Essa antiga tradução das Escrituras Hebraicas para o grego foi a Bíblia do cristianismo primitivo. Renovado interesse na LXX seguiu-se à descoberta dos Rolos do Mar Morto. Alguns manuscritos encontrados ali têm notável relação com o texto hebraico que serve de base para a Septuaginta.
O primogênito tem preeminência na família e, portanto, na sociedade desde tempos imemoráveis. Semelhantemente, como a mais antiga entre as numerosas traduções do Antigo Testamento, a Septuaginta ocupa um lugar especial. Nascida em Alexandria, Egito, de pais judeus, ela como que era descendente de um casal idoso que estava tendo o primeiro filho para que o nome da família pudesse perpetuar-se num país estranho e hostil. O problema consistia em que a língua mãe, o hebraico, não era mais usada pela maioria dos judeus alexandrinos, rodeados pelas poderosas influências helenísticas. Eles falavam agora o grego popular importado por Alexandre, o Grande, quando ele fundou a colônia que logo se desenvolveu num poderoso centro de cultura. A data exata do nascimento da Septuaginta é desconhecida, embora deva ter sido nos meados do terceiro século A.C. Com o tempo, o fato de sua existência, antes que o tempo de seu nascimento, foi o que realmente passou a ter importância.
Os fatores que moldaram o recém-nascido incluíram não somente sua ascendência, mas também o ambiente cultural. A Septuaginta traduziu idéias bem como palavras. Assim ela teve capital importância como interpretação, além de ser uma tradução. Nenhum idioma já teve o luxo de “uma palavra para cada idéia”; por conseguinte, determinada frase, sentença ou idéia tem diversas nuanças de significação. A palavra ou as palavras escolhidas pelo tradutor dependem de tais coisas como sua formação, pressuposições, percepções, cultura e preconceitos.
Além do fato de sua ascendência judaica, sabemos pouca coisa mais sobre as origens da Septuaginta. Tradicionalmente nossa fonte de informação tem sido a carta de Aristeu, datada de 200 A.C. e parecendo ter sido escrita por esse homem a seu amigo Filócrates, por volta da época da tradução da Septuaginta. Aristeu relata os maravilhosos acontecimentos que, para ele, indicam a bênção divina. Ele fala de setenta e dois anciãos (seis de cada tribo) que, embora fossem mantidos em isolamento enquanto trabalhavam, todos fizeram uma tradução idêntica em setenta e dois dias! Obviamente, a carta merece pouca credibilidade, além do fato de que a parte inicial da Septuaginta foi realizada no Egito, como tradução do Pentateuco. No entanto, a lenda conferiu o nome Septuaginta ou Versão dos Setenta (o número geralmente é arredondado e abreviado para LXX) não somente ao Pentateuco, mas também a todo o Antigo Testamento Grego traduzido do hebraico durante o século seguinte, mais ou menos.
Para muitos, as conotações de uma origem egípcia têm sido suficientes para impedir que vejam qualquer utilidade para a Septuaginta, especialmente por haver nascido durante os “séculos escuros” do período intertestamental em que a voz dos profetas estava silenciosa. Este conceito desnecessariamente rigoroso omite, porém, alguns valores positivos da Septuaginta. Em primeiro lugar, ela é o mais antigo comentário escrito sobre o Antigo Testamento. É verdade que não se adapta ao sistema dos comentários modernos que expressam em muitas palavras as possíveis nuanças do texto. Mas o estudante atento pode captar vislumbres do original hebraico dessa tradução grega. Em segundo lugar, a Versão dos Setenta era a Bíblia da Igreja Cristã. Conquanto Jesus pudesse levantar-Se na sinagoga e ler a lição das Escrituras no hebraico, e Paulo recebesse preparo rabínico nessa mesma língua, para muitas pessoas na Palestina o aramaico era a língua materna, e o grego, a segunda língua que falavam. Na Diáspora predominou o grego (e mais tarde o latim). Se havia necessidade em Alexandria, no terceiro século A.C., do Antigo Testamento em grego, quanto mais nos primeiros séculos A.D.! Assim, a Versão dos Setenta teve profundo efeito de diversos modos.
Seu uso mais evidente, hoje em dia, é pra o estudo da história do texto hebraico do Antigo Testamento. Infelizmente, no passado, uma erudição demasiado entusiástica fez reivindicações absurdas da Septuaginta e usou-a para sugerir correções do texto hebraico quase que a cada passo (embora tais sugestões fossem relegadas às notas ao pé das páginas das Bíblias hebraicas, jamais sendo usadas para alterar o texto da própria Bíblia). Os eruditos mais moderados da atualidade, quer judeus ou cristãos, comentam as Escrituras Hebraicas à luz dos rolos de Qumran e do Mar Morto. Eles têm elevada consideração por sua preservação admiravelmente bem-sucedida. Isto não remove a necessidade do texto grego, que desempenha uma parte silenciosa mas útil na restauração de palavras ou passagens perdidas ou danificadas, aqui e ali, como no trecho da história de Saul e Jônatas registrado em I Samuel 14:41. Esta é a tradução da RSV (a parte derivada da Septuaginta está entre colchetes): “Portanto Saul disse: ‘Ó Senhor Deus de Israel, [por que não respondeste a Teu servo neste dia? Se esta culpa está em mim ou em Jônatas meu filho, ó Senhor Deus de Israel, dá Urim; mas se esta culpa está em Teu povo Israel], dá Tumim.’ ”
Visto que o vocabulário teológico do Novo Testamento foi extraído da Septuaginta, é útil e até necessário encarar o uso no Novo Testamento à luz do conhecimento da Septuaginta. Isto não é, porém, um fim em si mesmo. A Septuaginta, por sua vez, precisa ser considerada à luz das Escrituras Hebraicas. Quando foram escolhidas palavras do grego clássico para expressar as idéias do Antigo Testamento, elas receberam inevitavelmente um significado tão diferente do original como os sublimes conceitos do Antigo Testamento eram superiores às idéias pagãs. Um exemplo é a discussão (que às vezes se torna acalorada) de hilaskomai em Romanos 3. Este vocábulo significa “propiciar” ou “expiar”? O significado no Novo Testamento é influenciado pelo conceito pagão de “aplacar a cólera de um deus irado”?
Um exemplo que nunca deixa de fascinar-me é o pequeno fragmento hebraico (do tamanho da palma da mão) encontrado na Caverna N? 4 e que contém partes dos primeiros versos de Êxodo 1. Entre outras coisas, declara-se que o número de pessoas que desceram ao Egito com Jacó era de 75, em contraste com as 70 do texto hebraico (Êxo. 1:5). Depois de tantos séculos, a Septuaginta, que também diz 75, tem agora algum reforço! Mas o interesse não pára aí. Quando Estêvão, em sua defesa relatada em Atos 7, fala da descida de Jacó e sua parentela ao Egito, ele também dá o número 75 (Atos 7:14).
Pondo as coisas na perspectiva correta, tenho de admitir que você pode ter um ministério muito eficiente sem nunca haver recorrido à Septuaginta. Por outro lado, se você domina o grego do Novo Testamento, notará que grande parte do material é de leitura agradável, sendo ao mesmo tempo um auxílio para compreender melhor as Escrituras. Só uma vez preguei diretamente da Septuaginta (um sermão batismal da história de Naamã, que “se batizou” no Jordão). Se bem que eu raramente mencione a Septuaginta para a congregação nos cultos (em contraposição aos grupos de estudo, onde considero apropriado fazê-lo judiciosamente), recorro constantemente a ela no preparo de meus sermões. Tenho verificado que o pregador eficiente precisa saber muito mais sobre o seu assunto do que espera partilhar, do contrário não terá uma perspectiva adequada.
A Septuaginta pode ser um recurso adicional. Cumpre fazer, porém, uma advertência. Leia o texto grego por si mesmo. Até mesmo as melhores traduções podem ser vítimas, nalguns lugares, da tendência de adaptar-se à tradução mais aceita do hebraico. Você precisa ser arrojado e fazer suas próprias traduções. Se nutrir sua própria alma com novos vislumbres da Bíblia do mundo grego, será instintivamente de proveito para outros em seu ministério.
Por vezes os significados das palavras gregas são radicalmente diferentes de seus equivalentes hebraicos. Isto pode ser visto pelo fato de que Martinho Lutero só chegou a compreender a justiça pela fé quando ele estudou as próprias Escrituras Hebraicas. No grego clássico dikaiosune (NT: “justiça”) ê uma das quatro virtudes cardeais que o indivíduo está livre para desenvolver em si mesmo. Visto como essa palavra foi usada na Septuaginta para traduzir o hebraico era difícil para o leitor grego compreender tal conceito como “a justiça de Deus” à parte da idéia de virtude infundida. Quando Lutero compreendeu o vocábulo hebraico original sob o aspecto da relação do concerto do Antigo Testamento, como algo fora de si mesmo, ele foi conduzido em contrição ao pé da cruz.
Também pode ser instrutivo determinar quando as citações do Novo Testamento foram extraídas da Versão dos Setenta. Em muitos casos eles citam a Septuaginta palavra por palavra, e em outros acompanham o grego mais de perto do que o hebraico. Toda a discussão acerca de “virgem” contra “jovem” em Isaías 7:14 se centraliza na tradução da palavra hebraica como “virgem” na Septuaginta. Considere também a citação de Pedro no dia de Pentecostes, de Joel 2:28-32, segundo foi traduzida literalmente pela Edição Revista e Atualizada no Brasil: “derramarei do Meu Espírito” (Atos 2:18). Quando eu era menino adotei a interpretação de que essa experiência era partitiva — “do Meu Espírito” significava “uma parte do Meu Espírito”, não sendo portanto a experiência completa, por mais admirável que fosse. Recentemente, por curiosidade, consultei essa passagem na Septuaginta, e verifiquei que o Novo Testamento cita a Bíblia grega daquele tempo. Por conseguinte, com base no uso feito pela Septuaginta não estou mais convencido de que o Pentecostes apenas foi parcial. Além disso, todas as citações do Antigo Testamento no livro de Hebreus são do grego — de modo que o texto citado em Hebreus 1:6, que serve de prova para a divindade de Cristo, não se encontra na Bíblia hebraica da maneira como nós a temos (embora eu esteja inteirado de que foi achado em Qumran um fragmento hebraico que o contém), mas é da Septuaginta. Parece ser razoável, portanto, que quando o jovem Timóteo, versado no grego como ele era, leu a declaração do apóstolo: “Toda Escritura é inspirada por Deus”, deve ter pensado em sua Bíblia grega. Certamente os pais da Igreja, como Orígenes, também consideravam as palavras de Paulo desse modo.
Por muitos anos a Septuaginta caiu em desuso como auxílio para o estudo da Bíblia porque se pensava que o original hebraico era mais do que adequado. Uma renovação do interesse na Septuaginta seguiu-se à descoberta dos Rolos do Mar Morto em 1947. Conquanto o quadro ainda esteja sendo elucidado, é correto dizer que alguns dos manuscritos achados ali têm notável relação com um texto hebraico diferente que serve de base para a Septuaginta. Em outras palavras, os tradutores da Versão dos Setenta talvez não tenham acrescentado alguma coisa, mas seguiram um texto hebraico um pouco diferente do texto massorético que temos agora. — BERNARD TAYLOR