A teologia dos adventistas do sétimo dia apresenta dois pontos de vista alternativos quanto à natureza humana de Jesus Cristo. Cristo possuía uma natureza humana pecadora porque teve uma mãe pecadora semelhante ao restante de nós, ou teve uma natureza humana sem pecado porque, ao contrário do restante de nós, Ele tinha a Deus por Seu Pai.1 O primeiro ponto de vista põe em relevo Sua identidade com o homem; o segundo, centraliza-se em Sua singularidade como homem. Alguns procuram unir os dois, dizendo que Jesus possuía uma natureza física pecadora, mas Seu nascimento humano assemelhava-se ao nosso novo nascimento — o nascimento do Espírito. Dizem que Jesus começou em Belém, onde nós começamos quando nascemos de novo. Outros sugerem que o paralelo é desfeito diante da investigação. Eles crêem que Jesus possuía tanto natureza humana pecadora como sem pecado; pecadora apenas no sentido de que Ele tomou a natureza física debilitada pelo pecado, mas sem pecado no que diz respeito a jamais ter-Se tornado pecado no nascimento.

Podemos simplesmente tomar a posição que desejarmos? Tem realmente importância o ponto de vista que escolhermos? É isto apenas bizantinismo acadêmico, sem nenhum significado prático? Creio que precisamos compreender a natureza humana de Cristo, para realmente saber apreciar o que Ele suportou, como unicamente Ele pode ser nosso Salvador, como pode ser nosso exemplo, nossa completa necessidade de Sua substituição através de todo o caminho para o reino e nossa urgente necessidade de uma perspectiva centralizada em Cristo e não no homem. Essas implicações práticas se tornarão óbvias ao examinarmos a evidência bíblica.

Inicialmente, uma apreciação superficial necessária. 1. Ficaremos restritos aos dados bíblicos, partindo da premissa de que toda verdade doutrinária emana da Escritura.2 2. Iremos prender-nos à lingüística e ao significado teológico das palavras gregas sarx, hamartia, isos, homoiōma, monogenes e prōtotokos. 3. Permitindo que um texto bíblico interprete o outro, penetraremos no verdadeiro significado da humanidade de Cristo como “a semente de Abrão” (Heb. 2:16) e a “semente de Davi” (Rom. 1:3). Notaremos a harmonia entre estas passagens e as palavras gregas estudadas. 4. Teremos assim uma idéia da missão de Cristo para salvar o homem. Do princípio ao fim da investigação, documentaremos a irresistível evidência bíblica de que Jesus tomou de fato uma natureza humana sem pecado ao nascer (espiritualmente) enquanto possuía uma natureza física semelhante aos outros seres humanos de Seus dias. 5. Isto nos levará a perguntar: Então nos entende Ele realmente? Ou, ao contrário, é um Ser extraterreno que teve uma vantagem injusta sobre nós? Foi Ele realmente tentado em todas as coisas como nós o somos? Pode realmente ser um compassivo Sumo Sacerdote? Caso a discussão cristológica deva ser proveitosa e edificante, deve primeiro definir claramente os termos de maneira que seja inspirada pela Escritu-ra ou verdadeira para esta.3

A Palavra Se Fez Carne

A Bíblia diz: “O Verbo Se Fez Carne” (S. João 1:14, Almeida). Que significa a palavra grega para “carne”? Diz-nos ela se a natureza humana de Cristo era pecadora ou sem pecado? Sarx aparece 151 vezes no Novo Testamento.4 O Greek-English Lexincon de Arndt e Gingrich, dá a essa palavra oito significados: (1) o material que cobre um corpo (I Cor. 15:39); (2) o próprio corpo como substância (cap. 6:16); (3) “um homem de carne e sangue” (S. João 1:14); (4) “a natureza humana ou mortal, a descendência terrestre” (Rom. 4:1); (5) “corporalidade, limitação física, a vida aqui na Terra (Col. 1:24); (6) “o lado interior ou externo da vida” (II Cor. 11:18); (7) “o instrumento de desejo do pecado” (Rom. 7:18); (8) a fonte da sensualidade (S. João 1:13). Somente um destes (o de número 7) tem o que ver com o pecado. Por isso, sarx não significa necessariamente “pecaminoso”.5

No grego, a palavra comum para “pecado” é hamartia6 e não sarx. O dicionário teológico de Schweitzer declara que sarx pode designar uma esfera terrestre (ver I Cor. 1:27), não necessariamente “pecaminosa e hostil a Deus, mas simplesmente… limitada e temporária”.7 Diz também que sarx pode significar um objeto de fé (ver Rom. 2:28). Aqui “o que é pecaminoso não é a sarx, mas a confiança nela”.8 Schweitzer conclui, dizendo: “Onde sarx é entendida num sentido inteiramente teológico, como em Gál. 5:24, denota o ser do homem que é determinado, não por sua substância física, mas por sua relação com Deus”.9

O tornar-Se Deus carne significa meramente que Ele recebeu um corpo humano? Referindo-Se a Sua encarnação, disse Jesus: “Sacrifício e oferta não quiseste, mas corpo Me preparaste’”. (Heb. 10:5, Almeida revista e corrigida). Em conexão com isto, Paulo escreve: “Aquele que apareceu em um corpo” (I Tim. 3:16, N. I. V.). A palavra grega para “corpo” é sōma, todavia a palavra “corpo” (N. I. V.) em I Tim. 3:16 não é sōma, e sim, sarx. Significa apenas “encarnação”, não “pecaminoso”.

Como, então, entender as palavras: Deus enviou Seu “Filho em semelhança da carne do pecado (e) pelo pecado condenou o pecado na carne” (Rom. 8:3)? Em primeiro lugar, consideremos o que Paulo poderia ter dito. Ele podia ter escrito: 1) Deus enviou o Seu Filho em carne pecaminosa ou 2) na semelhança de carne. A primeira expressão significaria que Sua carne era pecaminosa, e a segunda diria que Ele apenas parecia estar na carne, mas na verdade era algum ser extraterreno (cf. I S. João 4:1-3, um texto interpretado incorretamente por alguns).10

Paulo não diz nenhuma das duas coisas. Ele se concentra sobre Cristo como tendo vindo na semelhança da carne pecaminosa. A palavra-chave é “semelhança”. Duas palavras gregas são traduzidas por “semelhante” em português: isos, que significa “mesmo”, como acontece em Atos 11:17, onde se diz que “Deus lhes deu o mesmo (isos) dom”, e homoiōma, usada em Rom. 8:3, significando “semelhante” (porque humana), mas não “mesma” (porque não pecaminosa). As Escrituras são coerentes nesse ponto. Assim Filip. 2:7 diz, falando de Jesus, que Ele Se tornou “semelhante (homoiōma) aos homens”.11 Heb. 2:17, diz: “Ele teve que tornar-Se semelhante (homoioō) a Seus irmãos em todos os sentidos, a fim de que pudesse ser maravilhoso e fiel Sumo Sacerdote” (N. I. V.).

Sugerem estas palavras gregas, e estes textos, que Jesus foi apenas semelhante aos outros seres humanos quanto a ter um corpo humano físico afetado pelo pecado, mas não o mesmo que os demais seres humanos, pois somente Ele foi sem pecado em Seu relacionamento espiritual com Deus? Ellen White assim pensava.12 A evidência bíblica considerada até este ponto permite essa conclusão.

Por que Apenas Semelhante, não a Mesma?

Desse material bíblico surgem dois princípios que nos orientam em nossa pergunta. O primeiro é: Que Jesus Cristo está determinado a ir ao máximo de Sua identidade com nossa natureza humana. Em outras palavras, Ele era mais do que o filho de Maria. Ele era Deus. Ao tornar-Se homem, Ele não deixou de ser Deus.13 Isso quer dizer que seu ininterrupto relacionamento com Deus não foi desfeito pelo motivo de tornar-Se humano. A Encarnação não foi bem outro nascimento humano. Foi Deus transpondo o abismo aberto pelo pecado, e bem no íntimo do Seu ser formando a ponte entre Deus e o homem. Como ocorreu no Éden, Deus operou de novo no planeta de maneira criativa. Quer usando o pó da terra quer o ventre de Maria, a vida proveio dEle. Ambas as criações constituíam milagres jamais conhecidos antes, nem repetidos depois. A divindade absoluta desses acontecimentos não deve perder-se em comparações superficiais com outros seres humanos. Todos os outros têm dois pais humanos. Menos Adão e Cristo. O homem vem ao mundo em uma das três maneiras: criação, nascimento, ou encarnação.

O segundo princípio é: A missão de Cristo deve determinar a extensão de sua identidade com nossa humanidade. Para ser nosso Salvador, Jesus deve tornar-Se um conosco. Ele poderia não ter ido além das exigências de Sua missão, poderia não Se tornar um pecador (por natureza ou por atos). Como no sistema sacrifical, a missão de Cristo poderia ser desempenhada apenas por meio de um Cordeiro, sem mácula, defeito ou coisa semelhante.

O Pecado Original

Nessas considerações, devemos levar a sério a natureza devastadora do pecado. Toda criança é egoísta antes de saber o que constitui pecado. Como poderia ser diferente o bebê Jesus, se Ele nasceu com uma natureza pecadora?

A Bíblia apresenta duas definições de pecado, uma em questão de comportamento, a outra em sentido de relacionamento. Dessa forma, “pecado é a transgressão da lei (indisciplina)” I S. João 3:4; e “tudo o que não é de fé é pecado”. Rom. 14:23. Ambas estas definições se achavam presentes no pecado original, no Éden. Adão e Eva desobedeceram à ordem de Deus não apenas por comerem do fruto da árvore proibida (Gên. 3:2-6), mas por duvidarem da palavra de Deus. Ele havia dito: “Não comereis dele… para que não morrais”. Eva o achou bom para comer e desejável para dar entendimento. Dessa maneira, eles se apressaram e comeram. Por quê? Duvidar de Deus leva a desobediência a Ele. Duvidar de alguém significa deixar de confiar ou de ter fé nessa pessoa — é uma interrupção no relacionamento. O tentador os levou a crer nele e em seus sentidos mais do que em Deus. Além dessa interrupção de relacionamento, ele os levou a transgredirem o mandamento de Deus. O pecado original consistiu primeiro de interrupção de relacionamento. Definir pecado como “quebrantamento da lei ou atos errados” é atentar apenas para sua manifestação exterior. No fundo, pecado é relacionamento interrompido entre o pecador e Deus.14

Cristo veio ao mundo para restabelecer o relacionamento, não para que continuasse a separação. Dessa forma, Ele veio semelhante a nós (como um ser humano, fisicamente falando). Emanuel, ou “Deus conosco”, significa que Ele transpôs o abismo existente entre Deus e o homem, e que Ele aniquilou a inimizade por meio da vinda da parte de Deus a nós. Mas Ele estabeleceu de novo a relação apenas porque durante toda a Encarnação seu relacionamento com Deus não foi interrompido — Ele permaneceu espiritualmente sem pecado.

Rom. 5:12-14 é considerado “um dos mais difíceis trechos das Escrituras”, 15 mas creio que a analogia entre Adão e Cristo é a mais clara existente na Bíblia. Lenski está certo ao declarar: “Ela é tão vital porque vai ao âmago tanto do pecado como do livramento deste. Tudo o mais que se diz nas Escrituras com respeito a um deles ou a ambos, repousa sobre aquilo que está revelado como a base absoluta”. 17 Notai o que diz o texto: “Portanto,… o pecado entrou no mundo por meio de um homem, e por meio dele a morte, e dessa maneira a morte veio a todos os homens, porque todos pecaram… Conseqüentemente, assim como o resultado de uma transgressão foi a condenação para todos os homens, assim também o resultado de um ato de justiça foi a justificação que traz vida a todos os homens. Pois assim como por meio da desobediência de um homem muitos foram feitos pecadores, assim também mediante a obediência de um homem muitos serão feitos justos” (Rom. 12:12-19, N. I. V.).

Notai o paralelo, repetido três vezes, entre os dois Adões. A morte, ou a condenação, não passou a cada pessoa simplesmente por causa do seu próprio pecado. Ela ocorreu, também, por esse motivo. Mas em sentido mais profundo, a morte passa a cada homem por causa do pecado de Adão, ou a quebra do relacionamento com Deus. (Que o pecado de Adão atinge a toda a raça, é mencionado cinco vezes nos versos 15-19.) Simplesmente não é verdade que o pecado não se acha presente na pessoa até o primeiro ato de pecado desta. Os homens nascem pecadores. “A morte reinou” (verso 14) desde o pecado de Adão. Os bebês morrem antes de pecar conscientemente. Separado do Doador da vida, a morte (não a culpa), passou de Adão para a raça.10 Por isso foi que Cristo veio restabelecer a ligação, trazendo vida eterna. O paralelismo de Rom. 5:12-14 é crucial para este significado.

“Como o pecado termina em morte, assim a justiça em vida.”19 Se “o único pecado de Adão é a fonte da morte para todos os homens, e assim foi, já que praticado antes que qualquer homem houvesse nascido”.20 então a vida sem pecado de Cristo é a fonte de toda justiça. Ele foi semelhante a nós, pois nasceu com as limitações físicas do homem, mas não o mesmo que nós, pois não nasceu pecador com um interrompido relacionamento com Deus.

O fato bíblico de que o pecado passa de Adão para cada recém-nascido (não a culpa de Adão, mas a morte, o resultado de seu pecado) significa que o pecado não pode ser definido apenas como “ato”.21 Também é pouco significativa uma definição. Embora o pecado inclua escolhas erradas, e, por conseguinte, atos e mesmo pensamentos (ver S. Mat. 5:28), inclui também natureza.22 Se não nascêssemos pecadores, não necessitaríamos de um Salvador até nosso primeiro ato ou pensamento pecaminoso. Semelhante idéia presta um terrível desserviço às trágicas conseqüências do pecado e à missão de Cristo, como o único Salvador de todo ser humano (S. João 14:6, Atos 4:12). Significa também que se Jesus veio com uma natureza pecadora, mas resistiu, então talvez alguém mais faça a mesma coisa, e que a pessoa não necessite de Jesus para salvá-la. Precisamos entender que ambos os efeitos do pecado — tanto a morte do corpo com a culpa pessoal — necessitam de um Salvador. Necessitamos de Jesus como substituto para toda a nossa existência, e não apenas a partir da primeira vez que nos rebelamos com conhecimento de causa.

Pecadores ao Nascermos

Todo ser humano, com exceção de Cristo, nasce pecador. Davi disse: “Com certeza tenho sido pecador desde o nascimento, pecador desde o momento em que minha mãe me concebeu” (Sal. 51:5, N. I. V.). “Pois formaste minhas partes internas, entreteceste-me no ventre de minha mãe” (Sal. 139:13, R. S. V.). São contraditórias estas declarações? Nasceu Davi em pecado ou não nasceu? Elas falam dos dois aspectos de uma verdade, ambos igualmente bíblicos. Enquanto a primeira fala da condição de Davi como pecador ao nascer, a outra se refere ao amor salvador de Deus para com ele nessa situação.

Então, como interpretar o texto: “O filho não sofrerá pela iniqüidade do pai, nem o pai pela iniqüidade do filho” (Ezeq. 18:20, R. S. V.)? A Bíblia diz também: “Visitando a iniqüidade dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração daqueles que Me aborrecem” (Êxo. 20:5, R. S. V.; cf. cap. 34:7; Núm. 14:18; I Reis 21:29). São estas passagens também contraditórias? De novo, elas constituem dois aspectos da mesma verdade, ambos bíblicos. O primeiro fala dos resultados da conduta de alguém, seja na vida ou na morte; enquanto o segundo mostra que o pecado do indivíduo lhe prejudica a posteridade também. Por isso, a Bíblia afirma: “Desde o nascimento os pecadores se extraviam; desde o ventre eles erram (Sal. 58:3, N. I. V.).

“Rebelde desde o ventre” (Isa. 48:8, N. I. V.) e “cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe” (S. Luc. 1:15) novamente mostram dois aspectos, quer o da condição humana por ocasião do nascimento, quer o da misericórdia de Deus para com alguém nesse estado. Por contraste, Jesus não foi apenas cheio do Espírito Santo desde o nascimento, mas, ao contrário das outras pessoas, nasceu do Espírito Santo. Ao contrário dos demais, Ele era também Deus. Significava isto que Ele tivesse tido tuna Concepção Imaculada?

A teologia católica ensina, desde Agostinho, que todos nascem com pecado original.23 Isto é, cada pessoa vem ao mundo com a culpa do pecado de Adão, pois todos estavam seminalmente presentes em Adão, e, portanto, partilharam de sua culpa. Assim, semelhantemente, Jesus viria ao mundo com a culpa do pecado original. Para contornar esta situação, a teologia católica inventou a Imaculada Conceição. Essa doutrina postula que Maria nasceu sem a contaminação do pecado. Mas se Deus podia realizar um ato salvífico dessa espécie, em favor de um ser humano, por que não para todos? Isto teria livrado a Cristo de toda a angústia de tornar-Se humano. Além disso, se Maria se tornou imaculada sem Cristo, isto põe em dúvida a missão de Cristo.

A Bíblia não diz nada a respeito de uma Imaculada Conceição, mas fala de uma concepção miraculosa. Jesus foi o único. Estava claro, de Sua singularidade como Deus, que Seu nascimento seria sem pecado. Nesse ponto, a teologia católica passa por alto quem era Jesus. Não é preciso encontrar em Maria a razão para a singularidade de Cristo. Essa singularidade vem de Sua própria personalidade como Deus. Agora voltemo-nos para os dados bíblicos concernentes a Sua singularidade.

Jesus Como Homem Singular

Jesus foi diferente dos outros seres humanos no centro de Suas percepções. Isso determinou tudo. Nenhum outro ser humano existiu antes do seu nascimento e tomou a decisão de nascer para agradar ao Pai. A percepção de Cristo foi sempre voltada para Deus. Ele veio fazer a vontade de Seu Pai (Heb. 10:9), glorificou-O por meio da vida e terminou a obra que Deus Lhe confiou (S. João 17:4). Nenhum outro bebê, criança ou adulto viveu em tão completa abnegação para com Deus e o homem. Tanto Seus atos sem pecado como Sua natureza espiritual inocente procediam de Sua ininterrupta orientação dirigida para Deus. Sua união com Deus determinou a extensão de Sua união com o homem.

A palavra grega monogenes, traduzida na Versão King James por “único gerado”, na verdade significa “alguém de uma espécie”. Monogenes vem dos monos, “um”, e genos, “espécie” ou “tipo”. Monogenes não deve ser confundida com monogennaō, que se deriva de monos, “um”, e gennao, “gerado”. Monogennaō significa “único gerado”.

Monogenes é usada nove vezes no Novo Testamento grego, cinco das quais referentes a Jesus (S. João 1:14, 18; 3:16, 18; I S. João 4:9). Seu uso nas outras quatro referências lança luz sobre o que significa a palavra, quando usada com relação a Jesus. Em primeiro lugar, o filho morto da viúva de Naim era tudo o de que ela dispunha (S. Luc. 7:12). Em segundo, Jairo pode ter tido filhos, mas foi sua única filha quem morreu (cap. 8:42). Em terceiro lugar, o endemoninhado era o único filho daquele pai, naquelas condições (cap. 9:38). Nessas três passagens monogenes não significa “único gerado”, mas “único indivíduo de sua espécie”. Esse fato é ainda mais claro no quarto exemplo — Heb. 11:17. Aqui Isaque é chamado monogenes, quando, na realidade, era o segundo dos filhos de Abraão (Ismael nasceu primeiro). Todavia, ele era o único de sua espécie, no sentido de ser o único filho da promessa.

Quando usada com referência a Jesus, monogenes tem sempre esta conotação de único de uma espécie. Ele era o Filho da promessa — único em missão e nascimento, bem como em Sua vida. Seu nascimento especial consistiu não somente da maneira em que Ele nasceu (sem pai humano), mas da natureza com que nasceu (sem o pecado humano).

Ele era o único de uma espécie, no sentido de que foi o único a ser também Deus. Ele foi o único homem a nascer pelo Espírito Santo, sem pai humano. Foi único homem a existir eternamente como Deus antes de tornar-Se também homem, e, dessa maneira, o único a independer de pais por toda a vida. E foi o único homem a ser semelhante mas não igual aos outros seres humanos.

Sua singularidade advém da pessoa que Ele era. Quem era ela, tornou diferente Seu nascimento do de todos os outros seres humanos. Possuindo a humanidade física do Seu tempo, debilitada pelo pecado, Ele veio com um relacionamento eterno e sem pecado com Deus. Atentar para Cristo como monogenes, teria evitado muito do panteísmo (Kellogg, Jones, Waggoner) e do movimento da carne santa (Donnell, Conferência de Indiana).24

A Bíblia requer que a singularidade de Jesus seja nosso ponto de partida para a Cristologia. Ele não é apenas outro homem, mas Deus que Se tornou homem. “A Palavra Se tornou carne” (S. João 1:14, N. I. V.). Esse movimento em direção do homem é o contexto a partir do qual se deve explicar o significado do Homem-Deus. Alguns se esquecem disso, escolhendo antes começar com a geração final e sua manifestação posterior, relativa à experiência. Argumentam que se esta geração não deseja tanto cometer atos pecaminosos, ainda que possuindo natureza pecadora, então Cristo também deve ter sido sem pecado em uma natureza pecadora. Para que a última geração proceder melhor do que Cristo? Esta é Cristologia escatológica, ou interpretação remota do futuro da natureza humana de Cristo. Ela permite realidade alheia a Cristo para informar-nos a respeito de Cristo. Mas Cristo, e não a escatologia, deve ser o ponto de partida. Necessitamos de uma escatologia cristocêntrica, em lugar de uma Cristologia escatológica.

Os erros teológicos de Schweitzer e Barth deveriam precaver-nos e orientar-nos nesse ponto. Tanto Schweitzer quanto Barth (em seus escritos iniciais) começaram com a escatologia e a interpretação remota na Cristologia, com resultados devastadores. O Jesus de Schweitzer terminou como um homem enganado, 24 e o Cristo de Barth como “outro inteiramente” Deus 26 — duas superênfases, nenhuma das quais faz justiça a Jesus Cristo.

O pensamento cristológico precisa começar com a singularidade de Cristo como Filho de Deus, em lugar de iniciar-se com Sua semelhança com os seres humanos, como o Filho do homem. Além disso, epistemologicamente, não podemos mudar do humano para o divino, mas podemos fazê-lo do divino para o humano. Ao determinarmos a natureza humana do homem Jesus, monogenes deve ser o ponto de partida e o centro da Cristologia.

A palavra pōtotokos, ou “primogênito”, é usada sete vezes, relacionada com Jesus (ver Heb. 1:6; Rom. 8:29; Col. 1:15, 18; Apoc. 1:5). “Primogênito” refere-se não tanto a tempo, mas a importância. Como na cultura hebraica o primogênito recebia os privilégios da família, assim Jesus, o “primogênito” entre os homens, reconquistou todos os privilégios que o homem perdera por meio da Queda. Dessa maneira, o “único criado” e o “primogênito” não devem ser interpretados literalmente quando aplicados a Jesus. Em lugar disso, eles indicam que Ele era o único de uma espécie. Sua missão era tornar-Se o novo Adão, o novo primogênito, ou cabeça, da raça. Isto O qualificou para ser nosso representante, Sumo Sacerdote e intercessor no grande conflito.

Jesus é nosso exemplo na vida, mas não no nascimento. Se Ele fosse nosso exemplo no nascimento, talvez outros seres humanos pudessem conseguir uma vida perfeita e não necessitassem do Salvador. Essa idéia acha-se no âmago da teologia de Friederich Schleiermacher. Ele cria que Jesus era apenas quantitativamente — e não qualitativamente — diferente dos outros seres humanos. Não nasceu Ele como todos os demais? Não foi a mais plena consciência da presença de Deus e Seu sentimento absoluto de dependência de Deus que O tornaram diferente dos outros? Não obstante, surgiria alguém no futuro que O superaria.27 Tal pensamento nos adverte de que é perigoso não perceber a completa distinção bíblica entre o nascimento de Cristo e o de todos os outros seres humanos.

A teologia de Kari Barth encerra também problemas quanto à natureza do nascimento de Cristo.28 Embora ele cresse que Jesus era verdadeiramente Deus, não permitia que as conclusões bíblicas disso lhe controlassem o entendimento da Encarnação. Ele afirmava que o menino Jesus nasceu com carne pecadora.29 A única maneira de Barth contornar as conseqüências disso, foi dizer que Cristo assumiu essa carne pecadora em Sua natureza divina, de tal maneira que as tentações e o pecado eram uma impossibilidade.30

Premissas bíblicas levam em direção oposta ao pensamento de Schleiermacher e de Barth. O homem Jesus é inigualável. Ele é nosso substituto na vida. Cobre nossos caracteres imperfeitos com Seu caráter humano perfeito. Seu caráter é nosso manto de justiça, o vestido nupcial sem o qual não podemos entrar no reino. Ele é nosso substituto na morte. Morreu em nosso lugar a fim de pagar o preço do pecado, para que tenhamos vida eterna. Mas é também nosso substituto no nascimento. Nasceu sem pecado a fim de satisfazer nossa necessidade fundamental dEle como Salvador, ao nascermos pecadores.

A Bíblia não atribui nenhum valor salvífico ao nosso primeiro nascimento. Na verdade, ela diz claramente: “A não ser que o homem nasça de novo, não pode ver o reino de Deus” (São João 3:3, N. I. V.J. Somente o homem Jesus não necessitou do novo nascimento. Isso O coloca numa classe separada.

Cristo Procedeu da Linhagem Abraâmica e de Davi

Das referências bíblicas até aqui estudadas, que podemos concluir quanto ao significado das seguintes expressões: “Ele tomou sobre Si a descendência de Abraão” (Heb. 2:16) e “nasceu da descendência de Davi segundo a carne” (Rom. 1:3; cf. S. João 7:42; II Tim. 2:8)? Declaram estas passagens que Jesus tomou uma natureza pecadora, procedente de Abraão e Davi? À luz do amplo contexto bíblico, estas passagens não estão tratando da natureza, mas da missão de Cristo. Elas não se referem à espécie de carne com a qual Ele nasceu (sem pecado ou pecadora). Em lugar disso, afirmam que, como judeu (Heb. 2:16) e como seu verdadeiro rei (Rom. 1:3), Jesus veio como o cumprimento do concerto. Deus mandou que Abraão saísse e formasse um povo mediante o qual pudesse Ele abençoar todas as nações (Gên. 22:18). Semelhantemente, Jesus veio através de Maria para salvar as nações (S. Mat. 1:18, 21; cf. S. João 3:16). O contexto é a missão e não a natureza.

Israel, no período do Antigo Testamento, e os judeus cristãos, nos dias do Novo Testamento, consideravam Abraão como o “pai” da Igreja de Deus em sua forma inicial (ver Isa. 51:2; Rom. 4:12; e Tiago 2:21 e seus contextos). E o autor da Epístola aos Hebreus, ao escrever também sobre Jesus, diz que Ele “tomou sobre Si a descendência de Abraão” (Heb. 2:16). O fato de Jesus ser colocado no plano do concerto abraâmico não Lhe anula a execução do mesmo propósito desse plano convencial de tornar-Se o segundo Adão. Na verdade, o mesmo livro que menciona a ligação de Cristo com Davi, também O apresenta como o segundo Adão (ver Rom. 5:12-21).

Inclui a substituição o tornar-se exatamente como um de nós no nascimento? Poderia Jesus salvar-nos realmente, não Se tivesse Ele realmente tornado um de nós em natureza pecadora? Desceu Ele realmente ao abismo onde nos encontrávamos, a fim de puxar-nos para fora? Descendo ao abismo tomou Ele da carne humana verdadeira apenas na medida em que Sua união com o Pai não fosse prejudicada. Em outras palavras, Ele não poderia ser pecador por natureza, pois, por definição, semelhante natureza é resultado de separação de Deus. União com Deus e natureza espiritual pecadora estão de tal forma distantes uma da outra quanto o estão o céu e a Terra. Dizer que Ele Se identificou conosco, mas continuou fiel a Deus é compreender mal a natureza do pecado. Pecado significa separação de Deus. Ou Jesus manteve um relacionamento ininterrupto com o Pai ou desistiu e mergulhou em nossa alienação.

Jesus tanto foi nosso substituto como exemplo; e nessa ordem. Existe uma prioridade do substituto sobre o exemplo, da mesma forma que o há de Deus sobre o homem e do Salvador sobre o salvo. É importante notar isto. A Cristologia jamais deve começar com o exemplo e esperar fazer justiça a Sua substituição. Cumpre-lhe seguir o caminho que leva da substituição para o exemplo. Necessitamos de Sua substituição ao longo de todo o trajeto: necessitamos de Sua eterna divindade, de Seu nascimento sem pecado, de Sua vida sem pecado, de Sua morte perfeita, Sua ressurreição, intercessão sumo-sacerdotal e Sua segunda vinda. Necessitamos dEle também como homem, para exemplificar a inteira dependência de Deus.

O fato de Ele ter nascido sem pecado de modo algum sugere que a transgressão da lei não é importante para o restante de nós que nascemos pecadores. Não é verdade que crer na natureza sem pecado, de Cristo, significa que ninguém mais pode, ou mesmo deve, procurar observar a lei. Jesus não é nosso substituto para que vivamos como nos aprouver.

Tentado Como nós

Vimos que os dados bíblicos apresentam um Jesus humano ímpar, que não poderia ter tido uma natureza pecadora. A pergunta não tarda: Entende-nos Ele realmente, então? Ou é Ele um ser distante, que teve uma vantagem injusta sobre nós? Pode Ele ser realmente um compassivo Sumo Sacerdote? Afinal, foi Ele realmente tentado em todas as coisas como nós?

Nossa Cristologia influencia nossa compreensão quanto às tentações de Cristo. Ele tinha poderes que não se acham naturalmente disponíveis aos outros homens. Alguns se admiram de que a tentação não fosse considerada nenhuma prova para Cristo. Embora Anselmo (1033-1109) fosse o primeiro erudito importante a focalizar a vida de Cristo na Terra como homem (ele escreveu Cur Deus Homo), posteriormente outros continuaram a examinar a veracidade de Sua provação. Assim, a crença de Calvino de que Jesus continuou no trono do Céu enquanto vivia na Terra (extra Calvinisticum); a associação da natureza divina com a humana, de Lutero (communicatio idiomatum); e o envolvimento da humanidade adotada em uma divindade invencível (ganz anderer), de Barth, todos tornaram irreais as tentações de Cristo e impossível que Ele pecasse. Como Barth, E. J. Waggoner cria que Jesus tomou carne pecadora, mas não podia pecar, porque era divino.32 De que serve uma natureza pecadora semelhante à nossa, se Ele possuía uma natureza divina diferente da nossa? Uma anula a outra, retirando a realidade da tentação dEle.

Em contraste, a Bíblia afirma que Ele “como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado” (Heb. 4:15). “Em tudo” não quer dizer as mesmas tentações (plural), mas a mesma tentação (singular). Por exemplo, Jesus jamais foi tentado a ver TV, fumar ou ultrapassar o limite de velocidade. Mas foi tentado a interromper sua dependência de Deus. Satanás empregou meios diferentes para atingir o mesmo fim. Pois o alvo de toda tentação é interromper o relacionamento de alguém com Deus.

As tentações de Cristo eram maiores do que as nossas, pois apenas Alguém que jamais Se entregou pôde sentir sua força plena.33 B. F. Wescott expressou isto da seguinte maneira: “A simpatia para com o pecador em provações não depende da experiência do pecado, mas da experiência da força da tentação para pecar, que apenas os sem pecado podem conhecer em toda a sua intensidade. Aquele que cai, rende-se antes do último esforço.”34 Mas “em tudo” inclui “da mesma maneira”?35 Tiago escreve: “Cada um é tentado quando, por seu próprio desejo mau, é atraído e engodado” (Tiago 1:14, N. I. V.). Propensões más (tendências para pecar) são adquiridas de duas maneiras: mediante o pecar, e através do nascimento como pecador. Cristo não foi nem uma coisa nem a outra. Ele nasceu “essa coisa santa” (S. Luc. 1:35, N. I. V.), e Satanás não achou nEle absolutamente nenhum mal (ver S. João 14:30). “Ser tentado em tudo como nós somos” deve ser entendido à luz dos dados bíblicos já considerados. Indica que Ele, como um ser humano exemplar, foi tentado em todos os pontos como nós. De novo, a tentação envolve basicamente a tentativa de Satanás para interromper o relacionamento de alguém com Deus.

É inconcebível que Jesus fosse levado à separação de Seu Pai exatamente no ato de vir fazer Sua vontade. As duas coisas são incompatíveis. Seu nascimento incomum não deve ser motivo para se protestar: “Injustiça! Não Te tornaste realmente como um de nós, tiveste mais facilidades do que nós! Quem não resistiría às tentações se tivesse uma natureza sem pecado como tens?” Como poderia ser diferente? Qualquer suposta vantagem que Jesus teve não a teve em Seu próprio benefício. Sua missão de salvar determinou a extensão de Sua identidade conosco.

Não obstante, dizer isso estabelece um paradoxo. Permanecer diferente de nós não Lhe traz uma vantagem; na realidade, era-Lhe desvantajoso. Pois se o forte da tentação é levar a pessoa a confiar em si mesma em lugar de confiar em Deus, quem deve ter sido mais tentado, Jesus, que podia confiar em Sua própria divindade, ou nós, que nada temos comparável?

A desvantagem de Cristo na tentação decorria de Sua singularidade. E nessa singularidade repousa nossa salvação. Apenas Jesus experimentou a força total da inimizade satânica, pois o conflito de Satanás é contra Cristo e não em prejuízo de qualquer outro ser humano. Todo o inferno se desencadeou contra esse dependente homem Jesus; e, além disso, Jesus não poderia dar perdão se Ele fosse superpoderoso. Imaginai a aflição quando cada momento, cada ato decidiu tais conseqüências para Si mesmo e o mundo inteiro!

Se Jesus devesse ser carne pecadora para entender por experiência nossas lutas, como poderia simpatizar com a escória da raça? Como poderia Ele salvar a geração que havia chegado a mais de dois mil anos de decadência em degeneração genética? Se o tomar nossa natureza pecadora Lhe era pré-requisito para ser tentado como nós, então Ele deveria ter sido contemporâneo do último homem nascido. Todavia, mesmo que Jesus fosse uma pessoa da última geração, Seus contemporâneos ainda seriam mais degradados por causa do seu próprio pecado. Se a natureza pecadora é um elemento necessário ao ser tentado como nós, então Cristo não foi tentado à semelhança de nossa geração e dos degradados mediante pecado pessoal. Se, porém, Sua singularidade tornou maior Sua tentação, Conseqüentemente não necessitava Ele de nossa natureza caída para ser tentado como nós.

Não, até que Sua morte fizesse Aquele “que não conheceu pecado” tornar-Se “pecado por nós” (II Cor. 5:21). Jamais, antes daquele momento, trouxera-Lhe o pecado uma separação de Seu Pai, que O levasse a exclamar: “Deus Meu, Deus Meu, por que Me desamparaste?” (S. Mat. 27:46). O homem Jesus Se fez pecado por nós em missão na morte, e não em natureza no nascimento.

Doxologia

A Teologia é um esforço humano no sentido de entender a revelação pessoal de Deus. A Cristologia é o centro e âmago da teologia, pois Jesus Cristo é a maior revelação de Deus ao homem. Ele é também a maior revelação do homem autêntico ao homem. Jesus Cristo foi singular não só como Deus conosco, mas como homem conosco. Ele era a divindade sem pecado, unida à carne humana enfraquecida pelo pecado, mas era igualmente sem pecado em ambas as naturezas. Era Deus conosco, mas viveu como homem à nossa semelhança, em completa abnegação (ver Filip. 2:7). Mesmo sendo Deus, abriu mão de Seus atributos divinos, vivendo como homem autêntico, inteiramente dependente de Seu Pai nos Céus.

Ó maravilhai-vos, vós habitantes dos Céus! Pasmai, vós anjos das alturas! Adorai-O, pecadores da Terra! Pois que outro ser humano, nascido de mulher, pode igualar-se a Ele em natureza e atos? Quem, senão Ele deu tanto por tão pouco? Quem mais se limitou a um corpo humano, quando existia antes em toda parte? Quem mais escolheu continuar tão limitado para sempre? Quem, senão Ele, se atirou no câncer inativo e final do pecado, para trazer cura radical e não se infectou? Quem poderia tornar-Se médico do ser humano, ao mesmo tempo que se mantinha distante dos tormentos humanos?

Como poderia Jesus ser meu exemplo em todas estas coisas? Como eu poderia imitá-Lo? Como poderia ser eterno, ser Deus, ser sem pecado por nascimento, sem pecado como uma criancinha e sem pecado por toda a vida? Como poderia eu vencer tudo o que Ele venceu? E quando, finalmente, vencer Ele a Satanás por Sua morte no Calvário — o que tem conseqüências cósmicas e salvíficas — como poderei imitá-Lo? Sim, desejo ser como Ele, mas admito que Ele será para sempre singular. Como o apóstolo Pedro, confesso: “Afasta-Te de mim, Senhor; sou um homem pecador!” (S. Luc. 5:8, N.I.V.). Todavia, em Sua misericórdia Ele diz: “Vinde a Mim” (S. Mat. 11:28). Ele me atrai por Sua singularidade. Necessito desesperadamente daquilo que O torna diferente de mim.

Cristianismo não quer dizer exatamente ser semelhante a Ele. E viver nEle. Somos justos apenas em Cristo; jamais em nós mesmos. As boas novas são mais do que “Imita-Me”. Elas são sempre o primeiro e o melhor “Une-te a Mim”, “Habita em Mim” (S. João 15:4), “Cristo em vós, esperança da glória” (Col. 1:27) e “Vós estais aceitos no Amado” (Efés. 1:6, N. I. V.).

A verdadeira Cristologia termina, não em debate, mas em adoração aprazível e em obediência deleitosa. Contemplando-O, não só O louvamos, mas nos tomamos semelhantes a Ele (ver II Cor. 3:18). Contemplar-Lhe o amor por nós, Seu inigualável amor como homem ímpar, eletriza-nos; ansiamos por ser mais cheios dEle, do que ser semelhantes a Ele. Este enfoque é crucial. Ele se encontra nEle e em Suas palavras, e distante de nós e de nossas obras. Nós não seguimos, apenas, mas comungamos. Ele não é bem regras, mas relacionamento. Não é bem uma prática, mas uma Pessoa. Pois o cristianismo é Cristo de um ao outro extremo. Além dessa comunhão, vem uma surpresa maravilhosa — tornamo-nos semelhantes Aquele a quem contemplamos mais e mais! É um subproduto natural do anseio de que Ele habite em nós. A Cristologia atinge o seu ponto culminante na exclamação: “Vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Gál. 2:20). Somente nessa união dependente pode Jesus ser nosso homem-modelo — nunca em Sua natureza por ocasião do nascimento.

Referências:

1. Ver E. C. Webster, Crosscurrents em Adventist Christology (Berna, Suíça: Peter Lang Pub., Inc., 1984), para uma avaliação comparativa da Cristologia de H. E. Douglass, E. Heppenstall, E. J. Waggoner, e E. G. White. Aqueles que focalizam a natureza pecadora de Cristo incluem (alfabeticamente): T. A. Davis, Was Jesus Really Like Us? (Washington, D. C.; Review and Herald Pub. Assn., 1979); H. E. Douglass and Leo Van Dolson, Jesus: The Benchmark of Humanity (Nashville: Southern Pub. Assn., 1977). Os que defendem a natureza sem pecado, de Cristo, incluem (alfabeticamente): N. R. Gulley, Christ Our Substitute (Washington, D. C.: Review and Herald Pub. Assn., 1982); E. Heppenstall, The Man Who Is God (Washington, D. C.: Review and Herald Pub. Assn., 1977); H. K. LaRondelle, Christ Our Salvation (Mountain View, Calif.: Pacific Press Pub. Assn., 1980). A Cristologia clássica tem três superênfases principais: Jesus como (1) também divino, o ponto de vista principal por centena de anos, visto no extra Calvinisticum atanasiano-calvinista, no qual a divindade de Cristo permaneceu no trono do Céu, enquanto Sua humanidade vivia na Terra? (2) também humano, os arianos; ou (3) uma mistura divino-humana, como a communicatio idiomatum de Lutero. Os dois principais pontos de vista do Adventismo consideram a Cristologia de todos eles como tornando a Jesus ora muito divino, ora muito humano. Isto exerce clara influência sobre a maneira como Ele é considerado nosso exemplo no vencer as tentações.

2. Para estudos feitos nas obras de E. G. White, ver Norman R. Gulley, “Behold the Man”, Adventist Review, 30 de junho de 1983. Há uma grande necessidade de um estudo teológico hermenêutico dos escritos de E. White em geral, e de sua Cristologia em particular. Pesquisa adicional deve ser feita para ver se o endosso de Ellen White feito por Jones e a teologia de Waggoner, era sustentado princípalmente por sua nova ênfase, o afastamento do homem de Cristo, e não necessariamente um endosso de cada pormenor de sua Cristologia, como a natureza humana de Jesus. (Ver Age Rendalen, “The Nature and Extent of Ellen White’s Endorsement of Waggoner and Jones” [jornal de pesquisa da Biblioteca da Andrews University, 1978].) O fato de a Cristologia de Jones e Waggoner jamais ser panteística também merece ser levado em consideração. O Panteísmo é uma identificação excessiva de Deus com a Criação, que pode ser considerada a conclusão lógica de procurar tornar o homem Jesus, quanto à natureza, totalmente como os demais homens. O uso da expressão “natureza pecadora”, de Ellen White, e seus sintomas, precisam ser definidos no contexto desse uso no seu tempo, bem como dentro do contexto histórico de cada manuscrito, carta, ou aparecimento do artigo. As complicações inferidas de uma multiplicidade de fontes, geralmente deixam de dar lugar adequado ao embasamento histórico. É claro que muitas dissertações doutorais podem ser úteis aqui. Um fato é certo: O estudo da Cristologia deve ser iniciado com dados bíblicos. Depois se pode ler as obras de Ellen White. Ela jamais achou que se devesse fazer o contrário, nem isto é verdade para a pressuposição dos adventistas do sétimo dia de que a Bíblia é a base de todas as suas doutrinas.

3. A definição dos termos é vital nessa discussão. A partir dos dados bíblicos a serem considerados, podemos notar: 1. Cristo foi distinto como homem (semelhante, não idêntico). Por isso, defino Sua natureza humana como no máximo fisicamente afetada pelo pecado, mas completamente sem pecado do ponto de vista espiritual. Ele foi o ponto culminante de um homem do Seu tempo; Ele sentiu cansaço, teve fome e sofreu dor. Espiritualmente, porém, manteve uma comunhão ininterrupta com Deus como a manteve Adão antes da Queda. 2. Seu nascimento por meio do Espírito foi exclusivo. Ele não pode ser comparado com o nosso novo nascimento do Espírito, pois pecamos antes do nosso novo nascimento, enquanto Ele era santo antes de nascer. Nosso novo nascimento decorre do contexto do corruptível. Seu nascimento se inclui no contexto do santo. 3. A doutrina do pecado (hamartiologia) acha-se na retaguarda do debate sobre a natureza de Cristo (Cristologia). Quando compreendido como a interrupção de um relacionamento, o pecado torna impossível a Jesus uma natureza pecadora ao nascer. Pois não poderia haver maior demonstração de união com Deus, do que ir ao ponto que Cristo foi para fazer a vontade do Pai (Heb. 10:7-9). Ambas as escolas de Cristologia na Igreja Adventista do Sé-timo Dia precisam usar palavras como carne, pecado, mesmo, semelhante, único, Imaculada Conceição, pecado original, semente de Abraão, e semente de Davi, como são usadas pelos escritores bíblicos ou como são expostas neste artigo. Caso se fizesse isso, estabelecer-se-ia a comunicação entre eles (eles estariam falando a respeito das mesmas coisas) e muitas das diferenças existentes entre eles se dissipariam.

4. Englishman’s Greek Concordance of the New Testament (Londres: S. Bagster and Sons, 1903), págs. 680, 681.

5. Reinhold Niebuhr cria incorretamente que sarx, nos escritos de Paulo, fosse “princípio do pecado’’ (The Nature and Destiny of Man [Nova Iorque: Charles Scribners Sons, 1949], pág. 152).

6. Hamartia e seus cognatos são encontrados 174 vezes no Novo Testamento, mais de cinqüenta vezes nos escritos de Paulo. Adikia é uma palavra mais especializada e mais legal, que significa “não justo’’ (o contrário de “justiça”, dikaiosune). Paraptóma vem de parapitõ, “cair além de”. Ver ed., Colin Brown, The New International Dictionary of New Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1978), vol. 7, pág. 573. Para informação geral sobre hamartia e seus usos, ver Kittel’s Theological Dictionary of the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1964), vol. 1, págs. 308-311; W. E. Vine, Expository Dictionary of New Testament Words (Londres: Oliphants, 1946), vol. 4, págs. 32-34.

7. G. W. Bromiley, trad. (Grand Rapids: Eerdmans, 1971), pág. 126. Para o artigo completo, ver págs. 124-144.

8. Ibid., pág. 130.

9. Ibid., pág. 134.

10. I S. João 4:1-3 não fala a respeito de que espécie de natureza humana (pecadora ou sem pecado) teve Jesus, mas da natureza humana em si. Os gnósticos, e Posteriormente os docéticos, criam que Ele não Se tornou realmente humano, mas simplesmente apareceu como humano. Essa passagem classifica tal negação de Sua humanidade genuína como inimiga de Cristo.

11. Aqui, a similaridade não quer dizer outro ser que não humano (extraterreno). Antes, como humano, Ele foi apenas semelhante a todos os outros humanos.

12. “Ao tomar sobre Si a natureza do homem em sua condição caída, Cristo não participou de maneira alguma de seu pecado. Ele estava sujeito às enfermidades e fraquezas das quais o homem está cercado…. Ele foi atingido pela sensação de nossas enfermidades, e foi em todos os pontos tentado como nós somos. E contudo, ‘não conheceu pecado’…. Não deveríamos ter nenhuma dúvida com relação à perfeita pureza da natureza humana de Cristo.” — E. G. White, Signes of the Times, 9 de junho de 1898 (citado em The SDA Bible Commentary, vol. 7, pág. 912).

13. Ele preservou Sua divindade através de toda a Sua Encarnação. Foi quiescente dentro das limitações de Sua escolha pessoal da kenosis (Filip. 2:6-8).

14. “O ponto de vista do Antigo Testamento com relação ao pecado é o reverso negativo da idéia do concerto, e daí ser muitas vezes expresso em termos legais.” — The New International Dictionary of New Testament Theology, vol. 3, pág. 578. “Hamartia é sempre usada no Novo Testamento relacionada com o pecado do homem, que é fundamentalmente dirigido contra Deus.” — Idem, pág. 579. “No quarto Evangelho hamartia designa… um ato pecaminoso especial, um estado, ou mesmo uma força que impele o homem, e o mundo tomado como um todo, afastado de Deus.” — S. Lyonnet and L. Sabarin, Sin, Redemption, and Sacrifice: A Biblical and Patristic Study, vol. 48 of Analecta Biblica (Roma: Biblical lnstitute Press), pág. 39.

16. E. F. Harrison, ed. Baker’s Dictionary of Theology, Grand Rapids: Baker Book House, 1969), pág. 488.

17. R. C. H. Lenski, Interpretation of Romans (Columbus, Ohio: Wartburg Press, 1945), pág. 366.

18. John Murray, The Epistle to the Romans, in The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1971), vol. 1, pág. 183. Ler também as págs. 178-209 sobre “The Analogy”.

19. Govett, op. cit., pág. 142.

20. Lenski, op. cit., pág. 364.

21. Várias palavras gregas terminam em ma em Romanos 5. A terminação ma significa “resultar”. Duas dessas palavras são queda e graça, e comparam os resultados do pecado de Adão com a salvação de Cristo. Ambos os resultados passaram à raça humana provenientes desses dois Adões igualmente independentes de obras humanas, tema central da Epístola de Paulo.

22. Há 11 palavras no hebraico que sugerem diferentes nuanças de pecado.

23. Para um estudo minucioso sobre o pecado, ver G. C. Berkouwer, Sin (Grand Rapids: Eerdmans, 1971), e Piet Schoonenberg, S. J. Man and Sin.- A Theological View (South Bend, Ind.: University of Notre Dame Press, 1965). E na Católica “pecado original” ver R. C. Broderick, The Catholic Encyclopedia (Nashville: Thomas Nelson Pub. Co., 1976), pág. 440; Baker’s Dictionary of Theology, págs. 486-489; George Vandervelde, Original Sin: Two Major Trends in Contemporary Roman Catholic Reinterpretation (Lanham, Md.: University Press of America, 1982); e John Murray, The Imputation of Adam’s Sin (Grand Rapids: Eerdmans, 1959).

24. Tanto o panteísmo como o movimento da carne santa deixaram de dar lugar conveniente a Jesus como monogenes. O Panteísmo identificou em demasia a Deus com o homem, afastando a possibilidade da singularidade. O movimento da carne santa se apegou tanto à questão de tornar-se semelhante ao Jesus sem pecado, que novamente não foi dada à Sua singularidade lugar condizente.

25. Albert Schweitzer, The Quest of the Historical Jesus (Londres: Adão e Charles Black, 1954), págs. 254, 358 e 368.

26. Kari Barth, Church Dogmatics, 4 vol. (Edinburgh: T. & T. Clark, 1936-1969), vol. I, pt. 2, pág. 50; vol. II, pt. 1, pág. 63; The Humanity of God (Londres: Collins, 1961), págs. 44 em diante.

27. Friedrich Schleiermacher, The Christian Faith (Edinburgh: T. & T. Clark, 1928).

28. .“O que Deus é em Sua revelação, Ele o é anteriormente e eternamente em Seu próprio Ser Trinitariano interior” é a pressuposição básica da “revelação” que precede a teologia de Barth. Nesse contexto seu logos ensarkos, que acompanha a Cristologia eniprostatica, considera que a humanidade de Jesus tem existência apenas na divindade eterna de Cristo. Isto acaba às vezes apresentando uma humanidade eterna de Jesus. (Ver Church Dogmatics, vol. 3, pt. 2, págs. 484 e 493.) Ele sugere também que Jesus não é um homem (homo), mas a humanidade (humanum). — Idem, vol. 4, pt. 2, págs. 48 em diante.

29. Idem, vol. 1, pt. 1, pág. 191; vol. 3, pt. 2, pág. 51; vol. 4, pt. 1, págs. 69, 88, 90, 93-95, 98, 100, 203.

30. Idem, vol. 1, pt. 2, págs. 158 em diante, 191; vol. 3, pt. 2, pág. 51.

31. Os Evangelhos revelam o contexto pactuai em que Jesus e Seus contemporâneos viveram. Abraão foi o pai dos fiéis filhos de Israel, que consideravam o Messias que havia de vir como o “filho de Davi” ou da linhagem davídica. O cântico de Maria comprova isto (S. Luc. 1:55), como também o de Zacarias. Ele disse que havia vindo salvação à casa de Davi (verso 69), pois Deus Se lembrara de Seu concerto com Abraão (verso 73). O cego clamou a Jesus como “filho de Davi” (S. Mat. 9:27; 12:22 e 23; 20:30; S. Mar. 10:46 e 47). Os ensinadores da lei O chamavam “filho de Davi” (S. Mar. 12:36). Durante Sua entrada triunfal em Jerusalém, a multidão clamava hosanas ao “filho de Davi” (S. Mat. 21:9). Cristo chamou a mulher paralítica de “filha de Abraão” (S. Luc. 14:16). Na parábola do homem rico e Lázaro, o mendigo foi levado ao seio de Abraão após a morte (cap. 16:22), e a vida eterna foi pintada por Cristo como a participação no banquete do reino com Abraão (S. Mat. 8:11). Enquanto os judeus consideravam Abraão como seu pai (S. João 8:33-39), Jesus foi além desse limite pactuai, declarando: “Antes que Abraão existisse Eu sou” (verso 58). Duas coisas devem ser mantidas em equilíbrio: Diz-se que Jesus procede de Abraão apenas porque Ele era o Messias prometido, que veio dar cumprimento a todas as promessas conveniais. E se diz que Jesus é antes de Abraão porque anteriormente e eternamente Ele é Deus.

32. E. J. Waggoner, em Signs of the Times, 21 de janeiro de 1889; cf. Christ and His Righteousness (Oakland, Calif.: Pacific Press Pub. Co., 1890), pág. 28.

33. F. F. Bruce, Commentary on the Epistle to the Hebrews (Londres: Marshall, Morgan and Scott, 1974), pág. 87.

34. Citado em Commentary on the Epistle to the Hebrews, pág. 88.

35. Dietrich Bonhoeffer parece pensar assim. Ver Temptation (Nova Iorque: Macmillian, 1955), pág. 16.