Como lidar com gentios e publicanos

Referindo-se a uma situação anônima de apostasia, Ellen White escreveu: “[…] o caso do irmão A foi especial. Foram empregados com sabedoria todos os esforços para evitar que ele abandonasse o aprisco. Mas, após ter ele se afastado, não foram feitos esforços cuidadosos para trazê-lo de volta. Houve mais fofoca sobre seu caso do que sincero pesar. Tudo isso o manteve afastado do redil e motivou seu coração a se separar cada vez mais de seus irmãos, tornando mais difícil o resgate.”1

Já se passaram quase 180 anos desse ocorrido, mas, infelizmente, a cena descrita con­tinua se repetindo com diferentes matizes e protagonistas. Será que ainda não entendemos a essência da disciplina eclesiástica? Onde termina minha responsabilidade pelo irmão que caiu? Qual é meu papel como pastor diante desses casos? A resposta a essas perguntas pode melhorar a saúde espiritual de nossas congregações e pode torná-las um lugar mais acolhedor.

Um modelo bíblico

Ao falar de disciplina eclesiás­tica, é inevitável não recorrer a Mateus 18:15 a 17. O texto estabelece as bases para a reconciliação entre dois cristãos afastados por alguma diferença ou conflito, mas seu procedimento é utilizado também para resolver diversos casos em que algum tipo de pecado está envolvido.2 “Se o seu irmão pecar contra você, vá e repreenda-o em particular. Se ele ouvir, você ganhou o seu irmão” (Mt 18:15). O primeiro passo, quer meu irmão tenha cometido alguma ofensa contra mim ou eu tenha testemunhado algum erro ou pecado dele, é uma aproximação pessoal e privada. Muitos mal-entendidos seriam poupados se essa premissa inicial fosse praticada com mais frequência. O pastor tem a tarefa de educar sua igreja nesse aspecto. Não são poucas as vezes em que um irmão se aproxima do ministro para compartilhar – geralmente com uma boa intenção – o caso de outra pessoa que está incorrendo em determinada falha. Nesse momento, o pastor deve lembrá-lo dos passos mencionados em Mateus 18. Dessa forma, o pastor tomará parte ativa na restauração de seu próximo e evitará que a fofoca seja espalhada na comunidade.

“Mas, se não ouvir, leve ainda com vo­cê uma ou duas pessoas, para que, pelo ­depoimento de duas ou três testemunhas, toda questão seja decidida” (Mt 18:16). O tempo em que vivemos comporta, entre tantos desafios, a difícil tarefa de lidar com a subjetividade quase na sua máxima expressão. A premissa hoje é: “Cada um tem sua própria verdade.” No âmbito dos conflitos interpessoais ou das situações de disciplina eclesiástica, isso se traduz como “sua verdade contra a minha”. Felizmente, o segundo passo das recomendações de Cristo em Mateus 18:15 a 17 visa preservar a objetividade necessária para resolver esse tipo de situação. Jesus fez alusão ao Antigo Testamento para Se referir à prática de não condenar ninguém baseando-se unicamente na opinião de uma única pessoa (Nm 35:30; Dt 17:6; Dt 19:15). Dessa forma, o ofensor é beneficiado: ao se preservar a objetividade do caso, as possibilidades de se cometer uma injustiça são reduzidas.3

“E, se ele se recusar a ouvir essas pessoas, exponha o assunto à igreja” (Mt 18:17). Se os dois passos anteriores não obtiveram êxito, então o caso deve ser levado para a igreja. “[O pronunciamento público de disciplina] nunca é violação de segredos, pois o ofensor deliberadamente recusou os caminhos prévios do arrependimento.”4 Mas, mesmo nesse ponto do processo, o irmão que está entrando no processo disciplinar pode voltar atrás em suas ações e se arrepender, já que o texto bíblico continua dizendo: “E, se ele se recusar a ouvir também a igreja, considere-o como gentio e publicano” (Mt 18:17).

Depois que a pessoa em questão ignora a repreensão amável da igreja, deve-se proceder à sugestão de censura ou remoção por parte da Comissão da Igreja e, em seguida, a totalidade dos membros da congregação tomará a decisão final sobre o caso.

Gentio e publicano

O final de Mateus 18:17 parece indicar o culminar do processo disciplinar. Uma vez que a pessoa rejeitou os constantes chamados ao arrependimento, tanto da parte de seus irmãos quanto do Espírito Santo, então não resta outra alternativa a não ser considerá-lo gentio e publicano. Penso que é precisamente aqui que reside o maior problema dos nossos atuais processos disciplinares. Parece que nós lemos essas palavras da perspectiva de alguém zeloso por Deus e pela Sua lei, inimigo dos impuros (gentios) e abomináveis (publicanos). De fato, alguns comentaristas bíblicos têm dificuldade em compreender corretamente essas palavras de Jesus, que parecem contradizer Seus ensinamentos sobre o amor ao próximo e a universalidade da salvação. A solução que encontraram para essa “pedra no sapato” consiste em supor a existência de uma manipulação posterior do relato dos evangelhos por parte da comunidade cristã do período apostólico.5 Dessa forma, o suposto desprezo de Jesus para com os gentios e publicanos não teria saído de Sua boca, mas da pena de algum copista judeu influenciado por sua forte bagagem cultural acumulada ao longo dos anos. Para nós que acreditamos no processo de inspiração divina da Bíblia e a usamos como texto normativo a partir do qual estruturamos nossa cosmovisão, essa solução não pode ser satisfatória. Tem de haver outra explicação e, na verdade, há.

Como proceder

Para começar a compreender esse assunto, devemos recordar o objetivo da disciplina eclesiástica: restaurar a relação do pecador com Deus e com Seu povo. Se tivermos uma visão negativa ou punitiva da disciplina, então nunca compreenderemos corretamente as palavras de Jesus. Mas, se entendemos a essência restauradora de todo processo disciplinar levado a cabo pela igreja, como devemos interpretar os termos “gentio” e “publicano”? O Comentário Bíblico Adventista diz: “Recusando o conselho da igreja, o membro errante se separou de sua comunhão […]. Isso não significa que ele deve ser desprezado, rejeitado ou negligenciado. Agora, devem ser feitos esforços pelo membro errante, da mesma forma que por qualquer pessoa que não seja membro.”6

Quando observamos o ministério terrestre de Jesus, não encontramos nenhum fundamento válido para afirmar que Ele sentia algum tipo de rejeição pelos gentios, pelos publicanos ou por qualquer outro grupo dos denominados “pecadores”. Pelo contrário, Cristo ensinou claramente que trabalhava por essas pessoas e Se relacionava com elas porque, ao contrário daqueles que se achavam sãos, muitos pecadores reconheciam a necessidade do Médico divino.

Compreendida a responsabilidade da congregação no contexto da atitude de Jesus para com os gentios e publicanos de Sua época, veremos que nossa missão não termina com a remoção do membro. Pelo contrário, nossa tarefa estará apenas começando, com o objetivo incansável de ­reintegrá-lo ao corpo de Cristo. “Quando a pessoa que errou se arrepende e se submete à disciplina de Cristo, deve ter uma nova oportunidade. Mesmo que não se arrependa e venha a ser excluída da igreja, os servos de Deus têm o dever de com ela tentar esforços, buscando induzi-la ao arrependimento. Caso se render à influência do Espírito de Deus, dando prova de arrependimento, confessando o pecado e a Ele renunciando, por mais grave que seja, deve merecer o perdão e ser de novo recebida na igreja. Aos irmãos compete encaminhá-la pela vereda da justiça, tratá-la como desejariam ser tratados em seu lugar, olhando por si mesmos para que não sejam do mesmo modo tentados.”7

Em relação a esse assunto, o Manual da Igreja acrescenta: “Aos ex-membros deve ser assegurado que a igreja tem a esperança de que voltarão voluntariamente e que um dia haverá comunhão eterna no reino de Deus. […] Quando pessoas forem removidas por disciplina, a igreja deve, quando possível, manter contato e manifestar espírito de amizade e amor, empenhando-se em trazê-las de volta ao Senhor.”8

É verdade que aquele que rejeita a advertência da igreja se separa da comunhão de seus irmãos na fé, mas, ao fazê-lo, torna-se um alvo especial dos esforços missionários de sua ex-congregação.

O papel do pastor

Ellen White foi muito enfática quanto ao papel dos ministros na tarefa de buscar as ovelhas extraviadas: “Alguns pastores que professam ter sido chamados por Deus têm o sangue das almas em suas vestes. Estão cercados de apóstatas e ­pecadores, contudo não sentem responsabilidade por essas pessoas. Manifestam indiferença pela sua salvação. Alguns estão tão entorpecidos que não possuem qualquer senso do trabalho do ministério evangélico. Não consideram que, como médicos espirituais, é requerida deles perícia em ministrar aos corações enfermos pelo pecado. O trabalho de advertir pecadores, de chorar por eles e convencê-los tem sido negligenciado até que muitas pessoas fiquem desenganadas.”9 “Não devemos oprimi-los com censuras desnecessárias, mas deixar que o amor de Cristo nos cons­tranja a ser compassivos e brandos, de modo que choremos com os que erram e com os que se desviaram de Deus. O ser humano é de infinito valor. Esse valor só pode ser calculado pelo preço pago a fim de redimi-lo. O Calvário! O Calvário! Somente o Calvário expressará o real valor de um ser humano!”10

A igreja inteira deve fazer esforços para recuperar os irmãos que se afastaram (ou que saíram desconsolados depois de receber uma disciplina eclesiástica), mas é o pastor que deve ser um exemplo nesse aspecto, adotando em seu ministério uma ênfase marcada pelo trabalho com corações frios e tristes. E se já nos enganamos e ferimos alguma ovelha que se afastou do rebanho? “Busquem os que têm repelido, e por sua confissão atem as feridas que lhes causaram.”11 

Martín Mammana
pastor e estudante de comunicação na Argentina

Referência

Ellen G. White, Ministério Pastoral (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015), p. 219.

2 A expressão “contra você” não está atestada nos melhores manuscritos. É por esse motivo que um grande número de comentaristas e eruditos neotestamentários consideram que é possível aplicar o procedimento de Mateus 18:15 a 17 a qualquer ofensa ou pecado que vá contra as normas da comunidade cristã. Ver, por exemplo, James D. G. Dunn e John W. Rogerson (eds.), Eerdmans Commentary on the Bible (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2003), p. 1040.

3 Jonas Arrais, Uma Igreja Positiva em um Mundo Negativo
(Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2008), p. 78.

4 Arrais, Uma Igreja Positiva em um Mundo Negativo, p. 78.

5 George A. Buttrick (ed.), The Interpreter’s Bible (Nova York, NY: Abingdon Press, 1952), v. 7, p. 473; Robert H. Mounce,
New International Biblical Commentary (Peabody, MA: Hendrickson, 1995), v. 1, p. 176.

6 Francis D. Nichol (ed.), Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), v. 5, p. 437.

7 Ellen G. White, Conselhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010), p. 263. Ver o capítulo 46 (“Cuidando dos que Erram”).

8 Associação Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, Manual da Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2023), p. 74.

9 White, Ministério Pastoral, p. 219, 220.

10 White, Ministério Pastoral, p. 222.

11 White, Conselhos Para a Igreja, p. 260.