É possível, para os adventistas do sétimo dia do fim do século 20, ter uma vida consistente com os elevados requerimentos éticos da Bíblia? A resposta do apóstolo Pedro é positiva. Entretanto, devido a que estamos ligados pela ética tanto a Deus como aos homens, o relacionamento com Deus precede a qualquer conduta ética do cristão no mundo.

Para os adventistas modernos, a ética não está determinada por um conjunto de regras exteriores, mas por uma apropriada relação espiritual com Cristo. É nesse contexto que observamos a lista de virtudes éticas elaborada pelo apóstolo Pedro: “Por isso mesmo, vós, reunindo toda vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com a virtude, o conhecimento; com o conhecimento, o domínio próprio: com o domínio próprio, a perseverança; com a perseverança, a piedade; com a piedade, a fraternidade; com a fraternidade, o amor” (II Ped. 1:5-7).

Essas virtudes constituem uma progressão ética e um caminho seguro de perfeição cristã. Os requerimentos éticos de Deus, enumerados pelo apóstolo Pedro, foram estabelecidos num plano muito elevado, precisamente para que jamais os alcancemos por nós mesmos. Para viver uma conduta ética aprovada por Deus, é preciso receber do Altíssimo quatro oferecimentos: justiça, fé, poder e conhecimento.

Deus pede e dá

A justiça de Cristo possibilita a vida ética cristã. Pedro afirma que é mediante essa justiça que é alcançada a fé (II Ped. 1:1). É interessante que a expressão “Salvador” é encontrada cinco vezes ao longo da carta (1:1, 11; 2:20: 3:2 e 18), e seu acento é mais ético do que cristológico. Também observamos que se trata de uma justiça repartida por Deus, não manufaturada pelo esforço humano. O fundamento da vida ética cristã, segundo Pedro, não é o que é alcançado ou conquistado, mas o que é recebido.

O segundo dom que possibilita a vida ética de um cristão é a fé. Mas que tipo de fé? Os destinatários da carta são identificados como aqueles “que conosco obtiveram fé igualmente preciosa”. Essa fé compartilhada aos leitores é descrita de duas formas: primeiramente, trata-se de uma fé recebida mediante a “justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo” (1:1). Em segundo lugar, os destinatários possuem uma fé “igualmente preciosa”. Pedro parece afirmar que existe igualdade (entre ele e seus leitores), frente aos requerimentos divinos e às exigências das leis humanas. Em relação a esse último aspecto, cabe lembrar que a lei não discrimina pessoas. Em relação à vida espiritual com Deus, o conceito de igualdade de privilégios e deveres é particularmente significativo.

Porém, essa “fé igualmente preciosa” também pode ser vista como uma advertência velada. Significativamente, Judas observa que Israel foi libertado de uma vez (hapax), da terra do Egito, mas depois (deuteron), foi destruído por causa da incredulidade (Jud. 5). Apesar de ser a nação escolhida para ser uma bênção a outros povos, sua história está manchada de infidelidade e apostasia.

Os leitores da carta de Pedro são confrontados com uma advertência semelhante. O apóstolo incorpora em sua epístola um provérbio de uso comum no mercado para destacar a lição ética (2:22). O conhecimento espiritual, tal como foi confiado aos leitores, significa proporcionalidade de obrigações e deveres (2:19-22). Deus espera uma vida eticamente íntegra, de acordo com os privilégios, ou seja, com a fé recebida.

O terceiro elemento que possibilita a vida ética é o poder divino, “visto como, pelo Seu divino poder, nos têm sido doadas todas as coisas…” (1:3). Pedro enfatiza que o poder que conduz à vida ética não reside na fortaleza humana, mas na provisão divina.

O quarto oferecimento divino para a vivência da ética cristã é o conhecimento (v. 3 u.p.). No dizer de Pedro, esse conhecimento não equivale a que os requerimentos éticos sejam frutos da razão (logos) ou do conhecimento (gnosis), mediante os quais se chegaria à plenitude da natureza humana. O cristão é chamado por Pedro a ser transformado mediante o conhecimento completo (epignosis) da graça divina (1:1 e 2; 3:18). A graça divina chegou aos crentes, bem como o conhecimento, isto é, a consciência prática de que essa graça é libertadora e salvífica em sua natureza.          

A primeira implicação disso é que o conhecimento de Deus torna possível o crescimento na graça e paz. Esse axioma abre a carta (1:2) e a encerra (3:18). A segunda implicação é que a graça operando mediante o conhecimento de Deus, tem como consequência prover tudo na forma de recursos divinos necessários para a vida e a santidade (1:3 e 4).

Por outro lado, o impacto ético e geral do conhecimento deve ser compreendido em conjunto com a palavra piedade (eusebia). Depois da saudação que o apóstolo faz na epístola, as expressões “conhecimento” e “piedade” estão unidas (1:3 e 4) de tal maneira a atender duplamente a estratégia de Pedro.

Primeiramente, aparecendo juntas, elas provêm uma visão antecipada do peso ético posterior de Pedro – “embora estejais certos da verdade já presente convosco e nela confirmados” (1:12). O apóstolo parece perguntar: “que tipo de pessoas vocês devem ser, ao guiar a própria vida em busca de santidade e piedade?” (3:11). Em segundo lugar, as palavras combinadas esperam ter uma consequência positiva, ou seja, que cheguemos a ser participantes da natureza divina (1:4); e outra negativa: que possamos escapar da corrupção que há no mundo (1:4, u.p.).

A fuga da concupiscência não está relacionada com a supressão dos desejos da carne, mediante o cultivo rigoroso das virtudes, como um exercício puramente racional em vez de espiritual. A ética de Pedro tem uma concepção tanto racional como espiritual. Enquanto ele pressupõe a distinção cristã da graça (1:2), a vontade de lutar contra a carne deve ser posta em evidência. Isso é aplicado a cada indivíduo, incluindo aqueles nos quais se destaca a depravação moral. Dotados da justiça de Cristo, da fé, do poder divino e do conhecimento do Salvador, temos um caminho a percorrer, uma escalada ética a fazer. “O apóstolo Pedro coloca diante de nós a escada do progresso que devemos galgar, de maneira que obtenhamos a aprovação de Deus”, diz Ellen White.1

Progressão ética

A lista das virtudes de II Ped. 1:5-7, diferentemente das outras listas do Novo Testamento, revela uma lógica progressão. Cada virtude está fundamentada na virtude precedente. Em consequência disso, nessa relação, a fé pode ser vista como o fundamento da ética cristã e o amor como seu clímax. Como instrumento pedagógico, a escada de virtudes descrita por Pedro tem sua força derivada de uma padronização dos tipos de conduta humana. Os indivíduos podem ver-se a si mesmos no quadro apresentado, quer seja em seus pontos débeis como nos que requerem atenção especial. Esse quadro permite uma avaliação das capacidades reais de um cristão. É isso suficiente? Não. O objetivo de Pedro é também mostrar a fonte de poder para uma vida ética robusta.

É interessante notar que o apóstolo começa a descrição das virtudes éticas com uma forte declaração: “Por isso mesmo, vós, reunindo toda vossa diligência…” (1:5). A diligência humana é a resposta almejada, diante das dádivas divinas. É chegado o momento para que os pensamentos dos versos 3 e 4 sejam transformados numa expressão concreta, de acordo com as atitudes mencionadas nos versos 5 a 7. Os oito passos progressivos para a santidade ética, de acordo com Ellen White,são: fé, virtude, conhecimento, domínio próprio, perseverança, piedade, fraternidade, amor.

A fé aqui mencionada não é, como interpretava o catolicismo primitivo, fé objetiva em um credo dogmático estabelecido contrariamente às heresias do segundo século. Não se trata de uma fé transmitida por meio da tradição, mas uma fé vibrante, ativa. É uma fé que crê em Cristo, não meramente uma fé que concorda com certas doutrinas. Um crente perseguido, sem amigos e influência, está em condições de começar a subir a escada ética cristã, apenas com sua preciosa fé em Jesus. “É mediante a fé que os passos são dados, um por vez, ao subir a escada do progresso. A fé deve ser cultivada.”3

Seria então a falta de fé responsável pelo rompimento da ética? A resposta de Pedro é óbvia, e a experiência de Israel é um exemplo eloquente (Deut. 1:30-32; 9:23). Os israelitas foram desobedientes porque não criam.

A fé não deve ser confundida com presunção. E se isso acontece com um irmão, este deve ser ajudado, não com adulações, mas ensinando-se-lhe a colocar os pés no primeiro degrau da escada ética.

A palavra grega areté. traduzida como virtude, denota qualquer ato que manifesta uma alta estima por uma pessoa.4 De acordo com Pedro, essa atitude ética está ligada ao exercício da fé. Na expressão areté. tal como usada nesse texto, o escritor pode ajudar a formar na mente de seus leitores originais a relação entre o caráter de Deus e o humano.

Segundo o ponto de vista de Pedro, a correlação entre virtude e conhecimento não é de pouca importância. Sua afirmação aponta para uma compreensão prática do significado de justiça. Não indica um conhecimento técnico, segundo muitos imaginam hoje. Mas então do que se trata? A percepção inspirada de Ellen White esclarece:

“Podemos ter um conhecimento de Deus e Sua verdade – um conhecimento que está além de toda compreensão. Que linguagem podemos achar para expressar o conhecimento que nos chega quando Cristo revela Sua presença, e nosso coração é suavizado e subjugado por Seu poder? Tal conhecimento está além de toda expressão. Não podemos explicá-lo, mas podemos possuí-lo.”5 A mesma autora acrescenta: “Como podemos conhecer a Deus? Por meio do cumprimento de Sua palavra. Temos segurança nisto. Lede o primeiro capítulo da segunda carta de Pedro. Todo o capítulo é uma segurança para o verdadeiro crente.”6

Conhecimento não é um alvo em si mesmo. Ao contrário da filosofia especulativa, na qual gnosis sustém a aquisição de todas as virtudes, na escada progressiva de Pedro, o conhecimento é uma extensão e não a única base da virtude e da fé de uma pessoa. Aí o conhecimento está fundamentado em uma graça revelada

(1:2). Isso implica que divorciado da fé e da virtude, o conhecimento pode chegar a ser prejudicial, tal como testemunham os Coríntios.

No contexto em consideração, conhecimento significa uma manifestação prática ou aplicação do que é conhecido como verdadeiro. Deveria progredir até um maior

controle próprio na vida dos leitores. O avanço em conhecimento, em palavras simples, possibilitará um estilo de vida exemplar, virtuoso, sóbrio e temperante.

A conexão orgânica entre conhecimento e domínio próprio não é incidental. Ambos estão naturalmente unidos, assim como suas opostas ignorância e concupiscência. Pedro escreve que esses dois últimos aspectos encontraram uma irrepreensível união: “Como filhos da obediência, não vos amoldeis às paixões que tínheis anteriormente na vossa ignorância” (I Ped. 1:14). Nosso domínio próprio somente é possível porque, em primeiro lugar, o poder divino pode mantê-lo sob controle: e, em segundo lugar, porque Deus é paciente, não desejando que ninguém pereça (II Ped. 3:9).

O próximo degrau da escada ética é a paciência. Essa palavra é a mesma que aparece no conhecido texto 3:9, e que retrata a longanimidade de Deus. Parece que

Ele revela Sua paciência de duas maneiras: controlando Seu poder onipotente e sofrendo muito pela humanidade. Os sofrimentos de Deus foram anunciados desde o início da história humana, especialmente em Gênesis 3:15. Então, qual é o modelo e a extensão da paciência que Cristo espera de Seus seguidores? É evidente que aqui há um custo psicológico a ser pago quando se deseja exercer paciência no poder de Cristo.

A ligação entre domínio próprio, paciência e piedade (eusebia), que é o próximo elo na sequência de Pedro, é transparente e lógica na progressão da ética cristã. Significativamente, todas as aparições de eusebia estão confinadas às epístolas pastorais e a II Pedro 2, onde se destaca um estilo particular de vida ou uma conduta digna de louvor. A alma da religião, depois de tudo, é sua prática.

A virtude da piedade se expressa nas relações mútuas, ante o mundo e os domésticos da fé. Junto com a reverência prestada a Deus, uma pessoa aprende a respeitar outra. Por certo, o evangelho não teria muito significado na vida de um indivíduo se não afetasse positivamente as relações com o próximo.

O amor fraternal (filadelfia) está muito unido à piedade. Na carta de Pedro, filadelfia descreve o afeto que uma pessoa nutre por seus familiares (o que nem sempre é tão óbvio) e pelas outras pessoas em geral. Em II Pedro, somos confrontados com nossa tendência ou orientação habitual. Sem pretender ser excludentes, podemos indagar-nos se estamos orientados para as habilidades ministeriais ou para a integridade ética manifestada para com os outros. Pedro apresenta a vida em relação com nossas palavras, com nossa integridade, não com a soma de habilidades.

A escada ética de Pedro alcança seu ápice com o amor (ágape), o qual distingue o espírito ou ambiente cristão, e sem o qual tudo estaria incompleto. A moralidade cristã é distintivamente a moralidade do amor. É moralidade que frutifica, que dá evidência do trabalho interno da graça. Então essa atitude não é ascetismo, mas um ambiente que está baseado e flui de uma fonte divina. O amor então é o clímax da progressão iniciada na fé recebida pelo crente.

Duas lições

Uma boa doutrina produz uma apropriada conduta ética. Depois de apresentar os dons divinos da justiça de Cristo, da fé, do poder divino e do conhecimento da graça encarnada em Cristo, Pedro nos desafia a acrescentar à nossa fé as oito atitudes éticas já comentadas.

Mas existem duas importantes lições das quais não nos devemos esquecer. A primeira diz respeito à observação de que as virtudes descritas não podem estar mutuamente desconectadas; nenhuma é independente das outras. São de caráter relacionai. A segunda lição, as virtudes éticas muito menos apelam a uma justificação pelas obras. Isso porque abundante graça e recursos divinos foram postos disponíveis ao crente (1:1-4). E mais, a entrada no reino divino será ricamente suprida pelo próprio Cristo (1:11).

Enquanto alguém progride espiritualmente em sua vida, na dimensão da adição, Deus trabalha simultaneamente em seu favor, mediante a multiplicação. A promessa de graça e paz nos pertence, não importando em que degrau da escada nos encontremos neste momento. Consequentemente, fazer comparações entre os santos e nós, não é uma atitude ajudadora. Para um adventista do sétimo dia, o modelo de ética sempre foi e será nosso Senhor Jesus Cristo.

Referências:

1 Ellen G. White. Signs of the Times. 25/05/1891. pág. 3.

2 ________________. Mordomia e Prosperidade, pág. 116.

3 _______________. OHC, 67. The Precious Treasure of Faith

4 W. E. Vine. Expository Dictionary, vol. 4. Revell; New Jersey. 1981, 4:189

5 Ellen G. White. Peter s Counsel to Parent. pág. 25.

6 _______________, General Conference Bulletim. 07/01/1900. pág. 25. “Unity Among Believers”.

JUAN E. MILLANAO O., D. Min., professor no Seminário Adventista Latino-americano de Teologia, Engenheiro Coelho, SP