meio de uma vida devocional consistente. Precisamos submeter nossos planos a Deus e, assim, avançar ou recuar conforme a mão da Providência indicar. A soberania de Deus se torna evidente quando, por exemplo, oramos para que o Espírito Santo conduza uma reunião administrativa e aceitamos um resultado diferente do que esperávamos.
Honramos a soberania de Deus em nossos esforços missionários quando não desprezamos nosso local de trabalho. Muito antes de chegarmos, o Espírito Santo já estava atuando nesse lugar. Fomos colocados ali para participar do cumprimento dos propósitos de Deus na vida das pessoas que habitam naquele ambiente. É nesse local que desenvolvemos nossa vocação e, principalmente, servimos a Deus. Não subestime a importância desse lugar.
Ao mesmo tempo, no campo missionário, ter uma percepção clara do ideal é mais importante do que simplesmente ser motivado ou bem-intencionado. Não basta ter disposição para se submeter à soberania de Deus; é preciso compreender a direção em que o Senhor está se movendo para que possamos cooperar com Ele em Sua missão. A seguir, apresento algumas diretrizes que podem ajudar nesse processo.
Primeiro, fundamente sua prática missiológica em princípios bíblicos sólidos, extraídos de uma exegese cuidadosa e amparados por uma hermenêutica acurada. O Deus da Bíblia é um Deus missionário, e toda a Escritura é um livro missionário. Nossas melhores ideias devem ser, na verdade, uma reprodução do que aprendemos ao observar a atividade missionária do próprio Deus.
Segundo, consulte a orientação do dom profético. A Bíblia diz: “Certamente o Senhor Deus não fará coisa alguma, sem primeiro revelar o Seu segredo aos Seus servos, os profetas” (Am 3:7).
Terceiro, não atue de forma independente da comunidade do povo de Deus. Ellen White escreveu: “Deus tem na Terra uma igreja que é Seu povo escolhido, que guarda os Seus mandamentos. Ele está guiando, não ramificações transviadas, não um aqui e outro ali, mas um povo.”11 A história da igreja cristã e do movimento missionário mostra que, geralmente, quando Deus inicia uma nova fase da Sua missão, Ele não coloca Seu plano exclusivamente no coração de uma única pessoa. João Wycliffe na Inglaterra, João Huss na Boêmia, Martinho Lutero na Alemanha e João Calvino na Suíça, entre outros, foram instrumentos de Deus para promover a Reforma Protestante e exemplificam como Ele age ao direcionar mudanças significativas.
Quarto, não ignore os sonhos. Às vezes, o coração nos leva a lugares em que poucos estiveram, inspirando planos que talvez nunca tenham sido realizados. Esse desejo sincero de fazer algo que glorifique a Deus, edifique a igreja, mobilize pessoas para a missão e salve pessoas para o reino dos Céus não pode ficar só no campo das ideias. É preciso lançar a semente. Uma semente não germina no bolso ou na mão; precisa ser plantada! O conhecimento que se quer dominar, o projeto que se quer implementar, o evento que se quer promover, o ministério que se quer desempenhar, o terreno que se quer comprar, a igreja que se quer construir, a mudança que se quer implementar; para tudo isso, a semente deve ser lançada. É preciso começar! Provavelmente será algo pequeno no início, mas o crescimento é um princípio do reino de Deus (Mc 4:30-32). Não se deve ignorar os sonhos, mesmo que haja insegurança ou que a ideia pareça totalmente ilógica. Pode ser que o próximo passo na direção de Deus dependa de uma iniciativa de Seus filhos.
Silvano Barbosa, professor de Teologia no Unasp, campus Engenheiro Coelho
Referências
1 Ross Hastings sugere que a missão é o atributo definidor de Deus, no sentido de que as missões divinas elucidam o ser triúno de Deus como amor (Missional God, Missional Church [Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2012], p. 251). Richard Davidson aponta que, na criação, encontramos a missão original de Deus: o Pai enviando o Espírito (Gn 1:2; cf. Sl 104:30) e o Filho, a Palavra (Gn 1:3; Jo 1:1), na missão de criar o Universo (“os céus e a terra”, Gn 1:1), e em particular, este mundo (“Back to the Beginning: Genesis 1–3 and the Theological Center of Scripture”, em Christ, Salvation and the Eschaton (Berrien Springs, MI: Andrews University, 2009), p. 11-19.
2 George A. F. Knight, A Christian Theology of the Old Testament (Richmond, VA: John Knox Press, 1959), p. 8.
3 Gordon J. Wenham sugere que Gênesis 1–11 provê o pano de fundo para o chamado de Abraão e evidencia que, embora o pecado houvesse aparentemente frustrado o plano de Deus para a humanidade, as promessas feitas aos patriarcas cumprem o propósito divino de abençoar todas as nações da Terra (Genesis 1–15, Word Biblical Commentary 1 [Waco, TX: Word Books, 1987], p. l–liii.
4 Walter Kaiser, Mission in the Old Testament: Israel as a Light to the Nations (Grand Rapids, MI: Baker Academics, 2012), p. 2-7.
5 H. H. Rowley sugere que o povo de Israel foi eleito não por ser superior às outras nações, mas pela graça de Deus, que o escolheu e derramou Seu amor sobre ele, apesar de suas fraquezas (Is 60:11, cf. 61:5, 9). O propósito da eleição é o serviço; quando esse serviço é retido, a eleição perde seu significado e pode até se tornar motivo de punição divina (The Biblical Doctrine of Election [London: Lutterworth, 1950], p. 18, 19, 52).
6 Jiří Moskala, “The Mission of God’s People in the Old Testament”, Journal of the Adventist Theological Society 19 (2008), p. 40-60.
7 H. Merrill propõe que a soberania de Deus é o tema principal, o fator subjacente do pensamento bíblico ao redor do qual tudo gira. Para ele, não seria incorreto sugerir que esse conceito encapsula a essência da mensagem bíblica e, de fato, é o centro teológico das Escrituras (Everlasting Dominion: A Theology of the Old Testament [Nashville, TN: Broadman and Holman, 2006], p. 138, 147, 155).
8 Christopher J. H. Wright, Living as the People of God: The Relevance of the Old Testament Ethics (Leicester, UK: InterVarsity Press, 1983), p. 24.
9 Daniel I. Block, The Gods of the Nations: Studies in Ancient Near Eastern National Theology (Jackson, MS: Evangelical Theological Society, 1988), p. 74-96.
10 Merrill, Everlasting Dominion, p. 140, 157.
11 Ellen G. White, Conselhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010), p. 244.