Reflexões sobre o diálogo em Jó 41:1-11

O sofrimento humano é um dos temas mais discutidos ao longo da história. Muitos teólogos empreenderam tempo e esforços na tentativa de apresentar respostas a esse respeito. Nessa perspectiva, o livro de Jó oferece uma exposição profunda sobre a justiça divina diante do sofrimento humano.1 Assim, Jó discute o problema do justo sofredor.2

Curiosamente, alguns estudiosos dizem que o nome Jó significa “alguém a quem Javé trata como inimigo”3 ou “ser hostil”.4 Outros afirmam que esse nome é uma provável derivação de uma raiz hebraica que significa “voltar” ou “arrepender-­se”.5 Seja como for, essas compreensões apresentam ao menos duas ideias que se relacionam com a temática do livro: 1) a perspectiva do sofrimento de Jó por Deus tratá-lo como adversário e 2) a ideia desse personagem voltando-se para o Senhor ao reconhecer sua insignificância no fim da narrativa.

Sob esse prisma, analisaremos neste artigo o texto de Jó 41:1-11, visando compreender os versos de Jó 41: 9 a 11, que nos conduzem a três perguntas: (1) Quem se ­levanta diante de Deus? (2) Quem veio ­primeiro? (3) Quem é o dono de tudo?

Contexto histórico e temática

Em primeiro lugar, é importante entender o contexto histórico dessa obra bíblica. Não é fácil datar a vida e a carreira de Jó, uma vez que esse relato não possui qualquer referência a eventos históricos e reflete um ambiente cultural não hebraico.6 A história de Jó não acontece em um contexto israelita, eclesiástico, político ou militar. Pelo contrário, Jó se manifesta num quadro doméstico, comum em sua época: um rico dono de terras, amado e honrado por seus conterrâneos.7

Em segundo lugar, no que se refere ao assunto central do livro, a dor e a tragédia na vida dos fiéis filhos de Deus são abordados por meio da história de Jó.8 Todavia, embora a opinião comum acredite que o escritor canônico responda afirmativamente à questão do sofrimento na vida dos inocentes, essa visão é correta, mas incompleta. A realidade de Deus, Sua justiça e Seu poder é que estão no centro do debate do livro. A intenção do poeta é mostrar, desde o início, a divindade de Deus e a fragilidade humana. Sem a revelação divina, porém, “os esforços do homem para defender a conduta de Deus só têm como resultado abaixar a divindade ao nível de um ideal humano de justiça e revelam, por isso, uma forma intelectual de idolatria”.9

Assim sendo, uma das maiores contribuições do livro é o quadro sobre Deus, bem como o conceito de forças e poderes, celestiais e terrenos, que afetam a vida das pessoas – justos podem sofrer e ímpios podem prosperar –, mas somente Deus trará justiça final a todos.10

Quem se levanta diante de Deus?

No diálogo com Jó, Deus mostra que tanto o Universo quanto a vida de Seu servo estão sob o controle divino. Por meio de perguntas reflexivas, Deus tem por objetivo fazer com que Jó entenda que os seres humanos, de fato, pouco sabem acerca do Todo-Poderoso. No entanto, a resposta divina envolve a revelação de Sua presença e de Sua misericórdia para com o ser humano.11

Nesse contexto, “Quem pode se levantar diante de Deus?” é a primeira pergunta feita em Jó 41:10. Essa questão surge após o Senhor apresentar uma descrição detalhada do crocodilo (ou leviatã [heb. liwyathan], a depender da tradução) nos versos de Jó 41:1 a 9. Trata-se de um animal selvagem, feroz e indomável, dotado de grande boca e armado com fortes dentes. O corpo é coberto de escamas bem unidas, como se fossem uma malha. O foco do texto está em mostrar a força superior do monstro marinho em comparação com a capacidade do homem em disputar com ele.12

Não há possibilidade de capturar o crocodilo com um anzol (Jó 41:1), furar sua orelha com uma vara (Jó 41:2), ou ainda domá-lo (Jó 41:4). Com certeza “esse jamais seria um brinquedo que ele daria às suas meninas (escravas) como um animal de estimação (Jó 41:5)”.13 A verdade é que “o mero pensamento da luta com o crocodilo faz a pessoa desistir de tentar capturá-lo” (Jó 41:8).14

Portanto, o verso de Jó 41:10 contém a conclusão do argumento que Deus construiu durante essa conversa. Uma vez que nenhum ser humano é forte o bastante para guerrear contra o crocodilo, como ainda deseja rivalizar com o Senhor? Ou seja, se não consegue combater esse animal, menor ainda é a chance de alguém se erguer diante de Deus. Assim, “o objetivo é, sem dúvida, repreender Jó por seu desejo imprudente de argumentar com Deus”.15

Quem veio primeiro?

A próxima pergunta se refere ao elemento temporal: “Quem primeiro deu algo a Mim, para que Eu tenha de retribuir-lhe?” (Jó 41:11). Nessa pergunta, Deus incita Jó para que responda quem vem primeiro. Compreende-se que, para cada coisa, há um criador/originador por trás. No entanto, Deus “não precisa de matéria independentemente preexistente”, tampouco é “limitado pelo espaço e pelo tempo como as criaturas”.16 Nesse contexto, Deus, de alguma forma, procura fazer com que Jó reflita sobre a existência dos seres criados e seu Criador, pois diante da criação o Senhor demonstra que não precisou da opinião de sua criatura para que as coisas fossem feitas.

Considerando o contexto amplo das indagações feitas por Deus, no capítulo 38 o Senhor fez uma pergunta que conduziu Jó a refletir a respeito de quem de fato veio primeiro à existência. “Que ele diga onde estava, quando este mundo inferior foi criado, e se ele forneceu conselhos para auxiliar naquela obra maravilhosa (Jó 41:4): ‘Onde estavas tu quando Eu fundava a terra?’”.17 Deus questionou Jó quanto a seu conhecimento da origem e função do mundo. O Criador o inquiriu com respeito “aos mistérios das coisas criadas não visíveis ao olho humano”.18

De certa forma, Deus queria que Jó entendesse que tanto sua existência quanto sua sabedoria são muito escassas diante do Senhor. O Comentário Bíblico Adventista acrescentou: “Estas expressões têm o efeito de mostrar a Jó quão limitado, em realidade, era seu conhecimento.”19 Ao ponto de que o próprio Eliú declarou: “Eis que Deus é grande, e não O podemos compreender; o número dos Seus anos não se pode calcular” (Jó 36:26).

Com isso, Jó compreendeu o quanto ele era limitado para entender a grandiosidade divina. Hartley afirmou: “Certamente Deus é grande além do nosso entendimento (cf. Ec 8:17). Ele é eterno além da limitação de anos; o número de seus anos é insondável. Jó deve estar ciente de que Deus é digno de louvor, em vez de buscar um desafio legal com Ele.”20

Quem é o dono de tudo?

Essa pergunta está implícita na afirmação que Deus faz na conclusão do verso de Jó 41:11 : “Pois o que está debaixo de todos os céus é Meu.” Em face dessa conversa entre Deus e Jó, o Senhor faz perguntas e declarações para expressar quem realmente criou tudo e a quem pertence todas as coisas. É como se o Eterno dissesse: “Deixe-Me surpreendê-lo pela complexidade de tudo isso!”

Considerando a maldade presente na Terra desde a queda do ser humano (Gn 3), e que a causa do sofrimento por vezes é atribuída a Deus, Matthew Henry declarou que somos devedores à paciência divina, porquanto “Deus tem poder suficiente para abalar a Terra sob esta raça culpada, sob esta humanidade que a faz gemer sob o fardo do pecado, e assim sacudir dela os ímpios (Jó 38:13).”21

Assim, podemos notar que as perguntas feitas por Deus a Jó tinham como objetivo fazer com que o patriarca entendesse o tamanho da grandeza divina, ao ele refletir sobre as coisas criadas. Frente à sabedoria de seu Criador, Jó é silenciado, pois o Eterno tem poder sobre todas as forças do Universo (Jó 38:2–42:6); sobre o hipopótamo (Jó 40:15-24); sobre o leviatã (Jó 41:1-26); e sobre todo e qualquer inimigo (Jó 41:27-34).22 Deus está no controle de todas as coisas, como o próprio Jó afirmou: “Ele é sábio de coração e grande em poder; quem ousou desafiá-Lo e sobreviveu? Ele é quem remove os montes, sem que saibam que na Sua ira Ele os transtorna” (Jó 9:4, 5).

Sob esse olhar, o Senhor é anterior à natureza e às demais coisas criadas, sendo proprietário delas. Desse modo, tendo também senhorio sobre a fonte de todo conhecimento, “o ser humano deve olhar para Deus em busca de sabedoria. O homem pode participar dela somente através do conhecimento da mente revelada de Deus”.23

Perante tamanha soberania, Eliú relata que Deus em Sua autoridade está bem acima dos seres humanos (Jó 33:12). É inútil contender com o Senhor. “Deus faz o que acha melhor e não precisa explicar o motivo de Seus atos”.24 Logo, nenhum dos seres humanos tem argumento para questionar os atributos divinos ou Sua forma de agir, uma vez que, do ponto de vista teológico, os planos de Deus estão muito além da compreensão humana. Isaías escreveu as palavras divinas: “Porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim os meus caminhos são mais altos do que os seus caminhos, e os Meus pensa­mentos são mais altos do que os pensamentos de vocês” (Is 55:9).

Conclusão

Em Jó 42:1 e 2, o patriarca faz sua confissão diante da grandeza de Deus: “Então, respondeu Jó ao Senhor: Bem sei que tudo podes, e nenhum dos Teus planos pode ser frustrado” (ARA). Esses textos mostram que Deus nunca deixou de Se apresentar diante das dificuldades dos Seus filhos. Mesmo que o ser humano não entenda, os planos do Senhor sempre serão maiores e melhores.

Ainda que Deus não tenha respondido de maneira completa às questões de Jó, não obstante, demonstrou cuidado para com Seu servo. Posto que, até nos piores momento da vida do Seu filho, em meio às trevas da existência, o Senhor desejou que ele recordasse daquilo que foi aprendido quando estava na luz. Isso nos ensina que as perguntas dirigidas a Jó não tinham a intenção de explicar o porquê do mal, mas revelar ao cansado patriarca quem é Deus. O Comentário Bíblico Adventista acrescenta: “Deus não explica por que os ímpios prosperam ou por que os justos sofrem. […] A reposta de Deus faz com que Jó se familiarize não meramente com fatos, mas com Deus.”25

Portanto, quanto mais próximos estivermos do Senhor, melhor enxergaremos Sua grandeza e também a nossa pequenez. Jó admitiu que a ideia anterior que ele tinha sobre Deus era baseada nas experiências das outras pessoas, ou seja, pelo que ouviu: um relacionamento fundamentado na tradição. Contudo, agora, sua experiência religiosa tornou-se firmada na comunhão pessoal com o grandioso Deus. 

Ezinaldo Pereira
professor de Teologia na Faculdade Adventista da Amazônia

Carlos Silva
pastor em Rondônia

Felipe Macedo
pastor no Pará

Referência

Kenneth Barker (org.), Bíblia de Estudo NVI (São Paulo: Vida Nova, 2003).

2 W. C. Kaiser (org.), Bíblia de Estudo Arqueológica NVI (São Paulo: Vida Nova, 2014).

3 Frederic Bush, David Hubbard e William Lasor, Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2002).

4 Samuel Terrien, Jó: Grande Comentário Bíblico (São Paulo: Paulus, 1994), p. 8.

5 Gleason L. Archer, Panorama do Antigo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2012), p. 570.

6 Archer, Panorama do Antigo Testamento, p. 570.

7 Francis D. Nichol (ed.), Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), v. 3, p. 550.

8 Archer, Panorama do Antigo Testamento, p. 570.

Terrien, Jó: Grande Comentário Bíblico, p. 7.

10 Nichol (ed.), Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, v. 3, p. 584.

11 Claudionor de Andrade, Jó: O Problema do Sofrimento do Justo e o seu Propósito (Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2012).

12 Milo L. Chapman, Comentário Bíblico Beacon (Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2005), v. 3, p. 20-100.

13 Chapman, Comentário Bíblico Beacon, p. 93.

14 Mattew Henry, Comentário Bíblico Antigo Testamento: Jó a Cantares de Salomão (Rio de Janeiro: CPAD, 2015), p. 687.

15 Chapman, Comentário Bíblico Beacon, p. 687.

16 Fernando Canale, “Doutrina de Deus”, em Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia, ed. Raoul Dederen (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 133.

17 Henry, Comentário Bíblico Antigo Testamento: Jó a Cantares de Salomão, p. 186.

18 Frank E. Gaebelein, The Expositor’s Bible Commentary, (Michigan, MI: Zondervan, 1988), p. 1036.

19 Nichol, Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, v. 3, p. 676.

20 John Hartley, The Book of Job (Grand Rapids, MI: Eerdmans Publishing, 1988), p. 479, tradução nossa.

21 Henry, Comentário Bíblico Antigo Testamento: Jó a Cantares de Salomão, p. 687.

22 Russell N. Champlin, O Antigo Testamento Interpretado (São Paulo: Hagnos, 2001). v. 3, p. 2029.

23 Gaebelein, The Expositor’s Bible Commentary, p. 976, tradução nossa.

24 Nichol, Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, v. 3, p. 661.

25 Nichol, Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, v. 3, p. 675.