Reflexões sobre os fundamentos teológicos do ministério adventista
Estudos realizados com ministros de diferentes denominações mostram que os pastores devem atender a um número crescente de demandas. Por um lado, existem desafios internos relacionados com o contexto eclesiástico. Por outro lado, existem pressões externas que têm que ver com as múltiplas ameaças resultantes das várias ideologias que moldam a sociedade ocidental.
Essas pesquisas ainda apresentam um paradoxo surpreendente.1 Elas reconhecem que os pastores estão convencidos do papel essencial que desempenham no avanço do reino de Deus. Contudo, em muitos aspectos, os ministros parecem assimilar os valores de uma sociedade em permanente processo de reconstrução e que está se afastando gradativamente de suas raízes cristãs. Isso resulta na perda de influência tanto das igrejas quanto do ministério pastoral.2
O quadro parece se tornar mais complexo à medida que se observa que muitos pastores não conhecem o fundamento bíblico do pastorado.3 Sem uma clara teologia do ministério que lhes dê compreensão acerca do que se espera deles, eles são expostos a copiar modelos ministeriais moldados por pressões culturais ou expectativas denominacionais.
Fundamentos da liderança pastoral
A maioria dos esforços para identificar um modelo bíblico de liderança pastoral destaca o modelo de liderança servil.4 Vários autores concluíram que a liderança praticada por Jesus é a maior contribuição que a Bíblia dá quanto a esse tema.5 Contudo, outros estudos6 sugerem que a linguagem metafórica do cuidado pastoral que se encontra nas Escrituras aponta para um modelo de liderança que atinge seu clímax na encarnação de Cristo, “o bom Pastor” (Jo 10:14), e alcançará sua consumação final com o estabelecimento escatológico do reino de Deus (Mq 5:4).
Ao resumir os principais conceitos sobre liderança pastoral apresentados no Antigo Testamento, os seguintes ensinos se destacam: (1) Deus é o verdadeiro pastor de Seu povo (Gn 48:16; Sl 23:1; 80:1); (2) o Senhor cuida pastoralmente de Seu povo por meio de instrumentos humanos escolhidos por Ele;7 (3) as principais funções pastorais incluem proteção, alimentação adequada e manejo do rebanho; (4) Moisés e Davi são exemplos do tipo de liderança pastoral que Deus deseja para Seu povo (Sl 77:20; Is 63:11-14; Sl 78:70-72); (5) a infidelidade persistente dos pastores foi a principal causa do fracasso de Israel em cumprir sua missão; e (6) o Senhor promete enviar um pastor ideal, responsável por restaurar a liderança pastoral entre Seu povo (Jr 3:15; 23:1-6; Ez 34:1-31; Mq 5:1-9; Zc 11:4–13:9).
Beatrix Pias afirmou que, por causa da riqueza do cotidiano do pastor, esta “se tornou a principal metáfora para os líderes e até mesmo para Deus na Bíblia. Tanto os líderes de Israel quanto o próprio Deus são representados como os pastores de Seu rebanho/povo.”8 Ela ainda indicou que o uso da metáfora do pastor e de suas ovelhas no AT “introduz uma teoria completa de governo e poder. Mas o poder deve ser usado com espírito de serviço”.9
No Novo Testamento, o conceito de liderança pastoral atinge seu clímax com a encarnação do Filho de Deus. De acordo com os evangelhos sinópticos, Jesus é o pastor messiânico prometido pelos profetas do AT, que cuida de Seu rebanho de maneira integral e solícita. No evangelho de João, Cristo é apresentado como o bom Pastor que Se sacrifica por Suas ovelhas e está interessado em estender a mão àqueles que ainda não fazem parte de Seu rebanho (Jo 1:11-116). No fim desse evangelho, Jesus delega a função pastoral aos apóstolos, que assim se tornam representantes Dele (Jo 21:15-19).
Após a ascensão de Cristo, eles assumiram a responsabilidade de liderar a igreja em formação. Seguindo o modelo do Mestre, ficaram cheios do Espírito Santo e conduziram os primeiros cristãos para que tivessem a mesma experiência (At 1:6-8). No período apostólico, tanto Pedro (At 1–6, 10–12) quanto Paulo (At 9:13-28) se destacaram como modelos de ministério pastoral. A importância que deram à prática da oração e pregação da Palavra é evidente e, como resultado desses esforços, a igreja cresceu exponencialmente (At 6:7; 9:31; 11:21; 16:5).
De maneira especial, o ministério apostólico de Paulo consolidou um paradigma ministerial voltado para o cumprimento da missão mundial. Os pioneiros do movimento adventista compreenderam isso e, em harmonia com os conselhos de Ellen White, desenvolveram um modelo pastoral seguindo o exemplo paulino.10 Essa visão clara do ministério contribuiu diretamente para que, em poucas décadas, o pequeno movimento adventista sabatista se tornasse uma igreja mundial.
Ministério pastoral adventista
Um exame cuidadoso dos escritos de Ellen White e dos pioneiros adventistas sugere que o ministério apostólico serviu como paradigma do ministério adventista em seus primórdios. Ao comentar 2 Coríntios 3 e relacionar diretamente o ministério pastoral com o apostolado paulino, Ellen White escreveu: “A conversão dos pecadores e sua santificação por meio da verdade é a mais forte prova, para um pastor, de que Deus o chamou para o ministério. A evidência de seu apostolado está escrita no coração desses conversos e é testemunhada por sua vida renovada. Cristo, a esperança da glória, é formado neles (Cl 1:27; Gl 4:19). Um pastor é grandemente fortalecido por esses sinais de seu ministério.”11
Mais adiante, ela apresentou a experiência ministerial de Paulo como uma referência para o ministério pastoral adventista: “O que a igreja necessita nestes dias de perigo é de um grande número de obreiros que, assim como Paulo, tenham se preparado para ser úteis, que tenham uma profunda experiência nas coisas de Deus e que sejam cheios de fervor e zelo. Necessita-se de pessoas santificadas e abnegadas; pessoas que não se esquivem de provas e responsabilidades; que sejam corajosas e verdadeiras; pessoas em cujo coração Cristo seja constituído ‘a esperança da glória’ (Cl 1:27), e que com lábios tocados com fogo santo preguem a Palavra (2Tm 4:2). Por falta de obreiros como estes, a causa de Deus definha, e há erros fatais que, como veneno mortífero, pervertem a moral e destroem as esperanças de grande parte da raça humana.”12
Esse paradigma ministerial apostólico encontrado nos escritos de Ellen White foi apoiado pela liderança eclesiástica de sua época. Arthur Daniells, então presidente da Associação Geral, foi um grande defensor desse modelo. Ele afirmou: “No registro do Novo Testamento, descobrimos que Jesus aboliu o sacerdócio. Com a morte Dele, pôs fim ao sacerdócio da antiga aliança, mas fez preparativos para isso antes de morrer, estabelecendo o ministério ao selecionar os apóstolos. Ele escolheu e ordenou os primeiros ministros da nova dispensação. […] Daquela época até agora, homens foram escolhidos por Deus para suceder aos apóstolos a fim de representar Sua igreja e assumir a obra de proclamar o evangelho do reino de Deus neste mundo.”13
Em um estudo sobre o desenvolvimento histórico da compreensão do ministério pastoral adventista entre 1844 e 1915, Wellington Barbosa resumiu a posição adventista prevalecente durante os anos em que o adventismo evoluiu de um pequeno movimento local para uma igreja mundial. Durante esse período, acreditava-se que “os ministros deveriam adotar um modelo apostólico de pastoreio, plantando igrejas, educando os membros em relação às questões espirituais, desenvolvendo planos missionários e mantendo uma linha de supervisão que atendesse às congregações. Quanto ao ancionato, eles eram considerados como pastores locais, representantes da igreja e responsáveis pelo desempenho missionário da congregação.”14
Assim, parece razoável concordar com Russell Burrill, quando ele afirma que “aparentemente, a organização da Igreja Adventista como um movimento leigo, sem pastores fixos, não foi um acidente ou um arranjo temporário devido ao tamanho da igreja, mas um esforço teológico deliberado para retornar à eclesiologia missional do Novo Testamento.”15
Conclusão
Atualmente, o ministério pastoral enfrenta desafios sem precedentes. Nesse cenário, é fundamental desenvolver uma prática ministerial que esteja baseada em uma sólida teologia bíblica. As Escrituras apresentam Deus como o pastor divino que conduz Seu povo por intermédio de pastores humanos. Esse modelo atinge seu clímax com Jesus, o bom Pastor, e se encontra de maneira especial no ministério de Paulo.
Os pioneiros adventistas e Ellen White abraçaram e promoveram esse modelo de liderança pastoral. Eles consideraram isso um fator determinante para cumprir a missão mundial. Considerando o tempo profético em que vivemos, faríamos bem em fortalecer esse modelo bíblico de liderança pastoral voltada para a conclusão da obra.
Referências
1 Instituto Barna, The State of Pastors (Califórnia: Barna Group, 2017), p. 115; Roger L. Dudley e Petr Cincala, The Adventist Pastor: A World Survey (Berrien Springs, MI: The Institute of Church Ministry, 2013), p. 26.
2 Barna, p. 107. De acordo com evsse estudo, um dos maiores desafios do ministério pastoral é o “perigo da irrelevância”. Essa frase descreve um cenário em que a sociedade ocidental está cada vez mais indiferente às opiniões ou orientações dos pastores.
3 Andrew Purves, Pastoral Theology in the Classical Tradition (Louisville, KY: Westminster John Knox, 2001), p. 5; James F. Stitzinger, “Pastoral Ministry in History”, em Rediscovering Pastoral Ministry: Shaping Contemporary Ministry with Biblical Mandates, John MacArthur, Richard L. Mayhue e Robert L. Thomas (orgs.) (Dallas, TX: Word, 1995), p. 36; James W. Thompson, Pastoral Ministry According to Paul: A Biblical Vision (Grand Rapids, MI: Baker, 2006), p. 7.
4 Walter Alaña, “Componentes Esenciales del Perfil del Pastor Adventista en el Contexto del Siglo XXI” (dissertação de mestrado, Universidade Peruana Unión, 2018). Disponível em <link.cpb.com.br/3872c5>.
5 Don N. Howell Jr., Servant of the Servant: A Biblical Theology of Leadership (Eugene, OR: Wipf & Stock Publishers, 2003); Skip Bell (org.), Servants & Friends: A Biblical Theology of Leadership (Berrien Spring, MI: Andrews University Press, 2014).
6 Timothy S. Laniak, Sheperds After My Own Heart: Pastoral Traditions and Leadership in the Bible (Downer Grove, IL: IVP, 2006); Timothy Z. Witmer,
The Shepherd Leader (NJ: P&R, 2010).
7 Tremper Longman III, Jeremiah, Lamentation, Understanding the Bible Commentary Series (Grand Rapids, MI: BakerBooks, 2008), p. 306.
8 Beatrix Thomasia Pias Kahlasi, Jesus as the Good Sheperd in John’s Gospel (dissertação de mestrado, Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, 2015), p. 12.
9 Kahlasi, p. 18.
10 Wellington Barbosa, As Duas Faces do Ministério: O Papel do Pastor e do Ancião nos Escritos de Ellen White (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2020).
11 Ellen G. White, Atos dos Apóstolos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 209 [328].
12 White, p. 322, 323 [507].
13 Arthur G. Daniells, The Church and Ministry (Silver Spring, MA: General Conference Ministerial Association, s/d), p. 21.
14 Wellington Vedovello Barbosa, “O Papel do Ministro e do Ancião no Cumprimento da Missão Adventista: 1884-1915” (dissertação de mestrado, Unasp, 2015), resumo.
15 Russell C. Burrill, Recovering an Adventist Approach to the Life & Mission of the Local Church (Fallbrook, CA: Hart Books, 1998), p. 153.