A conclusão é obvia: não possuir defeito (mum) é ter uma aparência saudável, não se mostrar doentio (zacafim). Mum é, portanto, a ausência de saúde física.

Há um sinônimo de mum (“defeito”), que devemos mencionar. Referimo-nos ao termo mashehat (“corrupção”). Em Lev. 22:25, essa palavra é usada para definir os defeitos mencionados nos versos 22—24 como uma corrupção no animal. A forma verbal do substantivo mashehat é shahat, e significa “corromper-se” (pela deterioração. Jer. 13:7), “perverter-se”, “depravar-se” (Gên. 6:11). Com ele se designa uma corrupção que poderia desfigurar a imagem física de uma coisa (Jer. 48:18), ou a imagem ético-religiosa de um indivíduo (Êxo. 23:7; Oséias 9:9).

Mashehat é usado não somente em Lev. 22:25, para designar animais que não podem ser oferecidos em sacrifício, como também em Mal. 1:14. Nessa última passagem Yahweh acusa o povo de oferecer-Lhe em sacrifício animal vil (mashehat). Esses animais vis são aqueles que têm defeitos físicos e de saúde. Em Mal. 1:13, diz-se que esses animais eram “coxos” (pisseha) e estavam “enfermos” (holeh). O substantivo holeh e os outros derivados de raiz halah, referem-se, em termos gerais, a um estado de debilidade corporal, e significam “estar/ tornar-se débil”. Em alguns casos, usa-se para designar não somente enfermidades individuais, mas epidemias.36 Ao se aplicar aos animais, halah refere-se a animais em estado de debilidade ou enfermidade, que não podem ser sacrificados a Yahweh.37 À semelhança de mum (“defeito”), mashehat (“corrupção”) designa os animais vis como aqueles que têm problemas de saúde. Yahweh não aceita animais enfermos sobre Seu altar, mesmo que esses animais pertençam ao grupo dos limpos.

Tudo o que foi dito antes revela, a nosso ver, a razão pela qual Yahweh separou os animais puros dos imundos. Os animais imundos foram separados e recusados por Deus como possíveis sacrifícios sobre Seu altar, porque são, quanto ao aspecto da saúde e higiene, permanentemente defeituosos. Os animais que vão para o altar do Senhor e que vão ser, por assim dizer, o “pão de Deus” (lehem ‘elohim, Lev. 21:6, 8: 22:25), devem estar em perfeito estado. Devem ser expressão da excelência higiênica. Deus aceita tão-somente o melhor. Quando o povo Lhe oferece o defeituoso, Deus o censura, dizendo: “Quando ofereceis o coxo ou o enfermo, não faz mal! Ora apresenta-o ao teu príncipe; terá ele agrado de ti? ou aceitará ele a tua pessoa?” (Mal. 1:8). Yahweh é o Deus e Senhor de Israel e Ele exige o melhor sobre Seu altar.

Até agora mostramos que a distinção entre os animais limpos e os imundos origina-se na identificação, da parte de Deus, dos animais que Ele está disposto a aceitar como sacrifício sobre Seu altar. Vimos também que provavelmente o critério usado ao estabelecer a distinção entre o imundo e limpo foi o estado físico do animal. Os animais nos quais a vida não se exibia em sua plenitude, foram considerados como impuros. Estabelecer uma ligação entre estas verificações e a lei dos alimentos puros e imundos de Lev. 11 não é difícil.

Em Lev. 11, Deus está dizendo ao povo que pode levar à mesa apenas a carne dos animais que se leva à mesa, ao altar do Senhor, isto é, a carne de animais limpos. É bom lembrar que houve tempo, na história de Israel, em que todo animal que se matava com o propósito de usar-lhe a carne como alimento, tinha que ser oferecido primeiro como sacrifício sobre o altar do Senhor (Lev. 17:3-6). Em seguida, o adorador levava a carne e a comia. Isto indica que aquilo que era bom o suficiente para ser oferecido em sacrifício ao Deus de Israel, era também suficientemente bom para transformar-se em alimento para o povo de Deus. O perfeito estado de saúde do animal assegurava o bem-estar físico do povo. Se comessem do animal imundo, o estado de impureza deste — a ausência de saúde — era comunicado ao povo. Eles seriam fisicamente afetados (enfermidade); e espiritualmente; ao desobedecerem, interromperíam sua união com o Santo de Israel. No conceito do Antigo Testamento existe uma íntima relação entre o bem-estar físico e o espiritual. Aqui em Levítico encontramos essa relação claramente expressa na lei dos alimentos limpos e imundos.

O que estamos argumentando é que a lei sobre os animais limpos e imundos se transformou, em Lev. 11, numa lei de saúde. No próprio capítulo há vários elementos que indicam isto.

Em primeiro lugar, o capítulo 11 de Levítico tem como finalidade instruir os israelitas com respeito aos animais que devem comer (11:2). Este realce aponta para um interesse no bem-estar físico do povo. O ato de comer está intimamente relacionado na Bíblia com a preservação da vida (e.g. Êxo. 16:3 e 4). José proveu de alimento a sua família a partir do Egito, durante uma grande fome. Ele mesmo interpretou essa ação como tendo o propósito de preservar a vida deles (Gên. 45:4-11). Daniel, como já dissemos, preferiu usar um alimento que, aos olhos do oficial babilônico parecia ser de qualidade inferior, mas que era de superior qualidade, pois o fez parecer mais saudável do que os demais jovens. Deus sempre esteve interessado naquilo que o homem come. Ele especificou a Adão e Eva o que deviam comer (Gên. 1:29), e quando autorizou Seu povo a usar alimento animal, especificou também qual devia ser usado. Assim preserva o bem-estar físico de Seu povo.

Em segundo lugar, Lev. 11 mostra que o israelita podia contaminar-se tocando no cadáver de um animal. Não importava se o animal era limpo (11:39) ou imundo (11:8 e 24), seu cadáver era uma fonte de contaminação, de morte e de enfermidade. Por essa razão, proíbe-se tocar o cadáver de qualquer espécie de animal. Esta é uma medida purificadora que tinha como propósito evitar infecções ou epidemias.

Em terceiro lugar, Lev. 11 revela um interesse pela higiene e a saúde ao realçar a questão da limpeza. Aquele que se alimentava dos animais imundos era considerado imundo até o pôr-do-sol (11:24-28,31). Isso significa que era separado da comunidade e do santuário por um período de tempo limitado. Em alguns casos, exigia-se que o indivíduo lavasse também os seus vestidos (11:25-40). Todas estas medidas são de caráter higiênico.

Em quarto lugar, devia-se purificar também aquilo sobre que caísse o cadáver de um animal. Entre outros casos, ordenava-se que, se o cadáver caísse sobre utensílios de madeira, roupa, pele, saco ou sobre um instrumento de trabalho, estes deviam ser lavados e, ao terceiro dia, estariam limpos (11:32). Por outro lado, se o cadáver caísse dentro de um utensílio de barro, este devia ser destruído (11:33). Se dentro desse utensílio houvesse água, e esta caísse sobre algum alimento ou alguma outra bebida, contaminava-os e não podiam ser comidos ou bebidos (11:34). Quando parte do cadáver caía sobre um forno ou estufa, estes deviam ser derribados (11:35). “Não há dúvida alguma de que os fatores higiênicos são a única coisa considerada aqui, pois uma variedade de graves enfermidades poderia espalhar-se, por meio de vasilhas ou alimentos infectados ou contaminados.”38

A lei dos animais limpos e imundos é, pois, uma lei de saúde, que tem como objetivo preservar a saúde do povo através de medidas preventivas de higiene. Deus informa Seu povo sobre aquilo que, por ser o melhor, devem comer para proteger o seu organismo. Comer não é, portanto, uma atividade secular na vida do ser humano. Não foge à ordem divina. Há um aspecto ético-religioso nas leis de saúde de Lev. 11. Se Deus definiu o que se deve ou não comer, quando se come, obedece-se ou se desobedece às Suas ordens. Se obedecemos, preservamos a santificação. Mesmo o comer, pois, torna-se uma atividade religiosa.

A preocupação com a saúde, expressa na lei sobre os animais limpos e imundos pode também ser observada analisando o significado do imundo no Antigo Testamento. O impuro, no Antigo Testamento, é aquilo que está associado de alguma forma com a morte.39 O imundo não tem acesso a Deus, que é a fonte de vida e bênção. A pessoa que entra em contato com o imundo, penetrou na esfera da morte; e deve ser separada da comunidade que presta culto e do santuário. Os animais imundos são aqueles que pertencem à esfera da morte e que comunicam morte. Mais uma vez, pode-se notar que as leis de saúde têm como propósito preservar o bem-estar físico e espiritual do povo.

Devemos mencionar, contudo, que os animais puros são relativamente puros. Quando morrem, a impureza se apossa inteiramente deles (Lev. 11:39 e 40), e sua carne não pode ser comida nem tocada. Dessa forma, “os animais limpos são comparativamente confiáveis, como fonte de alimento, enquanto os imundos devem ser evitados devido à possibilidade de sua carne poder transmitir infecções.”40

Essa lei sobre alimentos não contaminados é, quanto se saiba, única no antigo Oriente Próximo. A submissão a essa lei, contribuiria significativamente para distinguir os hebreus das demais nações que os rodeavam. Dessa maneira, proclamariam sua singularidade e a do seu Deus (Lev. 20:25 e 26).

Conclusão

A lei dos alimentos limpos e imundos é uma lei de saúde. Originalmente a diferença entre animais limpos e imundos foi estabelecida por Deus para especificar os animais, dentre os quadrúpedes e das aves, que Ele aceitaria como sacrifício sobre Seu altar. Aparentemente, o critério que Ele usou para separar os animais foi o do estado de saúde destes. Os animais cujo corpo fosse sadio, poderiam ser oferecidos a Deus em sacrifício.

Quando Deus autoriza Seu povo a comer carne, ordena-lhe que O imitem. Eles deverão aceitar como alimento os animais que Yahweh aceita como sacrifício. A lei torna-se agora numa lei de saúde, que tem como finalidade preservar a saúde física e espiritual do povo. Essa lei indica que Yahweh Se interessa pela saúde física de Seu povo. O físico é algo que Deus deseja que seja preservado em bom estado. Essa lei de saúde fala do cuidado preventivo da saúde e do interesse divino por esse cuidado. O conceito jolístico do homem no pensamento bíblico exige que a saúde, para ser completa, una ao bem-estar espiritual o bem-estar físico e mental. É para esse tipo de saúde que as leis sobre alimentos limpos apontam e a tornam relevante para o homem moderno.41

ANGEL MANUEL RODRIGUES, doutor em Teologia

Referências:

1. G. J. Wenham, The Book of Leviticus (Grand Rapids, MI: W. B. Eerdmans Publishing Co., 1979, pág. 164.

2. Ver F. S. Bondenheimer, “Fauna”, Interpreter’s Dictionary of the Bible, vol. II (IDB) (Nova Iorque: Abingdon Press, 1962), pág. 254.

3. Sobre o problema da fauna no Antigo Testamento, ver Bondenheimer, págs, 246 a 256.

4. Uma porção dessa carta está publicada em C.K. Barrett, The NT Background: Selected Documents (Nova Iorque: Harper and Row, 1956), págs. 213 a 216. Para análise sobre o conteúdo dessa carta, ver G. Zuntz, “Aristéias”, IDB 4:219 a 221.

5. Ver sobre isto Henry Rabinowicz. “Dietary Laws”, Enciclopédia Judaica, vol. 6 (Nova Iorque): MacMillan Co., 1971, col. 42 (EJ).

6. Para mais informação histórica sobre essa teoria, ver S. Stein, The Dietary Laws in Rabbinic and Patristic Literature.

7. Jacob Milgrom, “The Biblical Diet Laws es an Ethical System”, Interpretation 17 (1963): 288 a 301.

8. Entre outros que favorecem a interpretação ética estão Joseph A. Seiss, Gospel in Leviticus (Grand Rapids. MI: Kregel Publications, 1860), págs. 195 a 198 e 201; Harold S. Stern, “The Ethics of the Clean and the Unclean, Judaism 6 (1957): 319-327.

9. A. A. Bonar, A Commentary on Leviticus (London: Banner of Truth. 1846), págs. 214 e 215.

10. Gordon J. Wenham, “The Theology of Unclean Food”, Evangelical Quarterly 53 (1981): 9, critica essa teoria, mostrando que o simbolismo que se descobre depende princípalmente do poder imaginativo do comentarista.

11. Ver seu livro, Purity and Danger: An Analysis of Concepts of Pollution and Tabbo (London: Routledge and Kegan Paul, 1966) págs. 41 a 57; e seu artigo “Deciphering a Meal”, Daedalus 101 (1972): 61 a 81.

12. Entre os que têm aceito essa interpretação, encontram-se Wenham. “Theology”, págs. 9 a 11 J. R. Porter, Leviticus (London: Cambridge University Press, 1976), págs. 83 e 84.

13. Purity, pág. 53.

14. Ver J. Henninger, “Puretéet Impureté: IV. L’impureté des aliments”, Supplément ao dictionnaire de la Bible (DBS) vol. 9, eds. H. Cazelles e A. Feuillet (Paris: Letouzey & Ané, 1975), Col. 481.

15. Sobre o uso metafórico do conceito da impureza, ver Jacob Neusner, The Idea of Purity in Ancient Judaism (Leiden: E. J. Brill, 1973), págs. 11 a 15.

16. Ver G. R. Driver, “Birds in the OT”, Palestine Exploration Quarterly 87(1955): 7. Para uma análise minuciosa dessa teoria, ver Wenham, “Theology”, págs. 7 e 8.

17. Wenham “Theology”, pág. 8.

18. Matin Noth, Leviticus: E Commentary (Philadelphia: Westminster Press, 1965), pág. 92; Roland J. Faley, “Levítico”, Comentário Bíblico San Jerónimo; vol. 1 (Madrid: Ediciones Cristiandad, 1971), pág. 226.

19. Walter Kornfeld, “Die unreinen Tiere im Alten Testament”, Karios 7 (1965): 134 a 147.

20. Ibid, pág. 146. Ver D. Hoffmann, Das Buch Leviticus (Berlin: Poppelauer, 1905), págs. 315 a 322.

21. Ver Othmar Keel, The Symbolism of the Biblical World (New York: Seabury Press, 1978), págs. 85 a 86. Não devemos deixar de mencionar a serpente. No Egito é um símbolo tanto do deus salvador como das forças do mal (ibid, pág. 87; O. Winternmutte, “Serpent”, IDB Supplementary Volume, págs. 816 e 817.

22. Bernard J. Bamberger, Leviticus: The Torah (New York: Jewish Publication Society, 1979), pág. 91.

23. W. F. Albright, Yahweh and the Gods of Canaan (New York: Doubleday & Company, 1968), págs. 178 a 180; R. E. Clements, “Leviticus”, Broadman Bible Commentary, vol. 2 (London: Marshall), Morgan and Escott, 1971), pág. 34; G. A. F. Knight, Leviticus (Philadelphia: Westminster Press, 1981), pág 65; R. K. Harrison, Leviticus: An Introduction and Commentary (Downers Grove, ILL: Inter-Varsity Press, 1980), pág. 124; G. Cansdale, Animais of Bible Lands (Exeter: Paternoster, 1970), pág. 14.

24. Leviticus, págs. 167 e 168.

25. Este argumento é usado também por F. J. Simmons, Eat not this Flesh (Madison: University of Wisconsin, 1961), págs. 37 a 42.

26. Esta pergunta foi também feita por Noordtzij, Leviticus (Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing House, 1982), pág. 121.

27. Sobre essa problemática, ver Colin House, “Defilement by Association: Some Insights from the Usage of Koinos/Koinoo in Acts 10 and 11”, AUSS 21 (1983): 143 a 153.

28. Henninger, “Pureté”, col. 485; Bamberg, Leviticus, pág. 91; N. H. Snaith, Leviticus and Numbers (Greenwood, S. C: Attic Press, 1969), pág. 62; Noordtzij, Leviticus, págs. 120 a 122.

29. W. Eichrodt, Theology of the OT (Philadelphia: Westminster Press, 1961), 1:273.

30. G. J. Botterweck, “Behemah”, Theological Dictionary of the OT, vol. 2 (Grand Rapids, MI: W. B. Eerdmans Publishing Co., 1975), págs. 7 a 10 (TDOT).

31. Ver Suessman Munter, “Medicine in Ancient Israel”, in Fred Rosner, Medicine in the Bible and the Talmud (New York: KTAV Publishing House, 1977), pág. 7.

32. Ibid.

33. Ibid.

34. Ibid, pág. 10.

35. Ver H. Ringgren, “Zacaph” TDOT 4:111.

36. K. Seybold, “Chalah”, TDOT 4:405; F. Stolz, “Hlh, estar enfermo”, Diccionario Teológico Manual del AT, eds. E. Jenni y C. Westermann (Madrid: Ediciones Cristiandad, 1978), 1.790.

37. Seybold. pág. 403.

38. Harrison, Leviticus, pág. 131.

39. A. M. Rodríguez, Substitution in the Hebrews Cultus (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1979), pág. 149.

40. Harrison, Leviticus, pág. 124.

41. Sobre o conceito de saúde no AT, consulte-se R. K. Harrison, “Healing, Health”, IDB 2:541 a 548; G. F. Hasel, “Health and Healing in the OT” AUSS 21 (1983): 191 a 202. Deve-se frisar quando Deus autorizou Seu povo a comer carne, não o limitou aos animais quadrúpedes e às aves. Permitiu-lhe comer peixe e mesmo insetos, estendendo assim o conceito do puro além daquilo que se podia levar ao Seu altar. Esses animais eram saudáveis e Deus autorizou Seu povo a usá-los como alimento. O critério continuava sendo o mesmo.