(Continuação de “Rico e Lázaro”)

  • 2. NARRATIVA —P A R Á B O L A LITERAL, OU ALEGORIA? — A parábola era um método comumente empregado por Cristo para ensinar a verdade. E as leis, ou princípios que regiam as parábolas, nos dias de Cristo, eram suficiente salvaguarda contra a má compreensão. Esta parábola do rico e Lázaro, única no gênero no Novo Testamento, tem no Antigo Testamento um paralelo aproximado, nas imagens parabólicas de Isa. 14:9-11, que representam reis mortos, ressurgindo da sepultura e assentando-se em tronos no sheol (equivalente ao grego hades), a conversar animadamente sobre o poderoso conquistador babilônio que os entregara à morte, e que agora fora vencido pela morte e surge para subir ao trono entre eles, nas regiões inferiores.

O inferno [a sepultura] desde o profundo se turbou por ti, para te sair ao encontro na tua vinda; despertou por ti os mortos, e todos os príncipes da terra, e fez levantar dos seus tronos a todos os reis das nações. Estes todos responderão, e te dirão: Tu também adoeceste como nós, e foste semelhante a nós. Já foi derribada no inferno a tua soberba, com o som dos teus alaúdes; os bichinhos debaixo de ti se estenderão, e os bichos te cobrirão.

A estória parabólica de Jotão, sobre as árvores, a videira e o espinheiro, a empenhar-se numa discussão política, é outro paralelo no Testamento Antigo. O episódio não ocorreu na realidade. Isto, porém, de modo algum atenua a verdade expressa na forma de parábola.

Esta parábola descreve objetos inanimados personificados, mesmo dotados de vida e do dom da fala. Em Juizes 9:8-15 lemos: “Foram uma vez as árvores a ungir para si um rei; e disseram…” Não há quem não reconheça isto como linguagem notadamente figurada. As parábolas assemelham-se às vezes a fábulas, ou narrativas fictícias. Em nosso conceito da morte, homens falecidos a entreter conversa são o mesmo que árvores em diálogo político. Numa parábola, pois, muitas vezes se entretece substanciosa verdade, na estrutura da ficção circunstancial.

Nesta parábola de S. Luc. 16, hades é figuradamente apresentado como um lugar de vida, de memória e dom da fala. E os mortos, no hades, são representados como vivos, fazendo advertências aos vivos. É uma estória curiosa, mas é claro que é de sentido figurado. Aí os mortos falam e agem, o que numa parábola é permissível, pois nela todas as incongruências de tempo, lugar, distância, etc., desaparecem. Nesta alegoria, todas as referências ao abismo, à chama e aos mortos a falar, são compreensíveis, pois a narrativa é contada para transmitir uma verdade moral. Este é o ponto focal e o propósito da narrativa, embora os mortos não sejam seres conscientemente vivos, nem lhes sejam dadas as recompensas nem aplicado o castigo.

  • 3. NÃO PODE SER LITERAL E FIGURADA AO MESMO TEMPO. – Admitem todos que a estória tem de ser fato literal, real acontecimento, ou é simples parábola. Não pode ser ambas as coisas. Se literal, tem de ser verdadeira e coerente em todos os pormenores. Se, porém, é parábola, então só poderemos nela buscar a verdade moral que quer transmitir. E a estória seria então sujeita às reconhecidas leis e limitações de uma parábola. Assim, tudo é compreensível. Como vemos, é nitidamente incoerente a aplicação literal, e baqueia ao peso de seu próprio absurdo. Cristo não está aqui revelando pormenores da vida além-túmulo. Antes, emprega uma impressionante estória daqueles tempos para advertir e reprovar os que recusavam aceitar Seus ensinos quanto ao reto uso das riquezas.

Os defensores do literalismo supõem que o rico e Lázaro estejam em estado desincorporado, isto é, destituídos de corpo. E no entanto o rico é representado como tendo “olhos” que vêem, “língua” que fala, e procurando um refrigerante alívio do “dedo” de Lázaro — tudo verdadeiras partes do corpo. São assim apresentados como recebendo sua recompensa corporeamente, malgrado o fato de que o corpo do rico estivesse devidamente sepultado. Os que afirmam que, por esta parábola, Cristo apoiava o que cremos ser um conceito pagão da morte, têm também de sustentar que Ele tivesse justificado os esquemas pouco honestos do mordomo infiel. Isto, porém, ninguém tentaria fazer.

Quanto ao “seio de Abraão” e suas implicações, o Dr. Charles L. Ives, antigo professor de medicina em Yale (The Bible Doctrine of the Soul, 1877 pp. 54 e 55), acertadamente observa:

Não é coerente dizer, Como se tem feito, que o seio de Abraão é expressão figurada que representa a mais alta felicidade celestial; pois o próprio Abraão em pessoa aparece em cena. E se ele próprio está presente em sentido literal, não é lá muito correto servir-se de seu seio, ao mesmo tempo, em sentido figurado! Se o seu seio se deve tomar em sentido figurado, então o próprio Abraão, bem como a narrativa toda, tem sentido figurado.

Todas as tentativas de harmonizar o literal e o figurado são igualmente vãos. Cremos, com Bloomfield (Greek Testament): “Os melhores comentadores, tanto antigos como modernos, com razão consideram-no uma parábola. — Sobre S. Lucas 16:19. Constable chama-lhe o “conceito geral da cristandade”. O fraseado introdutório e toda a forma e construção correspondem exatamente a outras parábolas de Cristo, tais como as do mordomo infiel e do filho pródigo (S. Luc. 15:11; 16:1), que precedem e seguem imediatamente a parábola do rico e Lázaro. Para sustentar o contrário seria preciso apresentar provas.

  • 4. UMA PARÁBOLA NÃO É BASE PARA UMA DOUTRINA. — A absurdidade da alegação popular torna-se tanto mais aparente quanto mais se observam as implicações. Dar a esta alegoria sentido literal, em vez de alegórico, colocaria, como já foi observado, Céu e inferno à distância de diálogo e de visibilidade mútua, o que é incoerente. Santos e pecadores mantendo conversa eternamente! É inevitável a questão resultante: Hão de todos os que morrem em Cristo, ver e conversar, através do abismo que os separa, no decorrer de toda a eternidade, com os seus queridos, que morreram separados de Cristo?

Se se considera a narrativa como simples parábola, mas empregada para sustentar o conceito do tormento consciente dos ímpios, defrontamo-nos então com o princípio universalmente aceito de que não se pode basear uma doutrina apenas sobre uma parábola ou alegoria, especialmente se isso contradiz o claro ensinamento da Escritura. Tentar isso fazer envolvería a pessoa que o fizessem em absurdo e contradição. Repetimos que esse discurso parabólico do Senhor não se destinava a ensinar quais as condições do outro lado da morte, ou do mundo invisível, no estado intermediário, mas sim a transmitir grandes lições morais. Edersheim (Life and Times of Jesus the Messiah) com razão diz que não se pode derivar desta parábola uma doutrina acerca do outro mundo, ou do caráter e duração da punição futura, ou do progresso (moral dos que se encontram na geena.* Usá-la como prova de que os homens recebem sua recompensa por ocasião da morte é contradizer flagrantemente ao próprio Cristo, que afirma explicitamente que justos e ímpios recebem sua recompensa “quando o Filho do homem vier em Sua glória” (ver S. Mat. 25:31-41).

Se os mortos realmente entretêm conversa entre si, então a parábola contradiz as mais claras afirmativas da Escritura: “Sai-lhes o espírito, e eles tornam-se em sua terra; naquele mesmo dia perecem os seus pensamentos” (Sal. 146:4); “os mortos não louvam ao Senhor, nem os que descem ao silêncio” (Sal. 115:17).

* E o Dr. William Smith (Dictionary of the Bible, vol. 2, p. 1038), insiste: “É impossível basear a prova de uma importante doutrina teológica sobre uma passagem que é confessadamente abundante em metáforas judaicas”.

O próprio Abraão morrera e seus filhos foram com ele enterrados (Gên. 25:8 e 9). Nem há registo algum de sua ressurreição. Segundo o registo bíblico (Heb. 11) ele, semelhantemente aos outros patriarcas, aguarda aquela ressurreição “melhor”, por ocasião da segunda vinda de Cristo.

Assim, a alegação de que a recompensa é recebida por ocasião da morte: 1) Anula o julgamento, antecipando seu tempo predito; 2) contradiz completamente o que cremos ser claro testemunho da Escritura, de que os mortos dormem; 3) representa espíritos desencorporados possuindo membros do corpo; e 4) põe os espíritos plenamente visíveis um ao outro.

  • 5. IRRESTRITO LITERALISMO EM CONFLITO COM A VERDADE BIBLICA. -Se é literal a narrativa, então o mendigo recebe sua recompensa, e o rico sua punição, imediatamente após a morte e antes do dia do juízo. Mas isto, também, está em direto conflito com a declaração de Paulo, de que Deus “tem determinado um dia em que com justiça há de julgar o mundo” (Atos 17:31). Esse dia, compreendemos, será aquele em que “o Filho do homem vier em Sua glória, (…) e todas as nações serão reunidas diante dEle, e apartará uns dos outros” (S. Mat. 25:31 e 32). A interpretação literal conflita também com a promessa de Cristo: “Eis que cedo venho, o Meu galardão está comigo, para dar a cada um segundo a sua obra” (Apoc. 22:12); e com a promessa do galardão, em S. Luc. 14: 14: “Recompensado te será na ressurreição dos justos”. Compare-se também a declaração de Paulo: “A coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, (…) me dará naque-le dia” (II Tim. 4:8) —o dia do Seu aparecimento.

Esta declaração está em harmonia com Mal. 4:1-3, que diz que “aquele dia vem” — acontecimento futuro — em que os ímpios hão de sofrer o tormento do fogo consumidor. Parece-nos claro que o Antigo Testamento, ou “Moisés e todos os profetas”, se unem harmonizados no mesmo testemunho de que os mortos, tanto os justos como os injustos, jazem silenciosos e inconscientes na morte, até ao dia da ressurreição. (Ver Jó 14:12-15, 20 e 21; 17:13; 19:25 e 27; Sal. 115:17).

Jesus referiu-Se freqüentemente ao destino dos ímpios. Mencionou o “inferno” (S. Mat. 10:28), mencionou o “fogo do inferno” (S. Mat. 5:22), chamou atenção para a “condenação do inferno” (S. Mat. 23:33), mencionou a “ressurreição da condenação” (S. João 5:29) e o “eterno juízo” (S. Mar. 3:29). O Salvador referiu-Se também ao lar eterno dos justos. Chamou-lhe “paraíso” (S. Luc. 23:43), e “reino de Meu Pai” (S. Mat. 26:29). Ordenou aos Seus seguidores que acumulassem tesouro no Céu (S. Mat. 6:20), e declarou que, quando vier pela segunda vez, levará Seus filhos para a “casa de Meu Pai” (S. João 14:2).

  • 6. NÃO IMPLICA O ESTADO CONSCIENTE DOS MORTOS. — Segundo a parábola, o rico ergue os olhos, “estando em tormentos” “nesta chama”. Mas, segundo as Escrituras, esse tormento não precede o segundo advento (II Tess. 1:7 e 8). Geena é o termo grego usado em geral ao descrever os fogos da destruição. Mas nesta narrativa do rico, a palavra, “inferno” é traduzida de hades, e a sepultura não encerra semelhante fogo. Para todos os judeus, todos os mortos estavam no hades, a sepultura, morada dos mortos.

Assim, ao nosso ver, a estória do rico e Lázaro de modo algum prova o estado consciente dos mortos, e o tormento presente e eterno dos ímpios. Tal conclusão é, cremos nós, inteiramente sem justificativa, e contradiz o claro e singelo ensino da Palavra. A morte é apresentada na Escritura como um estado de silêncio, trevas e inconsciência (Sal. 6:5; 115:17; Isa. 38:18).

Nem Lázaro, nem o rico já receberam sua recompensa. Estão silenciosos, na morte, aguardando a voz que chamará “todos os que estão nos sepulcros” (S. João 5:28). São reservados para o dia do juízo (II S. Ped. 2:4 e 9; comparar com Jó 21:30).

Nesta alegoria, os mortos, inconscientes, são ficticiamente representados como mantendo conversa, mas sem que isto implique o real estado de consciência dos mortos — exatamente como, no Antigo Testamento, na parábola das árvores, estas são parabolicamente apresentadas como entretendo conversa, e ungindo sobre elas um rei. Ninguém, entretanto, afirmaria ser isto uma prova de que árvores falem e tenham rei (Juí. 9:8-15; comparar com II Reis 14:9).

O grande abismo (no grego chasma, fenda profunda, brecha), bastante estreito para permitir conversa através dele, mas profundo bastante para impedir a travessia — torna-se incompreensível na hipótese de seres imateriais. Indica, antes, a irrevogável divisão que a morte determina entre os bons e os maus, no fim de seu tempo de graça terrestre. Cada qual terá que permanecer na classe em que a morte o encontre, até ao grande julgamento. Hoje pode-se passar do estado de condenado (S. João 3:18) para o de perdoado. Mas quando vier a morte, será para sempre demasiado tarde. O abismo “está posto”.

  • 7. ÓBVIO PROPÓSITO DA PARÁBOLA.

— A parábola usa-se para o fim de influenciar os vivos, e adapta-se à ocasião. Mas a ocasião determinada por Deus, de graça para o homem, é antes da morte e ressurreição. A retribuição vem depois da ressurreição. A vida após a morte é sempre subseqüente à ressurreição. Demais, quando o rico rogou a Abraão que Lázaro fosse mandado advertir seus parentes acerca dos terrores do inferno, a fim de que não fossem ter ao mesmo lugar de tormento, a resposta é explícita: “Têm Moisés e os profe-tas; ouçam-nos” (S. Luc. 16:29). E se não os ouvirem, diz Cristo claramente, não se convenceriam, “ainda que algum dos mortos ressuscite” (v. 31).

  • 8. TEMOS, POIS, DE CONCLUIR:
  • a. Que o diálogo, em sua personificação parabólica, foi inteiramente imaginário. E cremos, não meramente que não tenha acontecido, mas que nunca poderia acontecer entre os salvos e os perdidos.
  • b. Que a ocasião também é fictícia. Não só é inventado o diálogo, mas também a ocasião é antecipada. (Os homens não serão recompensados, ou receberão o castigo, antes da ressurrei-ção, mas aqui são representados alegoricamente como estando antes da ressurreição).
  • c. Que é o único lugar, na Escritura, em que o hades é representado como lugar de tormento. Este é geralmente reservado para a geena. Mas Cristo, por causa da finalidade da parábola, e servindo-Se de conceitos correntes, antecipa o acontecimento, descrevendo o rico e Lázaro como vivendo no hades antes da ressurreição, justamente como Isaías faz ressurgir os seus reis mortos no hades, para pronunciar uma censura a Babilônia.

De acordo com os ensinos de Jesus em outras parábolas, a recompensa será por ocasião da ressurreição dos justos — o “tempo da ceifa’’ e do “fim do mundo”, quando o povo de Deus é reunido em Seu celeiro e os ímpios, como joio, são amarrados em feixes para serem queimados (S. Mat. 13:30 e 49; S. Luc. 14:14).

Tais entendemos serem o intento e as limitações desta parábola.

  • III. CONCEITO ATUAL DOS JUDEUS, QUANTO AO “SEIO DE ABRAÃO”

É evidente, dos escritos judaicos, que os fariseus e vários outros, nos dias de Cristo, criam no estado consciente do homem após a morte. Seu conceito de hades modificou-se muito, depois dos dias dos patriarcas e do final do cânon do Antigo Testamento. E nos tempos de Jesus criam de modo muito semelhante aos gregos e outros povos circundantes.

A parábola em tela faz referência ao “seio de Abraão (S. Luc. 16:22) — expressão encontrada em nenhum outro lugar da Escritura. No que concerne a Bíblia, não existe coisa nenhuma que indique onde seja esse “seio de Abraão”, ou o que signifique ele.

Vemos, entretanto, que a expressão aparece na literatura extra-bíblica, e que era evidentemente um conceito corrente, ou tradição, do povo judeu. Josefo, em “Discurso Acerca do Hades”, afirma que eles chamam “seio de Abraão” ao lugar de felicidade para o qual vão os justos ao morrer. O Talmude a ele se refere como “regaço de Abraão” (Kiddushin 72b). Era evidentemente a crença comum de muitos, nos dias de Jesus.

Com efeito, a descrição do hades, dada por Josefo, assemelha-se muito à narrativa do rico e Lázaro. (A declaração acha-se citada integralmente adiante). Ali lemos do grande abismo posto, da câmara dos justos ao alcance da vista e do ouvido, onde são atormentados os ímpios, e de outros pormenores aos quais se refere a estória tal como Jesus a narrou. Esses conceitos aparecem não só nos escritos de Josefo, mas também em outros escritos da literatura judaica. Assim é que se lê acerca do hades: (1) que o hades se compunha de duas câmaras (II Esdras 4:41); (2) que uma dessas câmaras se destinava aos justos, e a outra aos ímpios (Midrash, sobre Rute 1:1); (3) que os justos habitam numa câmara (Wisdom of Solomon 3:1); os ímpios na outra, onde são amaldiçoados, flagelados e atormentados (Enoque 22:9-13); Talmude Erubin 19a); que os habitantes de uma das câmaras são visíveis aos habitantes da outra câmara, podendo falar uns com os outros (Midrash, sobre Ecl. 7:14); que os justos são acolhidos no hades por grupos de anjos (Talmude Kethuboth 104a; IV Esdras 7:85-87, 91-95); (6) que os justos são acolhidos no hades por Abraão, Isaque e Jacó (IV Macabeus 13:17) e (7) que os justos, como parte de sua recompensa, assentam-se no “seio de Abraão” (Talmude Kiddushin 72b). E Josefo dá o testemunho seguinte:

Crêem eles também que as almas têm um vigor imortal, e que debaixo da terra haverá a recompensa ou o castigo, dependendo de haverem vivido virtuosamente ou viciadamente nesta vida; e os últimos serão detidos em prisão eterna, mas que os primeiros terão poder para reviver e prosseguir vivos. — Antiguidades XVIII, 1. 3.

Tal era a moldura dos conceitos correntes, ou tradições, acerca do hades como habitação dos mortos, nos tempos aos quais Se referiu Jesus na parábola.

  • IV. ÓBVIAS LIÇÕES DA PARÁBOLA

Importantes lições são ensinadas nesta parábola: (1) que as bênçãos terrenas, na melhor das hipóteses, são incertas e transitórias; (2) que os ricos são responsáveis, não só quanto ao que fazem mas também quanto ao que não fazem com sua fortuna; (3) que a vida presente é a única oportunidade que nos é concedida para fazer o preparo para o futuro; (4) que a egoísta desumanidade e o abuso das riquezas, desqualificam a pessoa para a posse de um lugar no eterno reino de Deus; (5) que os claros ensinamentos das Escrituras são suficientes para nos tornar sábios para a salvação.

O rico não foi separado de Abraão por motivo de suas riquezas, pois o próprio Abraão era homem abastado, mas sim porque ele menosprezara os ensinos fundamentais da lei e dos profetas, que são amor a Deus e amor aos homens. Jesus disse que destes dois dependem toda a lei e os profetas (S. Mat. 22:40).

Por esta série de parábolas Jesus desmascarou a filosofia dos fariseus e revelou o completo desvalor de alguns de seus ensinos. Estavam condenados diante do trono do juízo do Eterno. Nas próprias Escrituras que eles professavam ensinar — Moisés e os profetas — era apresentado testemunho contra as coisas que praticavam. “Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos Céus”, declarou Jesus (S. Mat. 5:20). Seu reino é um reino de comunhão de uns com os outros, onde sobejam amor e alegria. Quando ingressamos naquele reino, tornamo-nos filhos de Deus e membros uns dos outros. É uma relação de família, onde todos são iguais e o amor é o laço que os une. Esses princípios básicos do reino, os fariseus deixaram de compreender.

A parábola também inculca a verdade de que, conquanto a vida eterna ou a eterna morte seja uma alternativa apresentada a cada um de nós, todavia nesta vida revelamos nossa qualificação para essa vida por vir. O rico não foi condenado por causa de suas riquezas, mas por causa de seu egoísmo; nem foi o mendigo salvo por motivo de sua pobreza, nem mesmo por seus sofrimentos terrestres. Nosso Senhor não pretendia condenar a abastança, mas sim o seu abuso; tampouco exaltava a pobreza como virtude. Confundia os fariseus usando os próprios ensinamentos deles, impedindo-os assim de, por assim dizer, lançar areia nos olhos da multidão.

Esta parábola, estruturada como se acha na forma de um argumentum ad hominem, baseia-se, como dissemos, nos próprios conceitos farisaicos do estado do homem na morte. Sobre o assunto observa Ellen G. White:

Nesta parábola Cristo Se acercava do povo no seu próprio terreno. A doutrina de um estado consciente de existência entre a morte e a ressurreição era mantida por muitos dos que ouviam as palavras de Cristo. O Salvador lhes conhecia as idéias e compôs Sua parábola de modo a inculcar verdades importantes em lugar dessas opiniões preconcebidas. Apresentou aos ouvintes um espelho em que se pudessem ver em sua verdadeira relação para com Deus. Usou a opinião predominante para exprimir a idéia de que desejava todos ficassem imbuídos, isto é, que nenhum homem é apreciado por suas posses; porque tudo que lhe pertence é unicamente emprestado por Deus. O mau emprego destas dádivas colocá-lo-á abaixo dos mais pobres e afligidos que amam a Deus, e nEle confiam. — Parábolas de Jesus, p. 564.

Foi, pois, apresentada àquele grupo de críticos, não para justificar seus erros, mas para ilustrar, mediante seus próprios ensinamentos, a insustentabilidade de sua posição. Nossa entrada no reino de Deus é por graça, e graça unicamente; mas uma vez no reino, cumpre-nos viver como cidadãos do reino, de acordo com os princípios desse reino, como os revela a Escritura. Se os homens volvem costas a essa clara revelação de Deus em Sua Palavra, não creriam mesmo que alguém ressuscitasse dos mortos.

Um acontecimento sobrenatural, ou mesmo um acúmulo de semelhantes acontecimentos, não bastará para convencer os que rejeitam a Palavra de Deus.

Nesta parábola Jesus revelava aos Seus ouvintes (alguns dos quais eram coletores de impostos e pecadores notáveis), não só que a filosofia dos fariseus era incorreta, mas que podia com justiça ser condenada mesmo com base em sua própria literatura.

NOTA ADICIONAL

Os períodos abaixo são extraídos da obra de Josefo: “Discurso aos Gregos Acerca do Hades”:

  • 1. (…) O hades é um lugar, no mundo, inacabado ainda; uma região subterrânea, onde não brilha a luz deste mundo; e por causa desta circunstância de não brilhar a luz nessa região, não pode deixar de prevalecer nela uma treva perpétua. Essa região é designada como lugar de custódia para as almas, onde lhes são designados anjos para os guardarem, os quais lhes ministram punições temporárias, adequadas ao comportamento e maneiras de cada qual.
  • 2. Nessa região separou-se determinada porção, para um lago de fogo inextinguível, onde supomos ninguém foi ainda lançado; mas é preparado para um dia predeterminado por Deus, quando uma sentença justa será merecidamente lavrada contra todos os homens; quando os injustos, e os que foram desobedientes a Deus, e prestaram honra aos ídolos, vãos produtos das mãos dos homens, como se fossem o próprio Deus, serão entregues a essa punição eterna, pois que foram causa de corrupção; enquanto isso os justos obterão um reino incorruptível e imarcessível. Estes são agora de fato confinados ao Hades, mas não no mesmo lugar em que se acham os injustos.
  • 3. Pois há uma descida para essa região, a cuja cancela (…) quando por ela passarem os que são conduzidos pelos anjos encarregados das almas, eles não vão pelo mesmo caminho; mas os justos são guiados para o lado direito, ao som de hinos cantados pelos anjos escalados para aquele lugar, para uma região de luz, na qual os justos habitaram desde o princípio do mundo; não constrangidos por necessidades, mas sempre fruindo as perspectivas das boas coisas que vêem, e regozijando-se na expectativa daquelas novas fruições que serão peculiares a cada um deles, e estimando essas coisas superiores às que temos aqui; com quem não há lugar de labuta, nem calor abrasador, nem penetrante frio, nem existem ali espinhos; mas o semblante dos pais, e dos justos, que eles vêem, sempre lhes sorri, enquanto aguardam aquele repouso e vida nova e eterna no Céu, que deve suceder a essa região. A esse lugar chamamos O Seio de Abraão.
  • 4. Mas quanto aos injustos, são eles arrastados violentamente para o lado esquerdo pelos anjos incumbidos da punição, não mais indo por livre vontade, mas como prisioneiros tangidos com violência; aos quais são enviados os anjos destinados sobre eles, para repreendê-los e ameaçá-los com seus terríveis olhares, e para lançá-los mais para baixo. Ora, os anjos que são postos sobre essas almas arrastam-nas para as próprias vizinhanças do inferno; e, nesta ação severa, ouvem continuamente o seu ruído, não se livrando eles próprios do quentíssimo vapor; mas quando têm mais de perto uma visão do espetáculo, de terrível e grandíssima perspectiva de fogo, eles são feridos de uma horrível expectação de um juízo futuro, sendo por esse meio punidos; e não só assim, mas onde vêem o lugar [ou coro] dos pais e dos justos, mesmo por esse fato são punidos; pois foi posto entre eles um caos profundo e largo; tanto assim que um homem justo que tenha compaixão deles não pode ser admitido, nem o poderia atravessar um que fosse injusto, caso fosse bastante ousado para tentá-lo. — The Complete Works of Flavius Josephus, John C. Winston, Filadélfia, p. 91.