As questões relacionadas à “identidade de gênero” têm entrado em conflito com as visões religiosas conservadoras. Esse embate tornou-se uma questão relevante nas relações entre Igreja e Estado em grande parte do mundo.

Alguns sugerem que a única solução é que a religião altere sua visão sobre sexualidade e gênero, tornando-a mais alinhada com os tempos atuais. A mídia secular, por exemplo, tem falado sobre mudanças significativas de opinião e divisões no mundo evangélico a respeito do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Embora algumas denominações tenham se tornado mais receptivas em relação às políticas públicas sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a maioria delas ainda concorda que a igreja deve ser capaz de ensinar e defender a visão bíblica quanto à sexualidade. Nesse contexto, embora o discurso sobre a importância de respeitar todas as pessoas esteja ganhando mais aceitação, as crenças subjacentes sobre o comportamento sexual permanecem inalteradas em sua essência.1

Fundamentos teológicos e históricos

Separar o sexo (a identidade sexual biológica de uma pessoa ao nascer) do gênero (a forma como alguém expressa sua identidade sexual) pode parecer um fenômeno moderno. No entanto, a ideia de uma desconexão entre o sexo biológico e a expressão de gênero tem raízes profundas no mundo antigo. A cultura greco-romana, por exemplo, já estava familiarizada com o conceito de homens que se feminizavam e se apresentavam como mulheres. Ainda antes disso, as escrituras hebraicas traziam instruções que indicavam a existência de práticas pagãs primitivas de pessoas que se identificavam com o sexo oposto. Uma análise de como o povo de Deus lidou com esse fenômeno no passado pode oferecer uma perspectiva valiosa para os cristãos refletirem sobre as manifestações atuais dessas mesmas questões.

O contexto do Antigo Testamento. As Escrituras ensinam que Deus é o autor da nossa identidade sexual. Tanto o Antigo quanto o Novo Testamento afirmam que Deus criou todos os seres humanos como “homem e mulher” (Gn 1:27; Gn 5:2; Mt 19:4; Mc 10:6). Para a Bíblia, o princípio é que o sexo biológico serve de fundamento para a identidade de gênero de uma pessoa, refletindo-se em sua aparência, identidade e comportamento sexual.2

A lógica bíblica da ligação entre o sexo biológico e a identidade de gênero se revela na forma como ela entende a natureza humana. As Escrituras ensinam que o ser humano é uma unidade composta de mente, corpo e espírito (Gn 2:7; Mc 12:30). Assim, a alma – ou seja, a pessoa como um todo – não pode ser reduzida a nenhum desses elementos de forma isolada. Com base nessa visão integral do ser humano, torna-se problemático afirmar que a identidade sexual ou de gênero pode ser dissociada do corpo, ou que o cérebro possa ser colocado em oposição ao corpo em relação à identidade sexual.

Isso não significa que os processos do pensamento subjetivo não possam sofrer confusão ou dissociação em relação à identidade sexual. Afinal, vivemos em um planeta afetado pelo pecado. Além disso, podem ocorrer casos de ambiguidade física genuína, nos quais é difícil identificar o sexo de um bebê. Essas condições, conhecidas como intersexo, representam um subconjunto muito pequeno daqueles que enfrentam confusão de gênero.

A Bíblia afirma que a criação foi corrompida pelo pecado (Rm 3:9; Rm 7:17; Rm 8:20-23; Jr 17:9; Gl 5:17). Como consequência, mente e psique precisam ser renovadas e recriadas por Deus (Rm 12:2; 2Co 5:17). Portanto, as emoções, os sentimentos e as percepções do ser humano não são indicadores totalmente confiáveis dos desígnios, ideais e da vontade divina (Pv 14:12; Pv 16:25). Devemos buscar a orientação de Deus por meio do Espírito Santo e das Escrituras para podermos discernir qual é o plano divino para nossa vida (Sl 25:4,8-10; Sl 32:8).

As Escrituras estabelecem uma conexão entre sexo biológico e identidade de gênero por meio de várias instruções que nos são dadas. Uma delas é a proibição de que uma pessoa do sexo masculino use roupas do sexo oposto. “A mulher não deve usar roupa de homem, e o homem não deve vestir roupa de mulher, pois quem faz isso é abominável ao Senhor, seu Deus” (Dt 22:5). Outra instrução proíbe relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo: “Não se deite com outro homem para ter relações com ele como se fosse mulher; é abominação” (Lv 18:22).

É importante notar que essa instrução contra as relações entre pessoas do mesmo sexo pressupõe a existência de uma qualidade essencial e estática na identidade sexual; caso contrário, seria possível subverter a regulamentação simplesmente reivindicando a identidade do sexo oposto. A importância de preservar a identidade sexual biológica também é evidenciada na proibição da destruição ou remoção da genitália masculina (Dt 23:1).

Alguns argumentam que esses textos tinham aplicação especial apenas no contexto do antigo sistema de sacrifícios e rituais de purificação israelitas. Contudo, em vez de serem simplesmente textos isolados com uma aplicação única no contexto judaico, essas instruções são internamente consistentes e ressaltam o compromisso bíblico subjacente à sagrada dualidade dos sexos. Em relação a roupas, por exemplo, Richard Davidson afirma que “travestir-se é moral e culturalmente repugnante para Deus, não apenas por causa da associação com a homossexualidade e os rituais de culto à fertilidade, mas também – e principalmente – porque mistura e confunde as distinções básicas da dualidade de gênero (masculino e feminino) estabelecidas na criação”. Davidson conclui que “a intenção era que essa legislação fosse permanente (transtemporal) e universal (transcultural) em sua aplicação”.3

A conclusão de Davidson sobre a aplicação universal desses ensinamentos é apoiada pelo fato de que eles são repetidos no Novo Testamento (Rm 1:26-29; 1Co 6:9). O conceito-chave das instruções do Antigo Testamento é que elas refletem uma teologia bíblica mais ampla sobre o papel da distinção de gênero desde o momento da criação (Gn 1:27; Gn 2:21-25).

A instrução do Novo Testamento. O testemunho bíblico sobre a criação do ser humano, com ambos os sexos feitos à imagem de Deus, historicamente contrastou com as opiniões das culturas circundantes. O mundo greco-romano, por exemplo, em grande parte adotou um dualismo espiritual/material, articulado por Platão e promovido por vários grupos gnósticos. Esse dualismo tendia a ver a sexualidade como parte do mundo material e, portanto, inferior ou até mesmo mau; relacionava o sexo masculino ao reino da razão e o feminino ao mundo da paixão e da emoção.4 Aristóteles também ensinou um dualismo entre corpo e mente. Ele acreditava que as mulheres eram essencialmente homens mutilados, o que era evidenciado por sua suposta razão mais fraca e paixões mais fortes. Mulheres, eunucos e hermafroditas eram considerados “homens inferiores”, já que seus corpos eram vistos como evidência de “almas inferiores”.5

Cristo contradisse tanto o dualismo material/espiritual grego quanto a ideia de superioridade/inferioridade de gênero ao afirmar que, “desde o princípio”, Deus fez o homem e a mulher como parte de uma criação “boa” (Mc 10:6; Mt 19:4). Além disso, Cristo ressaltou a dignidade de toda a humanidade, independentemente da função sexual. Em Mateus 19:12, por exemplo, Ele menciona os eunucos como parte da comunidade de fé.

Alguns sugeriram que a afirmação de Cristo sobre os eunucos abrangia um terceiro gênero ou outra categoria além de masculino ou feminino.6 No entanto, essa ideia distorce o significado dado por Cristo. O contexto dessa passagem é o casamento e a importância da fidelidade dentro dele. Quando os discípulos expressaram surpresa diante desse alto padrão, Cristo indicou que o casamento não é para todos. Ele então mencionou três categorias de indivíduos, incluindo aqueles que nasceram sem função sexual (Mt 19:12).

O gênero, no entanto, é muito mais do que apenas função sexual. Não há indicação na Bíblia de que os eunucos fossem considerados sem gênero. Pelo contrário, na história de Filipe e do etíope, o eunuco é explicitamente chamado de “homem” (aner) e referido por pronomes masculinos. “Então mandou parar a carruagem, ambos desceram à água, e Filipe batizou o eunuco” (At 8:38, itálico acrescentado; veja também o At 8:27).

Aceitar o eunuco na comunidade de fé não contradiz o ensinamento de que os homens não deveriam adotar personalidades ou identidades femininas. Em 1º Coríntios 6:9, Paulo condena o comportamento de homens brandos ou efeminados (malakoi). As evidências da história clássica contradizem a ideia de que a disforia de gênero só agora é compreendida. Os gregos já estavam cientes da existência de homens que se feminizavam de forma persistente. De fato, a palavra que usaram para descrever essa condição – malakoi – é a mesma empregada por Paulo.7

Alguns apontam para a declaração de Paulo de que “em Cristo Jesus” “não há homem nem mulher” como uma indicação do fim das distinções de gênero (Gl 3:28). No entanto, o contexto mostra que essa passagem se refere a uma declaração de igualdade relacionada à salvação, e não à eliminação de papéis específicos de gênero no lar, na igreja ou na sociedade. Paulo foi igualmente enfático em outros textos, afirmando que tais papéis continuavam a existir e deveriam ser respeitados pelos cristãos (por exemplo, 1Tm 2:11-14; 1Co 14:34-36; 1Co 11:7-14).

Conclusão

A Bíblia é um livro antigo e, por isso, pode ser surpreendente para alguns que os princípios que ela apresenta sobre as diferenças entre homens e mulheres, bem como a necessidade de salvaguardar a modéstia e a segurança de ambos os sexos, abordem diretamente muitos dos problemas contemporâneos. No entanto, se alguém acredita, como os adventistas do sétimo dia, que as Escrituras são inspiradas por Deus e apresentam aspectos fundamentais sobre a natureza humana, além da origem e importância da diferença de gênero, tal resultado não é inesperado.

Desde os seus primeiros capítulos, passando pelas experiências do povo de Israel até aos ensinamentos de Cristo e dos apóstolos no Novo Testamento, vemos que a Bíblia valoriza as características de ambos os sexos e ensina que os gêneros não devem ser indefinidos ou misturados. 

Nicholas Miller, advogado e teólogo, é professor no seminário da Universidade Andrews (EUA)

Referências

1 Em 2019, por exemplo, a Igreja Metodista Unida votou reafirmar sua proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo e da ordenação de indivíduos LGBTQIA+ dentro da igreja ( link.cpb.com.br/c34733 ).

2 A discussão sobre os antecedentes bíblicos foi baseada nas declarações do Comitê de Ética do Instituto de Pesquisa Bíblica (BRI, na sigla em inglês) sobre Transgenerismo, divulgadas em outubro de 2014 (link.cpb.com.br/aff4be). Veja também: Transsexuality: A Report of the Evangelical Alliance Policy Commission (Carlisle, Reino Unido: Paternoster Publishing, 2000), p. 45-54.

3 Richard M. Davidson, Flame of Yahweh: Sexuality in the Old Testament (Ada, MI: Baker Academic, 2012), p. 172.

4 Megan K. DeFranza, Sex Differences in Christian Theology: Male, Female, and Intersex in the Image of God (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2015), p. 108-125.

5 DeFranza, Sex Differences in Christian Theology: Male, Female, and Intersex in the Image of God, p. 117.

6 DeFranza, Sex Differences in Christian Theology: Male, Female, and Intersex in the Image of God, p. 102-106.

7 Robert A. J. Gagnon, “The Scriptural Case for a Male-Female Prerequisite for Sexual Relations: A Critique of the Arguments of Two Adventist Scholars”, em Homosexuality, Marriage, and the Church, Roy E. Gane, Nicholas P. Miller e H. Peter Swanson, eds. (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2012), p. 82-85.