Ùltimamente, certos grupos religiosos em discrepância com os adventistas do sétimo dia, objetivando combater a doutrina da reforma pró-saúde, especialmente a parte de abstenção das carnes que a Bíblia classifica de “imundas”, se têm valido de uma variante da tradução de S. Marcos 7:19, para fundamentarem o argumento de que Cristo purificou todos os alimentos.
A nova versão de Almeida “Edição Revista e Atualizada no Brasil” recentemente lançada, assim registra o verso:
“Por que não lhe entra no coração, mas no ventre, e sai para lugar escuso? E assim considerou Êle puros todos os alimentos.” (Grifos nossos.)
E ainda procuram reforçar essa afirmação, citando a Versão Brasileira, de 1917, que consigna:
“Por que não entra no coração, mas no ventre, e é lançado no lugar escuso? Isto disse, purificando todos os alimentos.” (Grifos nossos.)
Eis um versículo a que falta uniformidade nas traduções. A Revised Version (em inglês) põe em grifo a expressão “Isto disse Êle.” E vimos até versões que citam tôda a frase final do verso entre parêntesis.
Contudo nossa velha Bíblia de Almeida reza:
“Porque não entra no seu coração, mas no ventre, e é lançado fora, purificando tôdas as comidas?”
Como se vê, não há a menor insinuação de que Cristo haja purificado TODOS os alimentos, mediante uma declaração anulatória das leis higiênicas. O sentido do verso é bem outro.
O texto original grego mais autorizado assim consigna o verso, sob o qual, interlinearmente, inserimos a tradução verba ad verba para melhor elucidação:
oti oyk eisporeyetai aytoy
porque não entra (seu)
eis ten kardian all eis ten
para o coração mas para o
koilian, kai eis ton
ventre, e ainda para a
aphedron ekporeyetai,
latrina (é) expelido,
KATH ARIDZON PANTA TA
purificando tôdas as
B ROMATA.
comidas.
Literalmente, é o que o verso diz.
O original revisto por Westcott and Hort consigna um ponto e vírgula após a palavra ekporeyetai; a seguir um travessão antes de katharidzon panta ta bromata. Isto faz o versículo ligar-se ao anterior com a expressão de Cristo “E Êle disse-lhes”, que é subentendida no travessão. De acôrdo com êste critério então a sentença final “purificando tôdas as comidas” não são palavras de Cristo, mas de S. Marcos, e constituem seu comentário sôbre o que Cristo quis dizer. A disposição do MS o autoriza.
Apesar disso, não se deve inferir que Cristo tivesse revogado as proibições taxativas do Velho Testamento tangenciadas com as espécies de carne, pois o sentido evidente dêsse comentário de Marcos é que Cristo, assim dizendo, tornou claro que a parte expurgada, digerida dos alimentos, era pura porque não contaminava, e isso sem levar em conta o fato de o comedor ter ou não executado a lavagem ritual das mãos, que aliás era o ponto em lide. (Ver o verso 2.) Com isso quis o Mestre ilustrar que não se incorria na impureza biológica e muito menos na suposta impureza cerimonial que o tradicionalismo tal-múdico atribuía à ausência de lavagem das mãos. Espécie alguma de alimentos é mencionada na discussão que os evangelhos registram, e isso é importante. Tudo gira em tôrno da maneira de comer. Vê-se que, do princípio ao fim, Cristo trata de distinguir “mandamentos de Deus” das “tradições” dos homens, especialmente a lavagem cerimonial das mãos.
Cristo Se referiu ao processo digestivo, de modo especial para ilustrar seu ensino. Adão Clarke assim comenta o verso:
“Aquilo que é separado dos vários alimentos introduzidos no estômago, e é expelido do corpo, constitui partes não-nutritivas de tôdas as comidas que são ingeridas, e dessa forma são purificadas [expurgadas], ficando fora o que não é conveniente para o sustento do corpo.”
Podíamos acrescentar as observações de João P. Lange:
“A aphedron [retreta] torna limpos todos os alimentos, não porque a imundície ou impureza da coisa consista em estar fora de seu lugar e, portanto, contaminando outras coisas. É ela um lugar de imundície para tôdas as residências; mas paradoxalmente é um lugar de purificação para a grande residência da Natureza. Não foi sem ironia que Cristo salientou êste significado ideal dos meios externos de expurgação dos alimentos, dirigindo-se, como o fêz, aos homens cheios de tradições, os quais porfiavam em sustentar a pureza profilática externa para seus alimentos.”
À vista destas considerações, cremos que o sentido mais claro do versículo em tela foi apanhado por Figueiredo, que assim traduz o passo: “Porque isso não lhe entra no coração, mas vai ter ao ventre, e depois lança-se num lugar escuso, levando consigo tôdas as fezes do alimento.”
Nota-se o cuidado que os tradutores da Bíblia tiveram em verter aphedron, que significa retreta, cloaca, latrina, sentina, privada e coisas semelhantes, por “lugar escuso”, ou “fora”.
A conclusão é que, de modo algum, Cristo aboliu leis higiênicas, tampouco a elas Se referiu, mas sòmente ao tradicionalismo vazio dos anciãos.
Mateus põe têrmo à discussão, rematando: “Mas COMER SEM LAVAR AS MÃOS, isso não contamina o homem.” (S. Mat. 15:20.)