Estudo sobre o dom de profecia no livro de Números

Ao longo do Antigo Testamento, percebe-se a comunicação de Deus com Seu povo por intermédio dos profetas, o que ocorreu em ocasiões e maneiras diversas (Hb 1:1). Porém, o profeta sempre é reconhecido como aquele que fala pelo divino, sendo que a terminologia bíblica inicial fala que o Espírito do Senhor veio sobre a pessoa, enquanto a terminologia mais tardia é: “veio a mim a Palavra do Senhor”.1 Basicamente, os profetas comunicavam a Palavra de Deus para situações vigentes, confrontando o pecado de Israel, mas também intercediam pelo povo diante de Deus.2

Apesar de se associar profetas aos livros que escreveram ou aos livros históricos, encontramos exemplos e manifestações proféticas no Pentateuco. Aliás, é justamente no Pentateuco que ocorre a primeira menção à palavra “profeta” (Êx 4:16). No livro de Números, que narra a trajetória do povo de Israel até Canaã, em continuação aos episódios referidos no livro de Êxodo, em meio à sua variedade de temas e gêneros literários3, há passagens que abordam o tema do dom profético.

Neste artigo, analisaremos três narrativas específicas: O episódio em que Deus derramou Seu Espírito sobre os líderes de Israel (Nm 11), a controvérsia envolvendo Moisés e seus irmãos (Nm 12) e a chamada “perícope de Balaão” (Nm 22-24). Por causa da limitação de espaço, faremos considerações pontuais sobre os três episódios, destacando o que o livro de Números ensina sobre o dom de profecia. Ao fim, apresentaremos o resumo de nosso estudo, com o esboço de uma possível teologia do referido livro sobre o dom profético.

Espírito concedido

O contexto de Números 11 trata de uma crise enfrentada pela liderança de Moisés. A queixa, fomentada por estrangeiros entre o povo
(Nm 11:4), estava relacionada a razões dietéticas (Nm 11:4-6). Diante da pressão popular (Nm 11:10), Moisés se queixou com Deus e mostrou a exaustão que sua responsabilidade lhe causara, a ponto de admitir que não tinha condições de continuar liderando sozinho o povo, preferindo a isso a própria morte (Nm 11:14, 15). Depois de atender miraculosamente a demanda do povo, Deus decidiu conceder o Espírito dado a Moisés a outros setenta líderes, que passaram a profetizar, o que fizeram apenas nessa ocasião (Nm 11:24, 25). O contexto sugere que “houve distribuição tanto qualitativa como quantitativa do Espírito do Senhor”.4

Curiosamente, duas autoridades que faziam parte do grupo, Eldade e Meldade, também profetizaram, fazendo-o no meio do acampamento (Nm 11:26), razão pela qual foram despertados os ciúmes de Josué (Nm 11:29), jovem auxiliar de Moisés. Ciúme ou zelo nesse caso revela que Josué desejava que Moisés continuasse sendo o único líder.5 Obviamente, era um zelo fora de lugar.6 A resposta de Moisés indica sua disposição de não monopolizar os dons divinos, mas de vê-los se manifestando e atuando livremente na comunidade (Nm 11:29).

Moisés e seus irmãos

Uma nova crise atingiu Moisés, segundo o capítulo 12 do livro, dessa vez com um caráter familiar. Seus irmãos passaram a criticá-lo, em decorrência da etnia de sua esposa (Nm 12:1, 2). Para resolver a questão, Deus convocou os três irmãos e, em defesa de Seu servo, explicou a diferença entre Seu contato com os profetas e a maneira como se relacionava com Moisés (Nm 11:6-8).

O termo profeta (hebraico nabi), que aparece no verso 6, é o mesmo referido quando Moisés expressou seu desejo de que todo o povo profetizasse (Nm 11:29). Deus tradicionalmente Se comunica com os profetas por meio de sonhos (chalowm, palavra hebraica que aparece com maior frequência no livro de Gênesis, mas apenas aqui, no livro de Números) e visões (mar’ah, termo usado pelos profetas, como Daniel e Ezequiel, na época do exílio). Porém, Moisés falava com Deus face a face. Quando junto com o povo, Deus a ele Se manifestava por meio de Sua presença no santuário; mas quando a sós, era como se Deus lhe permitisse estar dentro da tenda sagrada.7 O contato de Moisés com Deus era, portanto, “mais regular e familiar” em relação àqueles que tinham experiência profética.8 Assim, Arão e Miriã, também relacionados entre os profetas (Dt 18:15; 34:10), deveriam respeitar seu irmão, uma vez que ele era “posto à parte e acima dos profetas”.9

Perícope de Balaão

Israel havia chegado à estepe de Moabe. Diante de uma eventual invasão israelita, Balaque formou uma liga Moabe-Midiã (Nm 22:4), sendo esta a solução encontrada em consenso (Nm 22:5, 6): a única forma de conter o avanço do povo santo era amaldiçoá-lo. Para fazer isso, contataram Balaão, tendo o cuidado de não mencionar, na mensagem destinada ao vidente, quem era o inimigo, a fim de evitar um conflito de interesses, uma vez que ele consultaria o Deus de Israel quanto a amaldiçoar Seu próprio povo.10

É muito debatida a condição de Balaão: profeta legítimo ou mero vidente? O termo que lhe é atribuído, “advinho”, é “pejorativo ou apresenta sentido negativo, especialmente nos livros proféticos”.11 Por mais inverossímil que pareça esse personagem, a arqueologia descobriu um conjunto de relatos em paredes de gesso do século 8 a.C., que conserva paralelos com essa narrativa bíblica. No relato, Balaão é mencionado e descrito como estando em associação com vários deuses. Porém, não se pode descartar que ele tenha sido monoteísta antes disso, especialmente por ter vivido em uma região que o ligava aos arameus, antepassados de Abraão e seus descendentes.12

Outras descobertas se relacionam a Mari, cidade situada entre a Babilônia e Alepo. Ali era praticado o profetismo pagão e os achados nos informam sobre essa prática no Antigo Oriente próximo. Basicamente, havia profetas que se constituíam oráculos sacerdotais (muitos deles também praticantes da prostituição sagrada) e profetas extáticos. Embora não se explique o fenômeno da revelação entre eles, “é possível que os prognosticadores extáticos da Mesopotâmia usassem substâncias que alterassem a percepção, como álcool, haxixe ou esporão de centeio”.13 Esse “esporão” é uma espécie de fungo parasita conhecido como ergot (Claviceps pupura), que afeta o centeio e outros cereais, provocando diversos sintomas, como alucinações, podendo levar à morte por envenamento.14

De acordo com Ellen G. White, Balaão tinha conhecimento (ao menos parcial) do verdadeiro Deus: “Balaão já havia sido um bom homem e profeta de Deus, mas havia apostatado e se entregado à cobiça; todavia professava ainda ser servo do Altíssimo. Não ignorava a obra de Deus em favor de Israel; e, quando os enviados comunicaram sua mensagem, bem sabia que era seu dever recusar as recompensas de Balaque, e despedir os embaixadores. Mas arriscou-se a contemporizar com a tentação…”15 Esse é o mesmo juízo expresso pela literatura rabínica.16 Em seu terceiro pronunciamento, o próprio Balaão utilizou uma palavra traduzida como “palavra” ou “oráculo” (Nm 24:3), cujo sentido indica “declaração profética inspirada (2Sm 23:1), ou uma declaração do Senhor (Gn 22:16;
Nm 14:28; Is 1:24)”.17

Apesar de inicialmente Deus ter impedido Balaão de atender ao convite de Balaque (Nm 22:12), Ele o permitiu, depois de um segundo encontro com o vidente (Nm 22:20). A viagem deve ter durado cerca de vinte dias.18. No percurso, Balaão castigou severamente sua jumenta (Nm 22:27). Curioso é perceber o contraste entre as consequências da ira divina (causa da intervenção do anjo) e as inconsequências da ira humana (vista na atitude de Balaão contra o animal). No momento em que Balaão se mostrava mais irracional, Deus tornou a jumenta racional. Até um animal usado por Deus age com mais inteligência do que um homem obstinado no erro. Com efeito, Deus pode usar qualquer pessoa ou coisa, conforme alguém ponderou:

“Da mesma forma que Balaão cavalgava sua mula até ser ela detida pelo anjo do Senhor, Balaque igualmente impulsionava Balaão a amaldiçoar Israel até que foi detido pelo seu encontro com Deus. Da mesma forma que Deus abriu a boca da mula, Ele colocou Suas palavras na boca de Balaão, para declarar Sua vontade. Esse paralelismo entre Balaão e sua mula sugere que a capacidade de declarar a Palavra de Deus não é necessariamente sinal da santidade de Balaão: revela somente que Deus pode usar qualquer pessoa (e até um animal) para que seja Seu porta-voz.”19

Obviamente, o episódio serviu de alerta para que Balaão dissesse apenas o que Deus mandasse
(Nm 22:35), compromisso que se viu obrigado a cumprir, mesmo à revelia de seu contrato com Balaque. A respeito de seus oráculos, depreende-se deles quão precioso e notável Israel era para Deus, a ponto de ser considerado especial entre todos os povos da Terra!20 De acordo com um comentário, assim como “o primeiro e o segundo oráculos, o terceiro se refere às bênçãos de prosperidade, poder e fama”.21 Talvez se possa dizer com maior precisão que, enquanto os dois primeiros poemas de Balaão se referem ao passado de Israel, os dois últimos apontam para o Messias que viria.22 Parece que Balaão se comportou como autêntico profeta em seus pronunciamentos finais.23 Até mesmo a palavra usada para suas visões (machazeh) é usada no Pentateuco em referência à aparição divina a Abraão (Gn 15:1).

No último pronunciamento feito pelo vidente, temos a compreensão de que é descrito o rei messiânico, como “experimentando um novo êxodo escatológico, recapitulando em sua vida os eventos do Israel histórico em sua saída do Egito e conquista de seus inimigos”.24 No mundo antigo, a estrela representava uma divindade. Considerando isso e a difusão dessa profecia de Balaão em meio ao paganismo, escreveu Roy Gane:

“Não é coincidência que uma estrela guiasse os magos do oriente ao bebê Jesus em Belém (Mt 2:1-11). Tanto os magos como Herodes consideraram a estrela um sinal do divinamente designado ‘rei dos judeus’ (v. 2), um governante como a ‘estrela’ davídica, fora de Jacó, que Balaão viu (Nm 24:17). Nesse caso, o recém-nascido Rei era o Filho de Deus (Lc 1:32-35), cuja origem era celestial, divina (Jo 3:13, 31; 6:38, 51), tornando o símbolo da estrela ainda mais apropriado.”25

Dessa forma, as profecias de Balaão alcançam realização escatológica, apontando para o Messias que viria. É de causar assombro que um profeta pagão antevisse a vinda do Salvador da humanidade!

Implicações

No livro de Números, encontramos menção a episódios envolvendo manifestações proféticas ou alusões ao tema. Neste artigo, tratamos de três menções: duas delas envolvendo Moisés; a outra, não. No primeiro caso, vimos como Deus temporariamente concedeu aos anciãos de Israel o dom de profetizar, mostrando que as responsabilidades da liderança mosaica estariam divididas entre eles. Apesar de a medida haver desagradado Josué, o próprio Moisés afirmou que seria muito melhor se todo o Israel recebesse uma parte do Espírito distribuído à liderança.

No segundo caso, em meio a uma desavença familiar que afetava a imagem de Moisés, Deus expressou Seu íntimo relacionamento com Seu servo, superior à experiência profética e, sem dúvida, um caso peculiar, talvez sem paralelos na história do antigo Israel. Por fim, verificamos nos relatos envolvendo Balaão que o Senhor usou um vidente pagão para abençoar Seu povo, agindo de forma soberana, para mostrar que Israel era distinto das demais nações e que lhe estavam reservadas bênçãos futuras, em continuidade a tudo o que Deus lhe havia proporcionado. Também a promessa messiânica é afirmada por meio de Balaão e, surpreendentemente, para um auditório pagão.

Revisando as três passagens, sugerimos as seguintes implicações para uma possível teologia do dom profético no livro de Números: 1) Deus é soberano na escolha de Seus mensageiros, podendo, em casos específicos, fazer uso de pessoas não diretamente ligadas ao Seu povo. Isso Ele faz com o objetivo de transmitir verdades, embora regularmente Se revele a pessoas que desfrutam relacionamento com Ele. 2) O Espírito do Senhor é comunicado de maneira sobrenatural ao profeta, condicionando-o a exercer um ministério em favor do povo de Deus, principalmente para guiá-lo em assuntos espirituais. 3) Mesmo um profeta necessita reconhecer e respeitar líderes instituídos por Deus, não os desrespeitando nem discriminando arbitrariamente.

Referência:

  • 1 John J. Schmit, em David Noel Freedman, The Anchor Bible Dictionary (Nova York, NY: Doubleday, 1992), p. 482.
  • 2 Robert L. Cate, em Watson E. Mills, Mercer Dictionary of the Bikble (Macon, Georgia: Mercer University Press, 1990), p. 715.
  • 3 Jacob Milgrom, Numbers – The JPS Torah Commentary (Filadélfia, NY: The Jewish Publication Society, 1990), p. 13.
  • 4 Ibid., p. 90, 91.
  • 5 Timothy R. Ashley, The New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans Publishing, 1993), p. 216.
  • 6 Philip J. Budd, Numbers – Word Biblical Commentary (Waco, TX: Word Books Publisher, 1984), p. 129.
  • 7 Jacob Milgrom, Op. Cit., p. 38.
  • 8 Philip J. Budd, Op. Cit., p. 137.
  • 9 Jacob Milgrom, Op. Cit., p. 95.
  • 10 Roy Gane, Leviticus, Numbers – Tne NIV Applications Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2004), p. 690.
  • 11 Charles H. Savelle, Bibliotheca Sacra, 2009, v. 166, nº 664, p. 390.
  • 12 Roy Gane, Op. Cit., p. 690, 691.
  • 13 R. K. Harrison, Numbers: An Exegetical Commentary (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1992), p. 294.
  • 14 Robin Robin DeRosa, “Specters, The Salem Witch and American Memory” (Dissertação de doutorado, Boston, MA: Tufts University, 2002).
  • 15 Ellen G. White, Patriarcas e Profetas, p. 439.
  • 16 Charles H. Savelle, “Canonical and Extracanonical”, p. 397.
  • 17 Roy Gane, Op. Cit., p. 709.
  • 18 T. Carson, em F. F. Bruce, Comentário NVI: Antigo e Novo Testamento (São Paulo, SP: Editora Vida, 2009), p. 335.
  • 19 Gordon J. Wenhan, Números: Introdução e Comentários (São Paulo, SP: Vida Nova, 2001), p. 175.
  • 20 Raymond B. Dillard e Tremper Longmann III, Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo, SP: Editora Vida, 2006), p. 87.
  • 21 Anastasia Boniface-Malle e Tokunboh Adeyemo, Comentário Bíblico Africano (São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2010), p. 198.
  • 22 Martin G. Klingbeil, Inicios, Paradigmas y Fundamentos: Estudios Teológicos y Exegéticos em el Pentateuco (San Martin, AR: Editorial Universidad Adventista del Plata, 2004), p. 81.
  • 23 Ver Dennis T. Olson, Numbers (Louisville: John Knox Press, 1996), p. 147; Eugene H. Merril, Kingdom of Priest: An History of Old Testament Israel (Grand Rapids, MI: Baker, 2008), p. 107.
  • 24 Richard Davidson, O Futuro: A Visão Adventista dos Últimos Acontecimentos (Engenheiro Coelho, SP: UNaspress, 2004), p. 9.
  • 25 Roy Gane, Op. Cit., p. 713.