O cristianismo progressista se apresenta como mais legítimo e aceitável que o cristianismo tradicional. Roger Wolsey, pastor progressista e autor de The Kissing Fish: Christianity for People Who Don’t Like Christianity (lit., “O Peixe que Beija: Cristianismo Para Pessoas que não Gostam do Cristianismo”), declara que “boa parte dos motivos pelos quais muitos estão deixando a igreja é porque eles não estão cientes do cristianismo progressista ou das congregações cristãs progressistas. Claro, essa não é a única razão”, diz ele, “mas é trágico que tantas pessoas não estejam cientes de que há uma forma de fé que muitas delas haveriam de apreciar bastante”.1 Cristãos progressistas apontam para “o envelhecimento e o abandono das igrejas tradicionais” como evidência do “desinteresse e insatisfação com a forma como igrejas fazem religião”, e insistem que, “sem uma reavaliação dos mitos que organizam a fé cristã, a igreja está fadada [em inglês, poised to] a se tornar tão irrelevante como muitas igrejas do passado”.2

Para eles, o progressismo é a solução, visto que ele se propõe a resgatar a fé daquilo que eles chamam de fundamentalismo cristão, o qual, na opinião deles, consiste em um sistema de fé distorcido ( os “mitos” da citação acima) produzido por teólogos ao longo dos séculos. Ele pretende resgatar o verdadeiro Jesus e o verdadeiro significado de Sua vida e Seus ensinos – uma religião prática (e não teórica, baseada em doutrinas), inclusiva (e não fechada, intolerante) e que atenda às reais necessidades do ser humano (e não mero delírio focado em um futuro utópico). Na verdade, porém, o cristianismo progressista não passa de uma versão pós-moderna do antigo liberalismo religioso dos séculos 18 e 19. Do liberalismo, ele tirou sua rejeição da autoridade das Escrituras, sua visão panteizante de Deus e sua compreensão condescendente do ser humano e do pecado. Do pós-modernismo, ele tirou sua percepção imediatista da realidade e sua inspiração humanística e até marxista da vida e dos problemas que afligem a sociedade.

As Escrituras Sagradas

O liberalismo dos séculos 18 e 19 rompeu com a noção tradicional de inspiração e passou a ver as Escrituras apenas como um documento antigo, escrito e produzido como qualquer outro documento antigo. Controlado por um racionalismo radical, em que a razão humana foi vista como o único caminho para a verdade, o liberalismo rejeitou a origem divina das Escrituras e, por conseguinte, sua autoridade. Seus relatos passaram a ser vistos como mitológicos, culturalmente condicionados e mero reflexo da mentalidade religiosa antiga. Com o cristianismo progressista não é muito diferente. Por mais que alguns de seus proponentes se esforcem em dizer que levam a Bíblia a sério, na verdade eles desprezam a autoridade das Escrituras. Alguns falam em diferentes graus de inspiração presentes na Bíblia, ao passo que outros – a maioria – defendem que, por ser a revelação “final” de Deus, Jesus tem prioridade sobre as Escrituras como fonte de autoridade para o crente. Cristianismo, dizem eles, significa seguir a Jesus, não a Bíblia.3

O argumento tem alguma aparência de verdade, afinal, Jesus é o personagem central e o propósito último das Escrituras (Lc 24:27; Jo 5:39, 46; Gl 3:24; Cl 1:25–2:3), Aquele que une ambos os Testamentos e consiste na chave para a compreensão deles (Lc 24:44, 45; Rm 10:4; 2Co 1:20; 2Co 3:14-16). O embuste do argumento, porém, reside na dicotomia que os progressistas fazem entre Jesus e as Escrituras, como se o primeiro excluísse ou anulasse o segundo. Ou seja, eles usam o tal princípio cristológico para rejeitar partes das Escrituras, e, ao assim fazer, criam uma espécie de “cânon dentro do cânon” que compromete a unidade e a autoridade das Escrituras.4 Um exemplo é a questão da homossexualidade, claramente reprovada em diversas passagens tanto do AT quanto do NT (Lv 18:22; Lv 20:13; Rm 1:26, 27; 1Co 6:9, 10; 1Tm 1:9, 10), mas que eles consideram legítima pelo fato de Jesus nunca a haver reprovado.5 Que Jesus tenha reafirmado o projeto criador de Deus de que o casamento é entre um homem e uma mulher apenas (Mt 19:4-6; cf. Gn 2:21-24), é irrelevante para eles, o que demonstra a forma tendenciosa com que leem as Escrituras.6

O problema, porém, vai além. O princípio cristológico, como eles o articulam, não passa no próprio teste. Se Jesus é a norma, seria de se esperar que Ele afirmasse tal princípio. Um mínimo de coerência requereria isso. Mas Jesus jamais sequer sugeriu que, com Sua vinda, as Escrituras houvessem perdido sua relevância ou se tornado secundárias. Muito pelo contrário, Jesus sempre reconheceu a autoridade das Escrituras (Mt 5:17-20; Lc 16:29-31; Jo 5:39-47). Ele pautou Sua vida e Seu ministério por elas (Mt 4:4, 7, 10; Mt 21:12, 13; Lc 4:17-21) e criticou tanto os líderes judaicos quanto os próprios discípulos por não crerem em tudo o que o Moisés e os Profetas disseram (Jo 5:39, 40, 45-47; Lc 24:25), e, no caso específico dos escribas e fariseus, por invalidarem a Palavra de Deus por causa de suas próprias tradições (Mt 15:3-9; cf. Mc 7:6-12). Mais importante ainda foi Jesus haver apelado para as Escrituras para justificar Suas ações e revindicações (Mt 12:3-6; Mt 21:5, 15, 16, 42, 43; Lc 24:27; Jo 3:14, 15; Jo 12:12-15), em vez de usar Sua autoridade para diminuir-lhes a autoridade. Para Jesus, era imprescindível que as Escrituras se cumprissem (Mt 5:17, 18; Mt 13:13-15; Mc 14:49; Lc 4:17-21; Lc 21:20-22; Lc 22:36, 37; Lc 24:44; Jo 13:18, 19; Jo 15:23-25). Elas eram a mais pura expressão da verdade (Jo 17:17) e permaneceriam válidas enquanto céu e terra existissem e tudo não tivesse seu devido cumprimento (Mt 5:18).

Sim, Jesus afirmou que Ele é a verdade (Jo 14:6), mas Ele também disse que a Palavra de Deus é a verdade (Jo 17:17). Por que, então, jogar um contra o outro como se fossem mutuamente excludentes? A impressão que fica é que a verdade realmente não importa para os progressistas e que o apelo que fazem a Jesus não passa de uma cortina de fumaça para encobrir arbitreariedades interpretativas. Quando nos lembramos de que o único Jesus que temos é o Jesus das Escrituras, fica evidente que toda tentativa de se criar uma descontinuidade entre Jesus e as Escrituras carece de qualquer legitimidade (cf. At 17:11; At 18:28; Rm 1:2-4; Rm 16:25, 26). Sem as Escrituras, não há Jesus.7

A Transcendência de Deus

Ao rejeitar a inspiração e a autoridade das Escrituras Sagradas, o liberalismo teológico acabou rejeitando a noção bíblica de Deus, substituindo-a por uma de contornos panteísticos.8 Uma das características mais fundamentais do Deus bíblico é Sua transcendência. Ele é o Criador de todas as coisas e, portanto, distinto da criação (Gn 1:1; Sl 121:2; Pv 16:4; Jr 32:17; Jo 1:3; At 17:29; Cl 1:16, 17). Ele reside acima e além de tudo (Dt 4:39; Sl 8:1; Sl 57:5; Is 40:22; At 7:49), embora possa intervir no mundo no momento e da maneira em que, em Sua soberania, julgar apropriados (Jó 38:1; Sl 77:14; Sl 107:20; Jo 1:14; Rm 8:26; Gl 4:4). Mas, o Deus bíblico também é imanente. Ele mantém tudo o que existe por Seu infinito poder (Sl 36:6; At 17:28; Cl 1:17; Hb 1:3). Nenhum pardal existe sem que Deus o saiba ou proveja para sua subsistência (Mt 5:26; Mt 10:29, 30). Apesar de habitar a eternidade, Ele habita também com o contrito e abatido de espírito (Is 57:15). Ele é Pai (Mt 6:9). Ele ama (Jo 3:16). Ele cuida (Sl 40:17). O liberalismo, porém, abandonou a noção da transcendência de Deus ao ponto de Deus Se confundir o mundo. Eles usam o termo “Deus” para qualquer poder ou força atuante no mundo, quer seja minúsculo como a vida dos organismos microscópicos ou colossal como o movimento das galáxias nas esferas celestiais. Deus deixa de ser um Ser distinto da criação (ou de nós mesmos) para ser parte dela (ou de nós). Mesmo que tal representação de Deus não seja consistentemente panteística, ela tem várias afinidades com o antigo panteísmo pagão.9

Os progressistas seguem praticamente na mesma direção. Eles preferem o termo panenteísmo para seu conceito de Deus, definindo-o como a crença de que Deus está em tudo e tudo está em Deus. Assim como os liberais, eles têm a tendência de ver Deus como operando apenas por meio de processos naturais, em vez de por meio de intervenções radicais na natureza (o que chamamos de “milagres”). É como se o mundo fosse, de alguma forma, co-criador com Deus. Logo, eles não veem problemas em aceitar a teoria da evolução, que seria, segundo eles, o meio pelo qual Deus realiza Seus propósitos.10 E o que não falta são tentativas de harmonizar o relato bíblico da criação com os dogmas evolucionistas.11 E se somos o resultado de um processo evolutivo, então não surpreende que tanto liberais quanto progressistas estejam abertos, por exemplo, a outros tipos de sexualidades que não necessariamente a bíblica, a qual reconhece a relação sexual apenas entre um homem e uma mulher e no contexto do casamento. Afinal, se a vida está em constante desenvolvimento, como eles o assumem, então a ética humana também está, ainda mais se Deus está inserido nesse desenvolvimento e é parte dele.

O panenteísmo também assume que o próprio Deus experimenta mudanças, contrariando o conceito bíblico da imutabilidade divina (Nm 23:19; Sl 102:25-27; Is 40:8; Ml 3:6; Hb 13:8). Por causa do livre-arbítrio das criaturas, o mundo experimenta mudanças, e para que o conhecimento que Deus tem de Suas criaturas possa ser real, dizem os progressistas, Ele deve Se ajustar às Suas criaturas. Deus deve Se tornar parte do objeto que muda para que Ele possa ter um perfeito conhecimento das mudanças. Ou seja, à medida que o mundo muda, Deus muda. Portanto, Deus cresce, Deus Se torna. Tudo o que acontece afeta Deus e provoca Nele mudanças. “As coisas que fazemos e as decisões que tomamos”, diz Wolsey, “influenciam as estratégias e as escolhas de Deus ao lidar conosco e com o resto da humanidade”.12 Nas palavras de John Shelby Spong, “temos que nos distanciar deste Deus do teísmo sobrenatural que põe em perigo nossa humanidade e retornar para um Deus que permeia a vida tão profundamente que nossa humanidade se torna o próprio meio pelo qual nós experimentamos a Presença Divina”.13

O abandono da transcendência divina tem consequências gravíssimas. O que está em jogo é a estabilidade tanto física quanto moral do universo; ambas dependem da transcendência e da imutabilidade de Deus (Jó 38:4-38; 1Sm 15:29; Sl 102:12, 25-28; Ml 3:6; Hb 13:7-9; Tg 1:17). Pecado só é pecado porque Deus é eternamente santo e imutável. Conquanto Ele possa revelar Sua vontade por etapas (revelação progressiva), a alegação de que Deus muda ou de que está sujeito à volatilidade humana é, no mínimo, querer humanizá-Lo ou torná-Lo mera projeção das nossas próprias idéias e conceitos. “Isso rouba Deus de Sua natureza divina e a religião de seu firme fundamento.”14 Isso também joga por terra qualquer possibilidade de que a história seja o desenrolar de um plano maior, soberano (cf. Sl 33:11-21; Hc 1:5-11; At 2:23; At 17:31; Rm 8:28; Gl 4:4). Compete a nós fazermos as escolhas corretas, não a Deus Se ajustar aos nossos gostos, limitações ou contingências.

Pecado e Redenção

Quanto menos a transcendência de Deus é enfatizada, mais positiva é a visão que se tem do ser humano. Ou seja, quando Deus diminui, o homem cresce. Não nos admira que o progressismo, assim como o liberalismo, sejam essencialmente humanísticos. O homem é posto no centro e suas supostas virtudes e potenciais são o que determinam sua ética e filosofia de vida. Isso significa que a doutrina bíblica do pecado como algo hereditário e universal é rejeitada. O pecado é concebido como um ato individual e geralmente no contexto da injustiça social. Adão perde a relevância como aquele em quem todos nós pecamos e morremos (Rm 5:12, 16-19; 1Co 15:22) e passa a ser visto mais como alguém que nos legou um péssimo exemplo, como já dizia Pelágio na virada do quarto para o quinto século na nossa era. Na verdade, a história da queda não passa de um relato fictício destinado, quando muito, a ilustrar a verdade de que qualquer pessoa pode acabar cedendo aos seus impulsos e vir a pecar.15 Pecado, porém, “não pode ser transmitido” ou “imputado à descendência do pecador”.16

A consequência inevitável do abandono da doutrina bíblica do pecado é a rejeição de outra doutrina: o sacrifício expiatório de Cristo (substituição penal). Para liberais e progressistas, tal doutrina remete a práticas pagãs de sacrifício infantil contrárias ao amor e à bondade de Deus revelados nas Escrituras. Uma coisa leva à outra: o abandono da transcendência de Deus leva ao abandono da doutrina do pecado, que por sua vez leva ao abandono do conceito de sacrifício substitutivo. Em uma citação de profundo significado teológico, Ellen G. White alertou que, “seguidas até à sua conclusão lógica”, teorias panteizantes de Deus inevitavelmente “removem a necessidade da expiação e fazem do homem o seu próprio salvador”.17

Alguns progressistas veem com bons olhos a chamada teoria da influência moral, segundo à qual a morte de Jesus não se destinava a expiar o pecado humano, mas tão somente a nos impressionar o coração com o senso do amor de Deus e assim nos levar ao arrependimento. Ou seja, Jesus morreu por nós, não em nosso lugar.18 Outros consideram a morte de Jesus apenas como um exemplo de abnegação e autossacrifício ou ainda como uma tragédia permitida por Deus para trazer paz e restauração sociais.19 Embora alguns também admitam que Jesus morreu para derrotar as forças do mal,20 praticamente todos repudiam a noção de sacrifício expiatório. Não há dúvida de que a cruz cumpre vários propósitos: ela revela o amor de Deus para conosco (Jo 3:16; Jo 15:13; Rm 5:8; 1Jo 3:16), consiste em um exemplo para nós (Fp 2:5-8; 1Pe 2:21) e assinala a vitória de Deus no conflito contra o mal (Hb 2:14, 15; 1Pe 3:18, 19), mas a Bíblia também é clara ao dizer que Jesus morreu em nosso lugar como expiação pelo nosso pecado (Rm 3:24-26; 2Co 5:14; Gl 3:13; 1Pe 2:24; Hb 9:26; Hb 10:4; cf. Cl 1:20). “Ele tomou sobre Si as nossas enfermidades. […] Foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre Ele, e pelas Suas pisaduras fomos sarados. […] O Senhor fez cair sobre Ele a iniquidade de nós todos” (Is 53:4, 5).21

O problema com os progressistas (e liberais) é que, quando muito, eles veem a justiça divina meramente como justiça distributiva (justiça social) e não como justiça retributiva,22 que para eles é contrária ao amor. É como se Deus, por ser amor, não pudesse condenar. Segundo as Escrituras, porém, justiça é um atributo tão essencial a Deus quanto o amor (Dt 32:4; Jó 37:23; Sl 9:7; Sl 33:4, 5; Sl 89:14; Is 5:6; Is 30:18). Deus não apenas age de plena conformidade com Seu caráter santo, mas também administra o Universo de acordo com ele. Isso significa que Deus não pode deixar o pecado impune, visto que o pecado é uma violência contra Seu caráter e governo (Gn 2:17; Dt 7:10; Sl 58:11; Rm 6:23; Rm 12:19).23 E se Jesus é o padrão, como dizem os progressistas, então convém lembrar que Ele mesmo destacou o aspecto retributivo (condenatório) da justiça divina no contexto da impenitência humana (Mt 13:36-43, 47-50; Mt 18:23-35; Lc 17:26-32; cf. Mt 3:10-12). 

A justiça de Deus, porém, não é arbitrária ou vingativa como frequentemente acontece com a justiça humana. Justiça sem amor é intolerância; amor sem justiça é condescendência. E se justiça é tão essencial ao caráter de Deus quanto o amor, então ambos os atributos são inseparáveis. Deus não pode ser só justiça num momento e só amor em outro. Sua santidade exige que Ele sempre aja de conformidade com aquilo que Ele é. E nada poderia ser tão surpreendente como o plano por Ele idealizado para resolver o problema do pecado. A cruz é a expressão máxima do caráter de Deus. Ela demonstra que Deus é amor sem deixar de ser justiça, e justiça sem deixar de ser amor. Achar que Deus poderia salvar sem a cruz é desmerecer tanto a gravidade do pecado e quanto a santidade de Deus.24 A morte substitutiva de Cristo permite que Deus nos salve e, ao mesmo tempo, que o pecado receba sua devida punição. “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os Seus juízos, e quão inescrutáveis, os Seus caminhos!” (Rm 11:33).

Justiça Social

Sob a influência do pós-modernismo, os progressistas desprezam a cosmovisão bíblica e adotam um imediatismo extremo e essencialmente humanístico. Uma das características do pós-modernismo é exatamente a crítica a toda e qualquer metanarrativa, que é um relato amplo (intelectual ou religioso) que permite integrar os eventos históricos e dar sentido à vida. Aos poucos, porém, essa crítica gerou certa conscientização prática, e foi nesse processo que o pós-modernismo acabou sendo contaminado por valores marxistas.25 A premissa de que a verdade nada mais é que um exercício de poder, o qual por sua vez é usado como instrumento de opressão, alimentou o desejo de se fazer algo a respeito, resultando em todo esse ativismo político-social dos dias atuais. Os progressistas abraçaram esse ativismo. Eles são pródigos em denunciar as estruturas supostamente opressoras da cultura ocidental – envolvendo etnia, gênero, classe social e até meio ambiente –, mas o fazem de forma completamente descontextualizada da cosmovisão bíblico-cristã. Eles rejeitam o relato bíblico da criação, negam o conflito cósmico entre o bem e o mal (a metanarrativa bíblica), reduzem pecado à injustiça social e destruição da natureza, redefinem o plano da redenção e subvertem o governo soberano de Deus. E o pior de tudo é a tentativa de arrastar Jesus para esse lamaçal ideológico, retratando-O não como um Salvador do pecado, mas como um reformador político-social.

A natureza divina de Jesus e o significado da encarnação pouco ou nada importam para os progressistas. Ser cristão, diz Wolsey, é “seguir a religião de Jesus, […] não a religião acerca de Jesus”.26 Alguns são explícitos em dizer que Jesus não passava de “um humilde mortal”27 e Sua suposta divindade não é nada mais que uma construção teológica produzida a partir de uma interpretação bíblica equivocada e até desonesta.28 Eles apelam para teorias ultrapassadas de datação e composição dos evangelhos para tentar demonstrar como foi que Jesus Se tornou Deus no imaginário cristão primitivo.29 Adorar o Jesus divino, dizem eles, é fazer um ídolo daquilo que é temporal.30 Alguns não chegam a tanto, mas de uma forma ou de outra todos tiram o foco da origem divina de Jesus e o verdadeiro propósito de Sua vinda ao mundo para enfatizar as questões sociais. Se perguntados sobre Jesus, os progressistas vão dizer que Ele foi um grande mestre moral que nos ensinou a aceitar a todos indistintamente, a lutar pelos excluídos e oprimidos e a viver uma vida de abnegação e respeito pelo próximo. Para eles, a essência do evangelho se resume a seguir o exemplo de Jesus.

A divindade de Jesus, porém, é uma das doutrinas mais bem estabelecidas da fé cristã. Ela se fundamenta, de um lado, em passagens em que Jesus é explicitamente descrito como Deus (Jo 1:1-3; Jo 20:28; Hb 1:8, 9; cf. Rm 9:5; Fp 2:6; Tt 2:13; 2Pe 1:1; 1Jo 5:20) ou como tendo atributos divinos, tais como eternidade (Hb 1:8; Hb 13:8), onisciência (Mt 9:4; Jo 2:24-25, 47-50; Jo 21:17), onipresença (Mt 18:20; Mt 28:20) e vida inerente (Jo 1:4; Jo 5:26; Jo 10:17). Além disso, igualmente importantes são as próprias ações e reivindicações de Jesus relatadas nos evangelhos. Por exemplo, Jesus perdoa pecados (Mc 2:5-12), fala do reino de Deus como Seu reino (Mt 12:28; Mt 19:14; Jo 18:36), aceita adoração (Mt 28:9; Jo 20:28; Hb 1:6), recebe orações (Jo 14:14; At 7:59; 1Co 1:2), realiza milagres que exigem poder criador (Jo 2:1-11; Jo 5:1-9; Jo 6:1-14, 16-21; Jo 9:1-7; Jo 11:1-44; Jo 21:1-14) e ordena batizar em Seu nome (Mt 28:19). Jesus também constantemente aplica para Si mesmo passagens que no AT se referem a Jeová (Zc 14:5 em Mt 25:31; Is 8:14, 15 em Lc 20:18; Sl 8:3 [LXX] em Mt 21:16; Ez 36:14 em Lc 19:10; Ml 3:1; Ml 4:5, 6 em Mt 11:10; Mc 1:2; Lc 7:27; Is 40:8 em Mc 13:31). Tais passagens demonstram que, no mínimo, Jesus pensava de Si mesmo em termos e linguagem que o AT utiliza para Deus (Jeová). Por fim, o Evangelho de João claramente se refere a Jesus como sendo o próprio Jeová do AT (Jo 1:45; Jo 5:46; Jo 8:56, 58; Jo 12:41; cf. Jo 1:17).31

Como bem destacou C. S. Lewis, não faz o menor sentido aceitar a Jesus como um grande mestre moral e não como Deus. “Alguém que fosse meramente um homem e dissesse as coisas que Jesus disse não seria um grande mestre moral. […] A escolha é nossa. Ou Ele era, e é, o Filho de Deus, ou então era um lunático ou coisa pior. Podemos ignorá-Lo, cuspir nEle e matá-Lo como se Ele fosse perverso [em inglês, a demon], ou então cair aos Seus pés e chamá-Lo de Senhor e Deus. Mas, que ninguém venha com essa bobagem condescendente de que Ele era um grande mestre humano. Ele não nos deu essa opção, nem pretendeu dá-la.”32

Conquanto tenha falado sobre os deveres sociais de Seus seguidores (Mt 5:44-48; Mt 22:39; Mt 24:31-46; Mc 9:38-41; Lc 11:42), Jesus jamais Se engajou em qualquer militância social ou política. A insatisfação dos progressistas com a injustiça social pode até ser legítima, mas eles cometem um grave erro e um enorme desfavor ao cristianismo ao tentar retratar Jesus como um reformador social, e não como um salvador do pecado. Jesus Se compadecia, sim, dos menos favorecidos e tentava diminuir-lhes o fardo, mas o escopo de Sua missão era sobretudo espiritual (cf. Mt 1:21; Lc 4:18-21; Lc 19:10; Jo 8:34-36; At 10:38). Ele atendia a todos igualmente, quer fossem ricos ou pobres (Mc 10:17-22; Lc 8:1-3; Jo 4:46-53), homens ou mulheres (Mc 5:24-34; Lc 8:1-3; cf. Mt 9:1-8; Jo 5:1-9), nacionais ou estrangeiros (Mt 8:28-34; Mc 7:24-30; Lc 17:11-19; cf. Mt 15:24), fariseus ou publicanos (Lc 7:36-50; Jo 3:1-15; cf. Mt 9:9-13; Lc 19:1-10), oprimidos ou opressores (Mt 8:5-13). Ele nunca priorizou um grupo em detrimento do outro (Mt 11:28-30). Ele sempre rejeitou honras temporais ou mesmo a insinuação de que era Seu dever subverter a ordem sócio-política predominante. Quanto pressionado a assumir uma posição contra a opressão romana, Ele Se recusou a fazê-lo, frustrando a investida dos líderes judaicos (Mc 12:13-17) e a empolgação do povo simples (Jo 6:1-15) e até dos discípulos (Mc 10:20-24; cf. Lc 24:21). Jesus tinha absoluta consciência de que Seu reino não era deste mundo (Jo 18:36) e que plena restauração social só seria possível no mundo vindouro (Mt 5:1-12; Lc 18:1-8), quando pecado e pecadores não mais existissem (cf. Mt 22:1-14; Mt 25:31-34).

Que os crentes têm uma importante responsabilidade social, não se discute (Mt 5:43-48; Mt 22:34-40; Lc 3:10-14; Rm 13:8-10; Gl 5:14; Tg 1:27; Tg 5:1-6). O evangelho traz consigo uma demanda inerente que deve transformar a forma como vemos o mundo e como nos relacionamos com os outros. A questão, portanto, não é se, mas como vamos cumprir essa demanda. Certamente não o será por meio de qualquer forma de ativismo ou militância, que apenas realça as diferenças, abre feridas e divide ainda mais a sociedade, mas por meio do exercício afirmativo da fé, bondade e civilidade que devem caracterizar a vida do crente (cf. Mt 5:13-16; Tt 2:7-10; Tt 3:1, 2; 1Pe 2:12-17; 1Pe 3:8-17). O princípio do amor é supremo e deve permear todas as nossas ações (Mt 22:37-40; Jo 13:34; Rm 13:8-10; 1Jo 4:7-8; cf. Mt 5:43-48; Ef 5:25-33; Fm 1:8-16).

Pluralismo Religioso

Quando é para diminuir a importância das Escrituras, os progressistas recorrem ao chamado princípio cristológico, mas quando é para falar de outras religiões, eles relativizam o princípio e negam a exclusividade da fé cristã. Jesus disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por Mim” (Jo 14:6; cf. Jo 1:12; Jo 3:16, 36; Jo 4:22; Jo 5:23; Jo 10:9; Jo 17:3), e os apóstolos levaram isso bem a sério. Pedro declarou: “Não há salvação em nenhum outro, porque debaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4:12; cf. At 16:30, 31; Rm 3:23-26; Rm 10:9; 1Co 3:11; 1Co 8:6; Ef 4:4; 1Tm 2:5; Hb 5:8, 9; Hb 12:2; 1Jo 2:2; 1Jo 5:11, 12, 20). Os progressistas, porém, são pluralistas, ou seja, eles acreditam que haja uma variedade de caminhos alternativos a Deus e que praticantes de outras religiões que levam a fé a sério serão igualmente salvos. Alguns progressistas chegam ao ponto de achar que todas as religiões estão praticamente no mesmo nível.33 Nessa mesma linha, eles também ofuscam os limites entre o sagrado e o profano, o espiritual e o secular. Ao abrir mão da exclusividade de Cristo, eles se esforçam por interpretar o evangelho à luz de ideologias marxistas, por utilizar conceitos humanísticos para tentar compreender o ser humano e até por introduzir no culto cristão elementos que lhe são estranhos, como, por exemplo, músicas seculares.

Esse, porém, é mais um exemplo de como os progressistas são tendenciosos e adeptos das meias-verdades. Eles não estão completamente errados. O ensino bíblico é claro: Deus Se revela não só por meio das Sagradas Escrituras, mas também por meio da natureza e a atuação interior do Espírito (Sl 19:1-4; Ec 3:11; Rm 1:19-21; Rm 2:14, 15). Tudo aquilo que precisa ser conhecido para que haja uma resposta de fé e obediência sempre esteve disponível ao ser humano (Rm 1:19-21). Talvez seja por isso que existam fragmentos de verdade, mesmo acerca de Deus, em vários sistemas religiosos ou filosóficos humanos.34 Paulo reconheceu isso em seu discurso em Atenas (At 17:23-29). E todo aquele que responde favoravelmente a tais revelações é, sim, considerado justo aos olhos de Deus (Rm 2:14, 15).35 Mas, nada disso anula a exclusividade de Cristo, uma vez que nem a natureza nem a consciência falam do plano da redenção, de modo que o imperativo divino é que “todas as pessoas, em todos os lugares, […] se arrependam” (At 17:30). Mesmo não sendo em si mesmo uma barreira para a salvacão, o desconhecimento do evangelho não deve ser usado como pretexto para noções pluralistas, mas como motivação evangelística (Rm 10:14, 15). O testemunho da fé é uma demanda inerente ao evangelho de Cristo (Mt 24:14; Mt 28:18-20; Lc 24:45-49; At 1:8).

Não, porém, para os progressistas. Eles são profusos em discursos sociais, mas pouco ou nada fazem para promover o verdadeiro evangelho entre aqueles que não o conhecem. Retalhos de verdade eventualmente encontrados em religiões ou filosofias humanas não santificam essas religiões ou filosofias, muito menos anulam o significado de Cristo ou a necessidade da pregação (1Co 1:17-21). Deus não quer salvar pessoas apenas na ignorância (At 17:30). Pelo contrário, Ele deseja que Sua vitória sobre as forças do mal e o poder transformador da Sua graça sejam conhecidos por todos os homens (Mt 5:16; Ef 3:10; Tt 2:14; Tt 3:8; 1Pe 2:9; 1Pe 3:12). Se é por meio de Cristo apenas que tudo neste Universo, tanto nos céus como na terra, foi reconciliado com Deus (Cl 1:20) e se é pela cruz, mais que por qualquer outra coisa, que a “profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus” são revelados (Rm 11:33), então não há como tergiversar: ou Cristo é único em nossa devoção, lealdade e pregação ou Ele não é nada para nós (Fp 3:8; Ef 4:4; Cl 3:11). O zelo de Deus exige exclusividade (Êx 34:14; Dt 6:15; Js 24:19; cf. Mt 6:24).

Hipergraça

Os progressistas se dizem pregadores da graça. Não haveria nada de errado com isso não fosse o fato de muitos deles, se não todos, usarem a graça de Deus para desmerecer importantes ensinos das Escrituras, como arrependimento, confissão de pecados, obediência, julgamento e diversos outros. Vários autores progressistas afirmam que o cristão não pode cometer o pecado imperdoável e que não há como perder a salvação, visto que em Cristo todos os pecados – passados, presentes e futuros – são perdoados e não precisam sequer ser confessados.36 Alguns chegam ao ponto de sugerir que todos os seres humanos, independentemente de aceitarem ou não a graça de Deus, serão finalmente salvos, crença conhecida como universalismo.37 Em geral, cristãos progressistas também são antinominianos, ou seja, contrários à lei. Eles alegam que a lei não foi dada para ser guardada, mas apenas “para reduzir o homem ao pó [em inglês, bring man to the end of himself], e assim fazê-lo sentir a necessidade de um Salvador”.38 Segundo eles, a lei não é parte da nova aliança. A lei põe o foco em nós mesmos, ao passo que o foco da nova aliança é Jesus.39 Falar da lei como um guia para a vida é tratar a graça como tão-somente “um azeite que lubrifica as engrenagens do esforço próprio”.40 Qualquer tentativa de introduzir a lei na vida cristã, portanto, não passa de legalismo farisaico. Essas são algumas das ênfases dessa nova onda de ensino progressista comumente chamada de hipergraça.

Não se pode negar que a graça é a maior doutrina da fé bíblica e o que mais a distingue das religiões de feitio humano. Sem exceção, todas as religiões pagãs estão fundamentadas no princípio do mérito de que os deuses precisam, de alguma forma, ser satisfeitos.41 O interesse dos progressistas em exaltar a beleza e o poder da graça, portanto, pode até ser louvável, mas a maneira tendenciosa e permissiva com que o fazem, a despeito da bela retórica, mais uma vez denuncia o desprezo deles para com as Escrituras. Os escritores tanto do AT quanto do NT falam muito sobre a necessidade do arrependimento, mas os pregadores da hipergraça insistem que tal mensagem não se aplica aos que já experimentaram a graça perdoadora de Deus. É como se o perdão fosse irrevogável, algo como “uma vez salvo, salvo para sempre”. As palavras do próprio Jesus às igrejas do Apocalipse, porém, claramente contradizem tal raciocínio (Ap 2:4, 6, 20; Ap 3:3, 15-19). Ainda que, no que depender de Deus, nada nos separará do Seu amor, e ainda que a segurança em Cristo seja uma das grandes verdades do evangelho (Is 43:25; Jo 6:37; Rm 8:1, 35-39), a ideia de que o cristão não possa, por sua própria iniciativa ou negligência, perder a salvação não encontra qualquer respaldo bíblico (cf. 1Co 10:12, 13; Gl 5:4; Cl 1:21-23; Hb 6:4-6; Hb 10:26-27, 35; 1Jo 1:6-10). É possível, sim, decair da graça, e todos, mesmo os crentes, são responsáveis por suas escolhas e por elas terão que prestar contas a Deus (2Co 5:10). 

Como regra, os progressistas também demonstram uma verdadeira aversão à lei. No esforço por negar salvação pelas obras, eles acabam dizendo que o crente não tem mais nada que ver com a lei. Que a salvação é única e exclusivamente pela graça, não há a menor dúvida (cf. At 15:11; Rm 3:28; Rm 11:5, 6; Gl 2:21; Ef 2:8, 9; Tt 2:11). Também não há dúvida de que, para aquele que está em pecado, a lei exerce um papel condenatório – ela revela o pecado e, ao assim fazer, condena o pecador (Rm 3:19; Rm 4:15; Rm 7:7-11; 2Co 3:7; Gl 3:22, 23). “A lei de Deus, pronunciada do Sinai com terrível solenidade, é para o pecador o pronunciamento de sua condenação. É da alçada da lei condenar, mas não existe nela nenhum poder para perdoar ou redimir”42 (cf. Êx 20:18, 19). E a razão pela qual a lei condena não é outra senão fazer com que o pecador sinta a necessidade de Cristo e vá a Ele em busca de perdão (cf. Rm 10:4; Gl 3:24). Uma vez tendo ido a Cristo, ele não está mais “sob a lei”, o que significa dizer que ele não está mais sob a condenação da lei (Rm 6:14; Gl 3:25; Gl 5:18). Mas, há então um segundo aspecto da lei que os progressistas insistem em desprezar: a lei no coração. Pela ação do Espírito, a lei é gravada no coração e se torna um princípio ativo que opera de dentro para fora e passa a guiar a vida do crente (Hb 8:8-12; cf. Jr 31:33-34; Ez 36:27; Rm 8:3-11; 1Co 2:11; Gl 5:16-24).43 Afinal, Deus enviou Seu Filho “a fim de que a exigência da lei se cumprisse em nós, que não vivemos segundo a carne, mas segundo o Espírito” (Rm 8:4). Longe de ser legalismo, isso é apenas o reconhecimento de que a lei é santa, justa e boa (Rm 7:12, 14), de que ela consiste numa expressão do caráter santo e justo de Deus (cf. Sl 19:7-10; Sl 111:7, 8; Sl 119:142, 151, 152), e de que a lei no coração – ou seja, transformação moral –, é parte essencial da nova aliança.44 Todo o plano da redenção se destina a restaurar no homem a imagem do Criador (Rm 8:29; 1Co 15:49; 2Co 3:18; Cl 3:10; 1Jo 3:1, 2) e colocá-lo novamente em harmonia com Deus (Rm 3:31; Rm 6:15-22; Rm 8:2-4; 2Co 5:17). Embora não haja perfeição moral do lado de cá da eternidade (Rm 8:19-24; Fp 3:12-14), negar a ação transformadora e santificadora da graça é, com efeito, negar a própria graça e o propósito salvífico de Deus (Tt 2:11-14; Tt 3:4-7).

Retorno à Bíblia

Muito mais poderia ser dito. Por exemplo, alguns progressistas negam, ou hesitam em afirmar, que Jesus tenha ressuscitado dentre os mortos,45 que aqueles que morreram em Cristo hão de ressuscitar de forma corpórea46 ou que o Céu seja um lugar literal onde os redimidos estarão na presença de Deus.47 Se se dizem adventistas, nada falam sobre a mensagem e a identidade da igreja, tão pouco demonstram qualquer compromisso denominacional, mesmo que sejam custeados pela denominação. Alguns enfatizam a suposta liberdade do Espírito (cf. Jo 3:8) para advogar um cristianismo subjetivo, fluido, até mesmo contrário ao evangelho (Jo 14:26), ao passo que outros sequer reconhecem o sétimo dia da semana como o sábado do Senhor. Há também aqueles que veem Pai, Filho e Espírito Santo como apenas uma metáfora do que Deus significa para nós e de como O experimentamos em nossa vida. Alguns se dizem confortáveis em usar outras metáforas, como “Mãe, Filho e Espírito Santo”,48 enquanto, para outros, é o Espírito Santo que representa o aspecto “feminino” do divino e, por isso, dirigem-se a Ele como “Ela”.49 Cristãos progressistas também tendem a valorizar práticas místicas – contemplação, meditação, jejum, técnicas de respiração e relaxamento, mantras, cantilenas e movimentos corporais rítmicos (dança) – como expressões válidas da experiência religiosa. O que se busca, para usar o jargão típico, é se conectar com o divino e vivenciá-lo de forma mais íntima e plena, em vez de apenas explicá-lo por meio do intelecto.50

A lista poderia continuar. Todos esses (e outros) pontos são apenas indicadores de que os progressistas em realidade não reconhecem a autoridade das Escrituras e de que, quando as leem, fazem-no a partir de uma cosmovisão inteiramente diferente da cosmovisão bíblica. E aqui está o cerne do problema: os progressistas não se aproximam da Bíblia nos termos da Bíblia. Eles não aceitam a reivindicação da própria Bíblia de ser a revelação proposicional de Deus, ou seja, de haver Deus realmente falado por meio dos profetas e apóstolos, reivindicação essa encontrada centenas e centenas de vezes tanto no AT quanto no NT .51 Para eles, como já ouvimos até mesmo de púlpitos supostamente adventistas no Brasil, a Bíblia não passa de um livro de histórias; na verdade, estórias. Robert Alter, conhecido professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, fala do AT como “ficção historizada” com propósitos teológicos. Embora ele conceba a possibilidade de alguma base histórica real por detrás dos relatos, a forma como tais relatos chegaram até nós, com todos os seus “adornos folclóricos”, diz ele, não passa de criativa prosa fictícia com significado fluido destinada a ensinar conceitos religiosos ao povo de Israel.52 Sendo assim, qualquer conclusão pode ser legitimada, e é exatamente isso o que vemos entre os progressistas. Eles utilizam a Bíblia, mas se negam a interpretá-la de modo literal e autoritativo.

E é aqui que a discussão termina. Quando não há um terreno comum – o reconhecimento mútuo de que a Bíblia é a Palavra de Deus – não há como discutir detalhes interpretativos. São dois mundos diferentes em que a realidade toda é vista por meio de lentes (pressuposições) diferentes. É verdade que nem todos os progressistas pensam da mesma forma. Há os mais radicais e os menos radicais, mas praticamente todos reinterpretam a Bíblia de acordo com pressuposições humanísticas e pós-modernas. E a razão pela qual eles têm tido algum êxito é que a influência do pós-modernismo no mundo cristão ocidental tem sido avassaladora. Recente pesquisa (2023) entre evangélicos norte-americanos revelou que o número dos que ainda mantêm uma cosmovisão bíblica não passa de 4%;53 entre pastores, 37% apenas, conforme pesquisa anterior (2022).54 As pesquisas indicaram que a grande maioria tanto dos membros (88%) quanto dos pastores (62%) mantêm uma cosmovisão híbrida. Ou seja, a cultura está influenciando a igreja muito mais que a igreja está influenciando a cultura. Mesmo que poucos estejam familiarizados com o pós-modernismo ou saibam como defini-lo, os crentes estão sendo grandemente afetados por ele. É a cultura dos dias atuais. O resultado pode ser visto no seguinte inventário: 56% dos evangélicos norte-americanos acreditam que “Deus aceita a adoração de qualquer religião, incluindo-se o cristianismo, o judaísmo e o islamismo”; 51% acreditam que “Deus aprende e Se adapta a diferentes circunstâncias” (isto é, Deus muda); 70% “concordam fortemente” que “Jesus é o primeiro e maior ser criado por Deus”; 38% veem Jesus como “um grande mestre, mas não como Deus”; 60% dizem que “o Espírito é uma força, não um Ser pessoal” (ao mesmo tempo, 97% dizem concordar que “há um único Deus verdadeiro em três pessoas: Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo”, o que demonstra que muitos estão confusos com relação à sua compreensão de Deus); 27% pensam “que o Espírito Santo pode me dizer para fazer algo que é proibido na Bíblia”, embora 94% concordem que “a Bíblia tem autoridade para dizer o que devemos fazer”; 57% acreditam que “todos pecam, mas todos são bons por natureza” e 65% pensam que “cada um de nós nasce inocente aos olhos de Deus”; 42% acreditam que “a identidade do gênero é uma questão de escolha”, e 46% dizem que “a condenação bíblica do comportamento homossexual não se aplica aos dias de hoje”; 37% concordam que “crença religiosa é um assunto de opinião pessoal, não de verdade objetiva”.55 Os números são chocantes e seria um grande erro pensar que a igreja no Brasil estaria imune a tais distorções.

Ao contrário do que dizem os progressistas, a solução para esse estado de coisas não é o progressismo com todas as suas meias-verdades, revisionismo e mentalidade secular. Tampouco a solução é o fundamentalismo com toda a sua estreiteza de mente, legalismo e espírito crítico. Nem um, nem outro. A solução é um retorno à Bíblia. Pastores e líderes adventistas precisam conhecer os tempos em que vivemos e terem certeza de que o que está sendo pregado de nossos púlpitos é bíblico. O progressismo não o é, visto que rejeita os principais pilares da “fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 1:3). Mais do que nunca, a igreja precisa ser santificada na verdade como encontrada nas Escrituras (cf. Jo 17:17). Ellen G. White declara: “Todos os que dão valor a seus interesses eternos devem estar de sobreaviso contra as incursões do ceticismo. Os próprios fundamentos da verdade serão assaltados. É impossível conservarmo-nos fora do alcance dos sarcasmos e sofismas, dos ensinos insidiosos e pestíferos da incredulidade moderna. Satanás adapta suas tentações a todas as classes. Assalta o analfabeto com o motejo ou zombaria, enquanto enfrenta o que é educado com objeções científicas e raciocínio filosófico, igualmente calculados a suscitar desconfiança nas Escrituras ou desdém por elas. Mesmo jovens de pouca experiência têm a presunção de insinuar dúvidas relativas aos princípios fundamentais do cristianismo. E esta juvenil incredulidade, trivial como é, tem sua influência. Muitos são assim levados a zombar da fé de seus pais, e a fazer agravo ao Espírito da graça (Hb 10:29). Muita vida que prometia ser uma honra a Deus e uma bênção ao mundo foi crestada pelo detestável bafejo da incredulidade. Todos os que confiam nas jactanciosas decisões da razão humana, imaginando poder explicar os mistérios divinos e chegar à verdade desajudados pela sabedoria divina, acham-se enredados na cilada de Satanás.”56

Wilson Paroschi, Professor de Novo Testamento na Universidade Adventista Southern, EUA

Referências:

1 Extraído do Facebook do livro The Kissing Fish: Christianity for People Who Don’t Like Christianity, de Roger Wolsey (Colúmbia: Roger Wolsey, 2011).
2 David M. Felten e Jeff Procter-Murphy, Living the Questions: The Wisdom of Progressive Christianity (Nova York: HarperOne, 2012), xii.
3 Ver Wolsey, p. 192-217.
4 Ao explicar o conceito de “cânon dentro do cânon”, Wolsey declara: “Nós vemos alguns textos bíblicos como mais autoritativos e importantes que outros. Portanto, nós interpretamos aqueles outros textos pelas lentes dos ensinos e valores expressos por aqueles que consideramos mais autoritativos” (Wolsey, p. 211).
5 Por exemplo, K. Darnell Giles, What Did Jesus Say? Why the Bible Does Not Condemn Homosexuality (N.P.: GBC, 2009), p. 195-197. Ver também Wolsey, p. 124-127.
6 Ver a excelente análise por Robert A. J. Gagnon, The Bible and Homossexual Practice: Texts and Hermeneutics (Nashville: Abindgon, 2001), p. 185-228.
7 Para mais informação, Ver Frank M. Hasel, “Christ-centered Hermeneutics: Prospects and Challenges for Adventist Biblical Interpretation”, Ministry, dezembro de 2012, p. 6-9.
8 J. Gresham Machen, Christianity and Liberalism (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1923), p. 62, 63.
9 Millard J. Erickson, Christian Theology (Grand Rapids, MI: Baker, 1983), p. 303.
10 Wolsey, p. 79, 80.
11 Ver, por exemplo, S. Joshua Swamidass, The Genealogical Adam and Eve: The Surprising Science of Universal Ancestry (Downers Grove: IVP, 2021), e William Lane Craig, In Quest of the Historical Adam: A Biblical and Scientific Exploration (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2021).
12 Wolsey, p. 80.
13 John Shelby Spong, citado em Felten e Procter-Murphy, p. 22.
14 Herman Bavinck, Reformed Dogmatics, vol. 2: God and Creation (Grand Rapids, MI: Baker, 2004), p. 158.
15 Felten e Procter-Murphy, p. 112.
16 William N. Clarke, An Outline of Christian Theology (Nova York: Scribner’s Sons, 1922), p. 240, 244.
17 Ellen G. White, Testemunhos Seletos (Tatui, SP: Casa Publicadora Brasilera, 2009), v. 3, p. 269.
18 Felten e Procter-Murphy, p. 110. Sobre a teoria da influência moral, ver Richards Fredericks, “The Moral Influence Theory: Its Attraction and Inadequacy”, Ministry, março de 1992, p. 6-10.
19 Wolsey, p. 157-174.
20 Gregory A. Boyd, “Christus Victor View”, The Nature of the Atonement: Four Views, ed. James Beilby e Paul R. Eddy (Downers Grove: IVP, 2006), p. 23-49.
21 Ver John Stott, Why I Am a Christian (Downers Grove: IVP, 2003), p. 54-56.
22 Felten e Procter-Murphy, p. 168.
23 Sobre a justiça de Deus, ver Erickson, p. 288, 289.
24 Stott, Why I Am a Christian p. 55.
25 Para uma análise, a partir uma perspectiva bíblico-cristã, do assim chamado marxismo cultural, ver Robert S. Smith, “Cultural Marxism: Imaginary Conspiracy or Revolutionary Reality?” Them 44.3 (2019), p. 436-465 (disponível em <www.thegospelcoalition.org/themelios/article/cultural-marxism-imaginary-conspiracy-or-revolutionary-reality/>).
26 Wolsey, p. 58 (grifo original).
27 Felten e Procter-Murphy, p. 182.
28 Robin R. Meyers, Saving Jesus from the Church: How to Stop Worshiping Christ and Start Following Jesus (Nova York: HarperOne, 2009), p. 13.
29 Para um estudo introdutório, ver Mark L. Strauss, Four Portraits, One Jesus: A Survey of Jesus and the Gospels, 2a. ed. (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2020), p. 415-461. Ver também Wilson Paroschi, “Archaeology and the Interpretation of John’s Gospel: A Review Essay”, JATS 20 (2009), p. 67-88.
30 Ver Meyers, p. 13-34.
31 Para mais detalhes, ver Wilson Paroschi, “John”, em Andrews Bible Commentary, ed. Ángel M. Rodriguez (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2022), 2:1406, 1407.
32 C. S. Lewis, Mere Christianity (Nova York: HarperOne, 2001), p. 55, 56.
33 Ver Holsey, p. 183-191; Felten e Procter-Murphy, p. 221-228.
34 Ellen G. White, Educação (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016), p. 13, 14.
35 Ver Wilson Paroschi, “Intentional Design and Innate Morality: Creation in Romans 1-2”, em The Genesis Creation Account and Its Reverberations in the New Testament, ed. Thomas R. Shepherd (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2022), p. 277-284.
36 Joseph Prince, Destined to Reign (Tulsa: Harrison, 2007), p. 90, 91, 232-234.
37 De acordo com Wolsey, universalismo significa que, “independentemente de qualquer coisa, o amor vence. […] Ninguém é deixado para trás”. Ele acrescenta: “Nem todos os cristãos progressistas ensinam salvação universal nesse sentido, mas muitos o fazem” (p. 153). Para uma breve análise do universalismo, ver Thomas R. Schreiner, Paul, Apostle of God’s Glory in Christ: A Pauline Theology (Downers Grove: IVP, 2001), p. 182-188.
38 Prince, p. 123.
39 Prince, p. 196.
40 Paul Ellis, The Gospel in Twenty Questions (Beach Haven: KingsPress, 2013), p. 2.
41 Ver Josh McDowell e Don Stewart, Handbook of Today’s Religions (Nashville: Nelson, 1983).
42 Ellen G. White, Mensagens Escolhidas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016), v. 1, p. 236.
43 Louis Berkhof fala em três usos da lei: (1) o uso civil, no qual a lei tem o propósito de restringir o pecado e promover a justiça; (2) o uso pedagógico, que é trazer o homem sob a convicção do pecado, torná-lo cônscio de sua inabilidade de satisfazer as demandas da lei e assim conduzi-lo a Cristo; e (3) o uso normativo, em que a lei é uma regra para a vida, lembrando o crente de suas responsabilidades e guiando-o no caminho da vida e salvação. Esse terceiro aspecto, ascrescenta Berkof, é negado pelos antinominiamos (Systematic Theology [Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1938], p. 614, 615).
44 Ver G. K. Beale, A New Testament Biblical Theology: The Unfolding of the Old Testament in the New (Grand Rapids, MI: Baker, 2011), p. 731-733.
45 Felten e Procter-Murphy, p. 116-125; Wolsey, p. 106, 107.
46 Wolsey, p. 178, 179.
47 Wolsey, p. 176, 177.
48 Wolsey, p. 91.
49 Wolsey, p. 93.
50 Felten e Procter-Murphy, p. 220-228. De acordo com Carl McColman, “misticismo é, em última análise, meramente a arte de ir ao céu antes de morrermos – ou talvez melhor dizendo, a arte de deixar com que o céu emerja dentro de nós agora” (The Big Book of Christian Mysticism: The Essential Guide to Contemplative Spirituality [Mineápolis: Broadleaf, 2021],p. 255).
51 Ver D. A. Carson, The Gagging of God: Christianity Confronts Pluralism (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2011), p. 141-345.
52 Robert Alter, The Art of Biblical Narrative, ed. rev. (Nova York: Basic Books, 2011), p. 12, 40. 
53 Ver https://www.arizonachristian.edu/wp-content/uploads/2023/02/CRC_AWVI2023_Release1.Pef
54 Ver https://www.arizonachristian.edu/2022/05/12/shocking-lack-of-biblical-worldview-among-american-pastors/
55 Ver https://thestateoftheology.com/
56 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 600, 601.

Wilson Paroschi: Professor de Novo Testamento na Universidade Adventista Southern, EUA