Uma interpretação para um dos textos mais difíceis da Bíblia
Cristhian Alvarez Zaldúa, Pastor na Missão Equatorial do Sul
“Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos através da água” (1 Ped. 3:18-20).
Têm surgido muitas interpretações, na tentativa de identificar esses espíritos e de explicar o quando, o onde e o porquê da pregação aqui mencionada. Dentre elas, destacamos três: 1) “Cristo, entre Sua morte e ressurreição, anunciou a salvação aos seguidores fiéis de Deus, que haviam esperado pela salvação desde a época do Antigo Testamento.”1 2) “O Espírito de Cristo estava em Noé, à medida que ele pregava aos prisioneiros do pecado.”2 Nesse caso, os “espíritos em prisão” seriam pessoas vivas, desobedientes à advertência de Noé, antes do Dilúvio. Finalmente, 3) os “espíritos em prisão” seriam anjos caídos aos quais o Cristo ressuscitado proclamou Sua vitória final e a destruição que lhes sobreviria no dia do Juízo.3
Há boas razões para rejeitarmos a primeira interpretação. Ela está fundamentada na pressuposição antibíblica da imortalidade da alma. Depois, não explica porque a pregação foi dirigida a um grupo exclusivo, os “espíritos” desobedientes dos dias de Noé, e não a todos os “espíritos” da era do Antigo Testamento. Também é estranha ao contexto do capítulo, que trata de animar os cristãos que sofrem por causa da sua fé. A introdução abrupta de algo que Cristo teria feito em um suposto mundo dos espíritos é desnecessária.
Um correto entendimento desse texto deve estar sustentado linguísticamente, ser apropriado aos contextos literário e histórico do capítulo e do livro, e harmonizar-se com o restante da Escritura. É sobre tais premissas que vamos analisá-lo.
Estabelecendo o texto
Inicialmente, precisamos observar a última frase do verso 18: “morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito”. Originalmente se lê: thanato-theìs mèn sarkì zoopoietheìs de pneuma-ti. Aqui estão presentes as conjunções mèn e de. Quando elas aparecem numa frase, geralmente o sentido é de ênfase, continuação de idéias ou contraste.4 O autor as utiliza para criar um contraste de idéias,5 dando-lhes assim o sentido de “por um lado… por outro…”6 Então Pedro estabelece o contraste entre “carne” (sarki) e “espírito” (pneumati).
Essa análise mostra a falácia da crença segundo a qual o apóstolo estaria dizendo que entre a Sua morte e ressurreição, Cristo desceu ao mundo dos mortos para pregar. O contraste não se refere a um período intermediário entre a morte e ressurreição. A expressão grega zoopoietheìs de pneumati refere-se à ressurreição de Cristo e não a um ato anterior a ela. Também é impossível que nesse caso a palavra pneumati se refira ao Espírito Santo. O apóstolo apenas opõe a condição na qual Cristo morreu à condição na qual ressuscitou, ou seja: “morto, sim, na carne, mas vivificado em espírito”. Que significa isso? Não é que Cristo ressuscitou como um ser incorpóreo (Luc. 24:39; João 2:19-21). Ele morreu com as características físicas da natureza humana, mas ressuscitou com uma natureza espiritual, livre de tais características.
Quando o verso 19 afirma “no qual…”, tem a ver com a forma como ressuscitou: “em espírito foi e pregou”; isto é, em Sua natureza espiritual e glorificada foi pregar “aos espíritos em prisão”. O contexto demonstra que a expressão “no qual” não se refere a uma pregação além túmulo, nem ao Espírito Santo.
O tempo da pregação
O contraste entre sarki e pneumati evidencia que essa pregação foi produzida na nova condição que Cristo obteve após a ressurreição. Alguns afirmam que ela foi produzida milhares de anos antes da morte e ressurreição de Cristo, pelo ministério do Espírito Santo na pessoa de Noé. Mas uma leitura cuidadosa dos versos 19 e 20 não confirma isso. O que aconteceu naqueles dias foi a desobediência dos “espíritos”.
A seqüência de eventos descritos nos versos 18 e 19 é clara e não requer muita discussão. Cristo foi “morto, sim, na carne”, ressuscitou “no espírito”, e nessa condição “foi e pregou”. Essa pregação foi produzida depois da ressurreição de Cristo e não antes. A palavra grega poreutheìs, que é traduzida “foi” (v. 19), é a mesma que, no verso 22, aparece em outras versões como “tendo subido”, para descrever a ascensão de Cristo ao Céu. Portanto, o apóstolo assinala que a pregação de Cristo aos “espíritos em prisão” foi produzida após a ressurreição e durante Sua viagem de volta para o Céu.
Anjos caídos
Neste ponto surge a pergunta: Quem são “os espíritos em prisão”, já que não são espíritos de mortos nem de pessoas que estavam vivas nos dias de Noé? A grande maioria dos eruditos modernos, com base nas evidências, crê que se trata de anjos caídos.7 E embora isso pareça estranho, harmoniza-se com o contexto e com o restante das Escrituras.
Caso eles fossem seres humanos, presos em delitos e pecados nos dias de Noé, teríamos de aceitar que Pedro usou uma expressão ambígua para referir-se a pessoas vivas. É improvável que o apóstolo tenha se referido a seres vivos como “espíritos”. Mas existem muitas referências bíblicas a anjos e demônios como “espíritos” (Mat. 8:16; Mar. 1:23, 27 e 34; Luc. 9:42; Atos 5:16; 8:7; Heb. 1:7 e 14; Apoc. 16:13 e 14). Outro fato importante é que Pedro, em sua segunda epístola, descreve os “anjos que pecaram” como sendo entregues “a abismos [prisões, segundo algumas traduções] de trevas” (II Ped. 2:4). Judas também fala de “anjos, os que não guardaram o seu estado original”, como sendo guardados “sob trevas, em algemas eternas” (Jud. 6).
Esses textos mostram que os únicos “espíritos em prisão” mencionados na Bíblia são anjos caídos. A prisão na qual Deus lançou esses anjos é uma prisão simbólica de trevas, na qual estão guardados para o Juízo final.
Se os “espíritos em prisão” são anjos caídos, por que Pedro afirma que desobedeceram nos dias de Noé? Há evidências de que, nos dias de Pedro, circulava, tanto entre os judeus como entre os cristãos, a crença de que os “filhos de Deus” mencionados em Gênesis 6:1-4 eram anjos caídos que “possuíram as filhas dos homens”. Segundo a crença, dessa união surgiu uma geração violenta e rebelde, razão pela qual Deus aprisionou tais anjos e destruiu a geração iníqua através do Dilúvio. Tal crendice formara entre os leitores originais de Pedro uma associação mental dos anjos caídos com a maldade existente nos dias de Noé. Embora não a defenda, o apóstolo usa essa crença popular como ilustração, dentro do propósito de sua carta: animar os cristãos perseguidos.
O que foi a pregação
Evidentemente, a pregação aos espíritos era uma oferta de salvação. Em virtude de Sua morte e ressurreição, Cristo proclamaria uma mensagem de vitória e juízo sobre os anjos rebeldes. Ao falar dessa pregação, Pedro não utiliza o verbo evangelizomai, cujo significado é “declarar boas-novas”, como o faz nos capítulos 1:12 e 25; 4:6. Ele usa o verbo kerusso, que significa “proclamar, anunciar”, em geral, boas ou más notícias.
A idéia de proclamação da vitória e juízo sobre as forças do mal harmoniza-se com o contexto. Após ter ressuscitado, é dito que Cristo subiu ao Céu e “está à destra de Deus, ficando-Lhe subordinados anjos, e potestades, e poderes” (I Ped. 3:21 e 22). Em outras partes do Novo Testamento esses mesmos termos são utilizados para designar as forças malignas. Paulo, por exemplo, afirma que “nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem principados, … poderá separar-nos do amor de Deus” (Rom. 8:38 e 39). E mais: “porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal” (Efés. 6:12).
O tema do capítulo
Como tudo isso se encaixa com o tema de I Pedro 3? Nos versos 13-17, o apóstolo anima os crentes a não temerem os inimigos, nem se envergonharem de sofrer por causa de Cristo. Os versos 18-22 mostram a razão pela qual eles não devem temer os inimigos, muito menos que a causa de Cristo fracasse: mesmo que Ele tenha morrido, ressuscitou glorificado e triunfante. Nessa condição, foi proclamar Sua vitória sobre os espíritos imundos. Então ascendeu ao Céu e, sentado à destra de Deus, domina sobre “anjos, e potestades, e poderes”.
Saber que Cristo derrotou as forças espirituais do mal significa força e ânimo para os crentes em meio à perseguição. Esse texto é uma exaltação de Cristo sobre Seus inimigos e uma declaração de triunfo sobre o maligno. E Sua vitória também é nossa, pela fé. Estamos cada vez mais perto da libertação.
Referências:
1 Tyndale House Publishers, I & 11 Peter & Jude, Life Aplication Bible Studies (Wheaton, III: Tyndale House Publishers, 1999), pág. 11.
2 Ibidem.
3 http://bible.crosswalk.com/dictionaries/Bakers EvangelicalDictionarv/bed.cgiznumber=T666
4 Bible Works, Friberg AGNT Lexicon (Bible Works for Windows 4……0, 1998).
5 J. Gresham Machen, New Testament Greek for Begginers (New York: Macmillan Publishing Company, 1923), pág. 263.
6 Bible Works, Barclay-Newman Greek Dictionary (Bible Works for Windows 4.0, 1998).
7 Robert Johnston, Bible Amplifier: Peter & Jude (Boise, Idaho: Pacific Press Publishing Association, 1995), págs. 92-99).