Em diferentes épocas e lugares, a teologia judaico-cristã se serviu da filosofia para elaborar seus princípios hermenêuticos. De Orígenes a Agostinho, ou de Filo de Alexandria a Maimônides, a filosofia se tornou subserviente à teologia. Como diz a frase latina atribuída a Pedro Damião (c. 1006-1072), que recebeu o título de doutor da igreja, ­philosophia ancilla theologiae, ou seja, “a filosofia é serva da teologia”.

E não é diferente quando se trata do conceito de revelação e inspiração das Escrituras. Em seu livro O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã, Fernando Canale demonstrou que as pressuposições filosóficas gregas, especialmente a visão de dois mundos, estão no centro da atividade teológica. No entanto, o corolário de assumir que existe um mundo natural e outro sobrenatural é a interação limitada entre Deus e a humanidade. Seria possível ao homem, que é material e temporal, alcançar a perfeita esfera divina? Poderia um Deus imaterial e atemporal – de acordo com a perspectiva grega – revelar ao ser humano um conteúdo cognitivo a partir do fluxo da história terrestre?

O modelo histórico-cognitivo, proposto por Canale, revela que as diferentes perspectivas a respeito de Deus impactam diretamente a visão sobre o processo de revelação e inspiração da Bíblia. No que se refere ao sábado, um teólogo que sustenta as pressuposições do teísmo clássico1 pode questionar a literalidade do repouso de Deus na criação, já que se trata de uma realidade histórica e temporal. Nesse contexto, a ação atemporal divina de criar o mundo e descansar no sétimo dia só poderia ser percebida pelo profeta em uma realidade material e temporal, por isso o autor inspirado teria retratado a verdade eterna da criação e do descanso divino por meio do processo histórico de sete dias registrado em Gênesis 1 e 2.2 Vejamos, por exemplo, o comentário de Agostinho sobre o relato da criação: “Oh, Senhor! Não é verdadeira a Tua Escritura […]? Por que, pois, dizes que a Teu ver não há tempos, enquanto Tua Escritura me diz que consideraste bom o que fizeste cada dia […]? A essas coisas me respondes: […] Oh, homem! O que diz Minha Escritura, Eu digo. No entanto, ela fala no tempo. Mas o tempo não é referência para a Minha Palavra, porque a Minha Palavra existe na eternidade, como Eu. Assim, as coisas que vedes através do Meu Espírito, Eu vejo; do mesmo modo, as coisas que falais através do Meu Espírito, Eu falo. Portanto, quando vedes essas coisas no tempo, Eu não as vejo no tempo; como as falais no tempo, Eu não as falo no tempo.”3

Como podemos perceber na declaração de Agostinho, as pressuposições filosóficas sobre Deus condicionam a interpretação do texto, distorcendo o sentido simples e literal pretendido pelas Escrituras. Dito de outra maneira, as premissas filosóficas se transformam nas lentes usadas para ler a Bíblia. Isso, naturalmente, tem implicações para o conceito de revelação e inspiração, uma vez que os princípios macro-hermenêuticos e a exegese se complementam em uma espiral crescente.4

Com esse panorama em vista, o relato de Êxodo 31:12 a 17 se torna um objeto curioso para análise e reflexão. Ao apresentar o descanso divino na semana da criação como o paradigma da celebração sabática, o texto bíblico parece situar tanto Deus quanto os filhos de Israel em uma mesma realidade espaço-­temporal: “Disse mais o Senhor a Moisés: Tu, pois, falarás aos filhos de Israel e lhes dirás: Certamente, guardareis os meus sábados; pois é sinal entre Mim e vós nas vossas gerações; para que saibais que Eu sou o Senhor, que vos santifica. Portanto, guardareis o sábado, porque é santo para vós outros; aquele que o profanar morrerá; pois qualquer que nele fizer alguma obra será eliminado do meio do seu povo. Seis dias se trabalhará, porém o sétimo dia é o sábado do repouso solene, santo ao Senhor; qualquer que no dia do sábado fizer alguma obra morrerá. Pelo que os filhos de Israel guardarão o sábado, celebrando-o por aliança perpétua nas suas gerações. Entre Mim e os filhos de Israel é sinal para sempre; porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, e, ao sétimo dia, descansou, e tomou alento” (Êx 31:12-17, ARA).

Considerando a relevância dessa perícope para a discussão hermenêutica que está por trás do processo de revelação-inspiração da Bíblia, este artigo se propõe a analisar Êxodo 31:12 a 17 a partir do modelo histórico-­cognitivo de Fernando Canale e a responder à seguinte pergunta: Como o mandamento do sábado nessa passagem nos ajuda a identificar o conceito de revelação e inspiração como um processo histórico-cognitivo? Para alcançar esse objetivo, pelo menos dois passos metodológicos são necessários: (1) apresentar os princípios elementares do modelo histórico-cognitivo; e (2) aplicar esses princípios à passagem bíblica em questão.

Princípios elementares do modelo histórico-cognitivo

A premissa básica do modelo histórico-cognitivo é a temporalidade de Deus. Segundo Canale, “as Escrituras não fornecem nenhuma evidência para a noção de um Deus atemporal”, ao contrário, “retratam de modo inequívoco Deus agindo direta e historicamente dentro da ordem causal da natureza e da história”.5 Ao negar a atemporalidade divina e a tentativa filosófica humana de entender a Deus por meio da revelação geral (nesse caso, a teologia natural), Canale quer dizer que Deus atua “historicamente na história”, ­relacionando-se com o ser humano na realidade dele.6

Ao afirmar isso, Canale contrasta sua perspectiva com o conceito clássico de “ação histórica de Deus”. De acordo com esse modelo, Deus atua na história, mas de fora dela. Essa ideia pode ser comparada a uma pedra atirada ao lago. A pedra é lançada uma vez na água, mas seu impacto forma uma série de pequenas ondas. Assim é, nas devidas proporções, a atuação divina na história segundo o teísmo clássico: o ato atemporal de Deus reverbera em ações temporais.

Mas o que é o tempo? Seria um recipiente em que Deus obrigatoriamente tem de estar dentro ou fora? Embora o tema seja demasiadamente complexo para ser tratado aqui, podemos dizer com segurança que o tempo não é uma coisa, mas uma grandeza fundamental. Logo, se o tempo é uma grandeza que serve para registrar intervalos iguais entre eventos, ele deve coexistir com o ser. Na realidade, se algo existe, esse algo experimenta ou experiencia uma sucessão de acontecimentos.

Nesse sentido, a eternidade divina deve ser entendida como uma sucessão de eventos sem fim e não como ausência de tempo. Em outras palavras, para Deus há passado, presente e futuro (Jó 36:26; Sl 102:25-27; Sl 103:15-17; Is 43:10). Ainda que Deus experimente o tempo de uma maneira diferente da humanidade (2Pe 3:8), Ele Se relaciona com o ser humano “dentro da história” e não apenas “na história”.

Os homens são finitos e mortais, enquanto Deus é infinito e imortal. Mas tanto o ser humano quanto Deus experimentam sucessão de acontecimentos. Em razão disso, a relação entre Deus e o tempo não deve ser entendida univocamente nas Escrituras, como no teísmo aberto (open ­theism),7 nem equivocamente, como no teísmo clássico, mas de forma análoga.8 Como destacou Canale, “a compreensão análoga da temporalidade divina permite que Deus experimente o tempo em sua plenitude e, ao mesmo tempo, dentro das limitações próprias das criaturas”.9

A segunda premissa básica para o modelo histórico-cognitivo de revelação e inspiração é a razão histórica. Para Canale, “o conhecimento se processa sempre que um sujeito cognoscente, ou seja, dotado de capacidades cognitivas, entra em contato com determinado objeto cognoscível, ou seja, capaz de ser conhecido”. Portanto, “a relação estabelecida entre esse sujeito cognitivo e o objeto conhecido constitui a estrutura a partir da qual o conhecimento humano sempre se origina”.10

No processo de revelação e inspiração, o sujeito que exerce cognição representa o profeta, e o objeto que pode ser conhecido, a mensagem revelada. Em tal processo epistemológico de transmissão e construção de conhecimento, algumas coisas podem influenciar o resultado final, como as pressuposições do sujeito. No entanto, embora o sujeito absorva as categorias conceituais do ambiente em que vive, elas não são determinantes, como ensina a filosofia pós-­moderna.11 No fim, o objeto cognoscível é quem determina a realidade: “Informação e conceitos baseados em fatos e realidades concretas proporcionam à razão histórica um escudo contra o relativismo cognitivo. Não é o conjunto de pressuposições que trazemos para o evento do conhecimento, mas os objetos a serem conhecidos que, em última instância, determinam o conteúdo e a veracidade do conhecimento histórico.”12

Apesar disso, como agentes históricos e temporais, os seres humanos não são capazes de processar o objeto cognoscível de forma perfeita e completa. Sua memória é defeituosa e sua percepção da realidade, parcial. E como a revelação é uma questão de compreensão, ela “requer uma interação adequada entre dados e pressuposições”.13

Em resumo, visto que Deus atua dentro da história e os seres humanos raciocinam historicamente, o processo de revelação e inspiração deve ser entendido como um fenômeno histórico-cognitivo.

Aplicação do modelo histórico-cognitivo a Êxodo 31:12-17

Depois de apresentar duas das principais pressuposições do método histórico-­cognitivo, é possível avançar para sua aplicação ao texto bíblico. O objetivo agora é verificar como essas duas pressuposições se aplicam ao mandamento de guardar o sábado, conforme o texto que é objeto de estudo.

O relato começa com a palavra wayyō’mer. Essa marca textual indica o grau zero da narrativa e a transição para o discurso direto, algo reafirmado pela expressão fática lē’mōr. O versículo seguinte também indica um discurso direto por meio do mesmo marcador. Deus falou a Moisés para que este falasse aos filhos de Israel.

Moisés, como veículo linguístico, recebeu as instruções de Deus no monte Sinai durante 40 dias (Êx 24:18) e só depois pôde comunicar a mensagem divina aos filhos de Israel. Como sujeito cognoscente, Moisés teve que processar a mensagem que Deus lhe havia revelado, o objeto cognoscível. Esse ato de comunicar e transmitir o mandamento reflete de alguma forma a interação divino-­humana no processo de revelação e inspiração da Bíblia. A mensagem perfeita revelada por Deus em uma realidade histórico-­temporal foi processada (revelação) e então transmitida (inspiração) por meio de um veículo imperfeito e falível.

Na sequência do texto, há uma modificação na narrativa. Os versículos 16 e 17 não fazem parte do discurso direto, já que a linguagem muda para um comentário narrativo. Isso pode ser percebido pela mudança da segunda pessoa do plural nos verbos e sufixos pronominais para a terceira pessoa do plural. O texto muda de “guardareis” (tišmōrû) para “guardarão” (wšām) e de “vossas gerações” (ldōrōtêkem) para “suas gerações” (ldōrōtām).

Se o discurso exortativo de Êxodo 31:13 a 15 convidava os filhos de Israel a guardar o sábado, o comentário narrativo dos ver­sículos 16 e 17 lhes dava uma razão teológica para isso: o sábado deveria ser guardado porque o Criador dos céus e da terra deixou o exemplo. Logo, o mandamento de Êxodo 31:12 a 17 é um convite para celebrar o sábado à semelhança do Criador.

Deus não apenas falou com Moisés, mas mostrou aos filhos de Israel como eles deveriam celebrar o sábado. Segundo o comentário narrativo de Êxodo 31:17, Deus criou os céus e a terra em seis dias “e, ao sétimo dia, descansou e tomou alento”. O desdobramento natural dessa observação é que o sábado serve de referência histórica e temporal tanto para Deus como para os seres humanos. É um santuário no espaço-tempo em que o Criador e a criatura se unem pactualmente.14

Se Deus não tivesse Se manifestado diretamente na realidade humana, o processo de revelação seria incapaz de alcançar a mente do profeta de maneira direta. Portanto, como afirmou Canale, “a temporalidade de Deus é uma pressuposição necessária para que possa haver comunicação direta com seres humanos historicamente constituídos”.15

Conclusão

Depois de aplicar, ainda que brevemente, dois dos principais conceitos do método histórico-cognitivo (a temporalidade de Deus e a razão histórica) ao texto de Êxodo 31:12 a 17, podemos concluir que o mandamento do sábado nessa passagem, em linhas gerais, apoia a proposta macro-hermenêutica de Fernando Canale. Metonimicamente, isto é, tomando a parte pelo todo, essa análise pontual parece ratificar a ideia de que o fenômeno das Escrituras é autossuficiente para extrair os princípios hermenêuticos necessários para a articulação de um conceito teológico de revelação e inspiração. A teologia, seja sistemática ou bíblica, não precisa de uma “serva” para suprir esses princípios hermenêuticos e exegéticos, mas sim de uma análise profunda do próprio texto bíblico, o objeto cognoscível. Afinal, como já dizia Tertuliano, o que Atenas tem que ver com Jerusalém?

André Vasconcelos, editor de livros na CPB.

Referências

1 Segundo Ronald Nash, há oito pressuposições filosóficas sobre Deus no teísmo clássico: “(1) realidade pura; (2) imutabilidade; (3) impassibilidade; (4) atemporalidade; (5) simplicidade; (6) necessidade; (7) onisciência; e (8) onipotência” (The Concept of God: An Exploration of Contemporary Difficulties With the Attributes of God [Grand Rapids, MI: Zondervan, 1983], p. 20).

2 Fernando Canale, O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã: Um Estudo Hermenêutico Sobre Revelação e Inspiração (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2011), p. 159.

3 Agostinho de Hipona, Confissões, XIII, 29 (Phillip Schaff [ed.], The Nicene and Post-Nicene Fathers [Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, 1997]), v. 1, p. 205.

4 A exegese deve extrair princípios hermenêuticos da Bíblia, e a hermenêutica deve corrigir e guiar a exegese. Assim, ambas se retroalimentam e se aperfeiçoam em uma espiral contínua e ascendente. Canale aplica o mesmo raciocínio à relação entre a hermenêutica e o conceito de revelação e inspiração. Ver Canale, O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã, p. 27-29.

5 Canale, O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã, p. 240.

6 Canale, O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã, p. 100.

7 Sistema teológico que nega a onipotência, a onisciência e a onipresença de Deus.

8 Marcos Blanco, “The Function of Analogy to Interpret the Biblical Records of the Person and Works of God: A Hermeneutic and Methodological Approach” (tese de doutorado, Universidade AIIAS, 2019).

9 Fernando Canale, Princípios Elementares da Teologia Cristã: A Bíblia Substituindo a Tradição (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2018), p. 80.

10 Canale, O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã, p. 231.

11 Canale, O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã, p. 231, 232.

12 Canale, O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã, p. 232.

13 Canale, O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã, p. 235.

14 Abraham Heschel tratou o sábado como um santuário no tempo (O Schabbat: Seu Significado Para o Homem Moderno [São Paulo: Perspectiva, 2009]). Ainda que o título deste artigo seja inspirado em sua obra, os conceitos aqui apresentados diferem de sua visão em parte dualista sobre Deus e os seres humanos (Ver Dios en Busca del Hombre: Una Filosofía de la Religión [Buenos Aires: Ediciones Seminario Rabínico, 1984], p. 237-244; 257-268). É em consideração a isso e à perspectiva temporal e cognitiva da teoria de Fernando Canale que o sábado é retratado aqui como um santuário no espaço-tempo.

15 Canale, O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã, p. 241.