A coisa que poderia parecer mais estranha para um israelita seria, por certo, que pudesse surgir alguém se dizendo sumo sacerdote, e que não pertencesse à tribo de Levi. Como sabemos, essa tribo foi inicialmente escolhida por Deus (Êxo. 32:25-29), ao que parece, por ter permanecido fiel, ao ser feito o bezerro de ouro. É verdade que Arão, seus filhos e o próprio Moisés, pertenciam a ela, o que pode ter aumentado a simpatia de Deus em seu favor.
Seja como for, o fato é que “o Senhor separou a tribo de Levi, para levar a arca do concerto do Senhor, para estar diante do Senhor, para O servir, e para abençoar em Seu nome até o dia de hoje” (Deut. 10:8). Era, portanto, contrário à decisão tomada por Deus, considerar sacerdote um membro de outra tribo que não aquela por Ele indicada. E nenhum leitor das Escrituras, que as examinasse sem uma iluminação especial do Espírito Santo, teria verificado a possibilidade de uma alteração naquela decisão celestial.
Não obstante, o autor da carta aos Hebreus verificou que, não pertencendo à tribo de Levi, mas à de Judá (Heb. 7:14), Jesus, o Filho de Deus, não só é Sumo Sacerdote, mas um “grande Sumo Sacerdote” (Heb. 4:14). E chegou a essa conclusão pelo menos de três maneiras: Uma delas, baseada na afirmação da promessa divina de estabelecer com a casa de Israel e com a casa de Judá (Heb. 8:8) um novo concerto; outra, fundamentada na declaração bíblica (Sal. 110:4) de que nosso Senhor seria “sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedeque”; e, em terceiro lugar, com base no fato de que o sacerdócio de Cristo contava com um juramento (Heb. 7:20) que não deveria falhar.
Como se sabe, logo depois de ter deixado o Egito, o povo israelita fez um concerto com Deus (Êxodo 19), concerto este logo quebrantado pelos hebreus. O pacto firmado no Sinai entre Deus e os israelitas abrangia muitas coisas, entre as quais a lei que determinava a ordenação de sacerdotes para o ministério (Heb. 7:11). O autor de Hebreus argumenta que, “se aquele primeiro (concerto) fora irrepreensível, nunca se teria buscado lugar para o segundo” (Heb. 8:7).
O segundo concerto a que faz alusão o escritor, é aquele que é mencionado por Jeremias (Jer. 31:31-33). Nele, estava previsto um dos resultados mais característicos do serviço sacerdotal de Cristo — Sua misericórdia para com os pecadores, e esquecimento das transgressões (Heb. 8:12). Comentando mais uma vez as mesmas declarações do concerto, o autor conclui: “Ora, onde há remissão destes, não há mais oblação pelo pecado” (Heb. 10:18).
O texto de Jeremias 31:31 a 33, comumente usado para mostrar que os mandamentos de Deus só mudaram de tábuas de pedra para as tábuas de carne do coração, mas não deixaram de existir — o que não deixa de ser verdade — é, portanto, um texto inteiramente relacionado com a obra sacerdotal de nosso Senhor. Revela a transição que haveria de sofrer o antigo sistema de ministério, de um sistema “repreensível”, porque incapaz de extinguir o pecado, para um sistema em que o pecado seria perdoado e esquecido, segundo comenta o escritor de Hebreus.
A ORDEM DE MELQUISEDEQUE
Se Jesus, como Sumo Sacerdote, não pertencia à tribo de Levi, mas à de Judá (Heb. 7:13 e 14), em virtude do novo concerto estabelecido com a casa de Israel, a ordem sacerdotal à qual pertencia também era diferente. Seu sacerdócio tinha como antecedente Melquisedeque, ao invés de Arão. Aliás, o sacerdócio de Cristo não é a mesma coisa que o levítico, assim como a sombra não é o corpo, embora tenha relação com este.
É interessante notarmos que os argumentos em Hebreus se baseiam em textos bíblicos — em geral profecias — que foram trazidos ao conhecimento dos israelitas depois do concerto do Sinai. Dessa maneira, como a profecia de Jeremias 31:31-33 indicou o surgimento de um novo concerto, ou de um concerto em condições diferentes, assim a declaração do Salmo 110:4 também deveria indicar uma nova ordem sacerdotal, da qual faria parte o Filho de Deus — a ordem de Melquisedeque. Cerca de 600 anos se haviam passado, depois que o concerto sinaítico fora estabelecido, quando Davi mencionou essa nova ordem sacerdotal.
Sem que os israelitas tivessem percebido, passaram-se mais de 900 anos de predição do surgimento de um Sumo Sacerdote que não pertenceria às fileiras dos levitas. O assunto, contudo, não passou despercebido ao estudioso autor de Hebreus. Agora, argumentava ele: “De sorte que, se a perfeição fosse pelo sacerdócio levítico (porque sob ele o povo recebeu a lei), que necessidade havia logo de que outro sacerdote se levantasse, segundo a ordem de Melquisedeque, e não fosse chamado segundo a ordem de Arão?” (Heb. 7:11).
MUITO O QUE DIZER
O Melquisedeque a cuja ordem pertencería Cristo, é o mesmo que foi encontrar-se com Abraão (Gên. 14:18-20) quando este retornava da perseguição aos reis que haviam levado prisioneiro seu sobrinho Ló. O escritor previne seus leitores (Heb. 5:11) de que não é fácil interpretar aquilo que pode ser dito com respeito a esse personagem, embora muito possa ser falado sobre ele. De fato, as Escrituras falam de Melquisedeque em três dos seus livros, o que não deve ser por mera casualidade.
Melquisedeque é o nome que em hebraico se escreve Malki-çadheq, e cujo significado é, de acordo com o Novo Dicionário da Bíblia, vol. II, pág. 1024, “Sadeque é (meu) rei”. Ficamos impressionados quando verificamos a quantidade de pormenores com os quais procura o escritor bíblico (Heb. 7:1-4) explicar quão importante é esse personagem. Seu nome, título e outras particularidades, parecem ter feito parte da demorada pesquisa do escritor, ao querer mostrar a ligação com Cristo, da discutida figura de Melquisedeque. Aspectos há, ligados com ele, que nos levam a considerá-lo mais do que um ser terreno, apenas.
Hebreus 7:1-4 permite-nos pensar que Melquisedeque não era uma pessoa comum. Embora o texto nos diga que ele era rei de Salém, explica que esse suposto título é uma “interpretação” (verso 2) do seu nome; isto é, Melquisedeque significa “rei de justiça, e depois também rei de Salém, que é rei de paz”. Não podemos, portanto, considerar Salém, neste verso, como nome próprio de algum lugar governado por Melquisedeque, enquanto atribuímos aos títulos “rei de justiça” e “rei de paz” apenas significados do seu nome. Sendo, como indica o texto, “interpretação”, devemos considerar a todos como significados; do contrário, teríamos que também pensar em alguma localidade ou país denominado Justiça, e outro com o nome de Paz, todos regidos por Melquisedeque.
Além disso, do ponto de vista político, não parece muito natural que o rei de um país estrangeiro viesse até o lugar onde se encontrava Abraão, naquele momento, para receber dízimos. Como relata o livro de Gênesis (cap. 14:17), Bera, rei de Sodoma, saiu ao encontro do patriarca no vale de Savé, onde propôs que Abraão lhe desse as almas (verso 21) e ficasse com os despojos. Não seria muito cômoda a posição de Melquisedeque, como alienígena, numa região que acabara de sair de um conflito armado; ainda que Bera, rei de Sodoma, fosse um dos derrotados. Sobre haver dúvidas quanto à Salém da qual Melquisedeque seria rei, visto que havia dois lugares com esse nome, segundo os comentaristas, deve-se tomar em consideração os pontos acima salientados.
Há quem considere a descrição “sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida” (Heb. 7:3) como indicando falta de registro da vida de Melquisedeque. O contexto, entretanto, parece não, favorecer essa espécie de interpretação. É pouco provável que o autor de Hebreus se tenha demorado tanto sobre estas particularidades, simplesmente para não omiti-las. Parece irrazoável estar defendendo uma tese e, ao mesmo tempo, apresentar pontos que não contribuam para torná-la mais convincente; a menos que se esclareça que se trata de especulação. À luz de outras expressões, entretanto, entendemos que elas constituem pontos contrastantes na experiência da pessoa à qual se referem, em comparação com outros seres.
Um dos argumentos apresentados pelo escritor é com relação às pessoas que estavam autorizadas a receber dízimos (Heb. 7:8). Referindo-se a elas, declara: “E aqui certamente tomam dízimos homens que morrem; ali, porém, aquele de quem se testifica que vive.” Ora, se a falta de pai, de mãe e de genealogia de Melquisedeque é questão de ausência de registro, o mesmo já não se pode dizer quanto a ele continuar vivendo centenas de anos depois de receber os dízimos de Abraão. O texto em questão parece bastante claro, ao pôr em contraste “homens que morrem” com alguém que não morreu. Basta que coloquemos na frase os termos ocultos da oração gramatical, e teremos: “Ali (na região onde Abraão se encontrava), porém, (tomou dízimos) aquele (homem) de quem se testifica que vive”. Assim, as palavras “não tendo princípio de dias nem fim de vida”, não devem ser consideradas como uma perda de registro, ou a falta de conhecimento deste, mas como inexistência, por se referirem a um ser cuja existência não é limitada pelo tempo.
Comenta o escritor sagrado, com respeito a Melquisedeque que, “sendo feito semelhante ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre” (Heb. 7:3). Toda a argumentação usada na carta aos Hebreus tem por finalidade ressaltar a importância do sacerdócio de Cristo — um sacerdócio que, para ser superior ao levítico, deveria ser eterno. Para mostrar, portanto, que Melquisedeque não era um ser perecível, declara-se ter ele sido feito “semelhante ao Filho de Deus”, e que “permanece sacerdote para sempre”.
De acordo com algumas fontes, Abraão viveu entre os anos 1900 e 1800 A.C., se usarmos números redondos; e Davi, por volta de 900 da mesma era. Nos dias de Abraão já não era comum as pessoas viverem muito mais de cem anos. Entretanto, segundo o comentário feito pelo escritor de Hebreus, referente ao Salmo 110:4, Melquisedeque ainda continuava vivo quando Davi escreveu o referido salmo (Heb. 7:8), ou seja, cerca de mil anos mais tarde. “Ali, porém”, diz ele, “aquele de quem se testifica que vive.” Entre os seres humanos, nem Matusalém teve existência tão prolongada!
É bastante cômoda, portanto, a posição dos que consideram prudente não se desejar saber muito sobre Melquisedeque. Contrariando essa opinião, o autor de Hebreus investigou-lhe a genealogia, parentesco, grau de importância (recebeu dízimos de Abraão), origem e significado do nome, além de outras particularidades. E o que é curioso, usou apenas as Escrituras como fonte de pesquisa para sua tese, além do fato de ter sido inspirado para fazer a investigação.
“SANTA CEIA” NO VALE DO REI?
O livro de Gênesis (cap. 14:18) declara que Melquisedeque era sacerdote do Deus Altíssimo. Diz também, ou pelo menos dá a entender, que Abraão estava no vale de Savé, cujo significado é “vale do rei”, quando esse sacerdote lhe saiu ao encontro, levando-lhe pão e vinho.
Certa ocasião, em debate com Seus opositores, Jesus lhes disse: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o Meu dia, e viu-o, e alegrou-se.” S. João 8:56. Ele Se referia a um acontecimento muito importante da vida de Seu grande amigo: a ocasião em que, em substituição ao seu filho Isaque, que se achava sobre o altar, pronto para ser imolado, foi-lhe mostrado um cordeiro atado “pelas suas pontas” (Gên. 22:13). Aquele ani-malzinho, que o patriarca tomou e ofereceu em lugar do filho, deu-lhe um vislumbre do dia em que o Filho de Deus haveria de ser sacrificado em favor da humanidade. Abraão alegrou-se por ter visto aquela cena.
Pode ser, entretanto, que essa não tenha sido a única vez que aquele servo de Deus tenha recebido alguma indicação do sacrifício expiatório de nosso bendito Senhor. Embora as Escrituras não sugiram isso, o pão e o vinho que ele recebeu das mãos do sacerdote do Deus Altíssimo bem poderiam ser os primeiros símbolos do corpo e do sangue de Cristo (S. Mat. 14:22 e 23), entregues em nosso benefício. Quem sabe, aquele a cuja ordem sacerdotal deveria pertencer o Filho de Deus, ofereceu ali no vale de Savé, o vale do rei, a primeira Santa Ceia, usando os emblemas do corpo e do sangue do Salvador. E como, posteriormente, em Moriá, Abraão teve razões para alegrar-se.
Tudo pode não passar de uma cogitação, mas naquela ocasião, e relacionado com uma pessoa como o grande patriarca, não se pode excluir a possibilidade. A verdade é que em face do significado daquele encontro, das verdades profundas a que veio ligar-se em anos posteriores, enfim, dos seus desdobramentos, torna-se cabível a figura de uma Santa Ceia antecipada. “Feito semelhante ao Filho de Deus” (Heb. 7:3), Melquisedeque poderá ter ministrado os mesmos emblemas que o Salvador serviu a Seus discípulos centenas de anos mais tarde, num cenáculo de Jerusalém.
UM SACERDÓCIO DEFINITIVO
Outro ponto que os leitores de Hebreus não deviam passar por alto, é que a profecia que indicava o Messias como sacerdote, não sofreria alteração. Jesus seria feito fiador “de tanto melhor concerto” (Heb. 7:22), porque o Seu sacerdócio contava com o juramento divino (Heb. 7:20) de que a decisão de torná-Lo sacerdote seria definitiva. “Jurou o Senhor, e não Se arrependerá’’, dizia o Salmo 110:4, “Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedeque.’’
O sacerdote levita não dependia de juramento da parte de Deus para ser investido da função medianeira (Heb. 7:20). “A lei do mandamento carnal’’ (Heb. 7:16), isto é, a lei levítica que regia a escolha para a função de sacerdote, conferia-lhe esse título.
Comentando em outro lugar (Heb. 6:17) o significado de um juramento feito por Deus, diz o autor do livro de Hebreus, referindo-se a um compromisso divino assumido com Abraão e seus descendentes: “Pelo que, querendo Deus mostrar mais abundantemente a imutabilidade do Seu conselho aos herdeiros da promessa, Se interpôs com juramento’’. Por esse juramento, os descendentes do patriarca seriam abençoados e se multiplicariam como a areia do mar.
Essa “imutabilidade do Seu conselho’’ haveria de ser válida também quanto ao ministério sacerdotal de Cristo. Deus não Se arrependeria jamais de ordená-Lo para esse santo ministério, só que a ordem sacerdotal seria outra. A ordem de Arão não mais forneceria os homens que estariam entre o povo “nas coisas concernentes a Deus’’ (Heb. 5:1), mas o Sacerdote por excelência seria buscado na ordem de Melquisedeque. O povo já não deveria ser servido por “homens que morrem’’ (Heb. 7:8), mas por Alguém que permaneceria indefinidamente (Heb. 7:23 e 24).
ALMIR ALVES DA FONSECA, redator de O Ministério