Quase em todas as ocasiões onde as palavras “autoridade” e “poder são usadas na versão King James do Novo Testamento, aparecem traduzidas do termo grego exousia. São aproximadamente cem vezes. Mateus usa essa palavra com o significado de “direitos”: “…o Filho do homem tem sobre a Terra autoridade para perdoar pecados…” (Mat. 9:6); e com o significado de “jurisdição”: “…sou um homem sujeito à autoridade, tenho soldados às minhas ordens…” (Mat. 8:9).

João emprega exousia significando “liberdade: “Tenho autoridade para a [a vida] entregar e também para reavê-la.” (João 10:18). Ou com o significado de “prerrogativa”: “Mas, a to-dos quantos O receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus.” (João 1:12). Em Lucas, exousia aparece significando “energia”: “E muito se admiravam da Sua doutrina, porque a Sua palavra era com autoridade” (Luc. 4:32). Nos escritos de Paulo, aparece como “exercício de controle”: “o marido não tem poder sobre o seu próprio corpo…” (I Cor. 7:4), ou como estando “sob o controle de outro”: “Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas” (I Cor. 6:12).

O uso de exousia no Novo Testa-mento sugere que a autoridade pode encontrar expressão através de maneiras positivas e negativas, estropia-das ou saudáveis. Essa realidade introduz uma discussão dos paradoxos e complexidades freqüentemente associados com autoridade na Igreja.

Raízes da hierarquia

Eugene Kennedy e Sara Charles, em seu livro Authority, pressupõem que a noção de hierarquia pode ser traçada desde a Mesopotâmia.1 Os sacerdotes dessa região desenvolveram uma compreensão sofisticada dos céus e eram profundamente im-pressionados pela precisão matemática dos corpos celestes. Com o passar do tempo, os sacerdotes sumerianos fizeram uma impressiva dedução: a ordem que os deuses estabeleceram nos céus era o modelo para a sociedade. Assim como a Terra permanecia incontestável no centro do Universo, o rei poderia reinar incontestável no centro da sociedade. Ou seja, tanto a hierarquia nos céus, vista no giro dos planetas e estrelas ao redor da Terra, como a hierarquia dos cidadãos, orbitando em torno do rei, eram ordenadas por Deus.

Aquelas deduções de três mil anos atrás continuaram essencialmente indiscutíveis por quase três milênios. Elas continuaram como a pedra fundamental da visão, largamente aceita, do “direito divino dos reis”. Os arranjos hierárquicos posteriormente efetuados, na Igreja e na sociedade, foram descendentes diretos desse pensamento.

Mas em tempos difíceis, a hierarquia tem falhado, e as mudanças nesse modo de pensar são evidentes. Copérnico, por exemplo, foi o primeiro a provar que a Terra não ocupa um lugar privilegiado no centro do cosmos. Ele descobriu que giramos em torno do sol. Asso-ciado à hierarquia, esse pensamento levou a sociedade a aceitar uma conceitualização integrada, interdependente e democrática. Conseqüentemente, houve uma rejeição da monarquia na sociedade secular, uma mudança da vida eclesiástica na Inglaterra, com o estabeleci-mento da Igreja Episcopal, e na França, com a rejeição da liderança católica durante a Revolução Francesa. Mas esses acontecimentos eram apenas o começo.

Os autores católicos do livro Authority notam a mudança de pensamento em sua Igreja: “A Igreja Católica Romana captou o problema no início do século, talvez em reação ao papa Pio X (1901-1909), que rejeitava com excessiva autoridade o mundo moderno. Através de encíclicas e outros meios ele começou a suprimir a influência do Modernismo na Igreja. No II Concilio do Vaticano (1961-1965), a Igreja respondeu, reorganizou-se, restaurando o modelo colegial, fundamentalmente não hierárquico, estabelecido por Jesus Cristo em Seu relacionamento com os apóstolos.”2

Mas então, como disse Davi Remnick, o papa João Paulo II “determinou a reversão do que ele vê como a crise múltipla da Igreja -principalmente uma erosão de propósito moral e obediência à autoridade hierárquica”.3

O infindável debate sobre o assunto da autoridade ilustra como a sociedade secular e eclesiástica têm lutado com o novo paradigma. Precisamos ir às Escrituras em busca de compreensão e resolução do problema.

A norma bíblica

Hierarquia tem sido intimamente entrelaçada com abuso de poder, de força, negação de liberdade para muitos e controle de poucos. Essa forma abusiva é essencialmente imoral. Mas a autoridade bíblica é moral. Ela está fundamentada no amor. Não impõe nada, não opera de cima para baixo, não busca exclusivismo. É baseada em relacionamentos, buscando facilitar a inclusão.

A autoridade bíblica é dada por Deus. Habilita as pessoas e as liberta para crescer na plenitude do amor de Deus. Como resultado, elas promovem a expansão do Seu reino. “A autoridade não é maior que a vida. Na verdade, ela se enquadra exatamente na vida humana. Este reino de Deus reside dentro de todas as pessoas saudáveis. A perda da fama lhes pode ser mais vantagem que obstáculo ao exercício da autoridade sensível. Elas podem ser até superadas por uma indiscriminada cultura popular, onde o bem e o mal, o certo e o errado não façam diferença como direitos de cidadania. Mesmo assim, a autoridade de pessoas normais gera um efetivo, senão culturalmente celebrado, estabeleci-mento de padrões sensíveis.”4

Tal visão de autoridade em cada um de nós, conferida por Deus, revelada em Sua palavra e estimulada por Seu Espírito é o único modelo organizacional que pode cumprir a vontade de Deus.

O líder servidor

Uma das mais desafiadoras verdades do Novo Testamento é a admoestação de Jesus para que os líderes sejam servos. Desde os dias de Abraão o modelo hierárquico tinha prevalecido. Mesmo na comunidade judaica, o sumo sacerdote assumiu um papel altamente político no mundo, à parte da liderança espiritual. Buscando inverter tão distorcida visão da vontade de Deus para indivíduos e comunidades, Je-sus afirmou que tudo o que tinha si-do ensinado e seguido deveria ser substituído por um novo paradigma.5 E considerando a obra da nascente Igreja, Ele buscou estabelecer uma pirâmide invertida de liderança, oposta ao sistema formulado na terra de Abraão.

Jesus então disse: “sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade [katexousia] sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós, será vosso servo; tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a Sua vida em resgate por muitos” (Mat. 20:25-28).

Líder e servidor são expressões muito conhecidas na Igreja e na indústria hoje. O originador dessa nomenclatura foi Robert Greenleaf, em 1970. Ele viveu 40 anos como administrador de uma grande companhia e depois começou outros 25 como o diretor do Greenleaf Center for Servant-Leadership (Centro Greenleaf para Liderança Servidora). Atualmente muitos dos mais conhecidos consultores de liderança aceitam esse conceito.

Greenleaf resumiu sua com-preensão de como nós podemos saber se estamos ou não agindo segundo esse paradigma: “Estão os servidores crescendo como pessoas? Estão eles se tornando mais saudáveis, mais sábios, mais livres e autônomos, mais satisfeitos consigo mesmos?”6 Isso é bastante significativo quando aplicado a instituições seculares. Mais ainda, quando aplicado ao líder de qualquer segmento na Igreja.

Compromisso de ouvir

Líderes servidores ouvem as pessoas, seus pensamentos, sonhos e temores. E isso é muito diferente de ser apenas um bom ouvinte. Muitos líderes sabem a importância de dar às pessoas oportunidade para falar. Mas isso não é o mesmo que estar ouvindo. Ouvir, aqui, significa entender os pensamentos mais importantes da pessoa, os que freqüentemente permanecem guardados no coração. Isso requer tempo, disciplina, aceitação, percepção, sensibilidade e compreensão.

Líderes servidores são também perspicazes para ouvir o próprio coração. No livro The Body Speaks (O Corpo Fala),7 encontramos que nosso corpo apresenta sintomas como expressões dos dilemas da vida. Ele tem sua própria maneira de enviar mensagens. E nós temos de ouvir essas mensagens e agir. Quanto mais nos demorarmos nesse processo, mais grave se tornará a situação, até que finalmente nos encontraremos prostrados, começando a morrer.

desânimo entre clérigos é muito comum.8 Mas aqueles que aprenderam a ouvir o próprio coração não se abatem. Eles ouvem a si mesmos enquanto ouvem os outros. En-quanto ouvem o próprio espírito fa-lar, também ouvem a voz de Deus. Aceitam a importância da mensagem e respondem antes que aconteça algum dano irreparável. Ouvir a si mesmo e ouvir os outros são dois lados da mesma moeda.

Compromisso com a confiança

Outro aspecto do líder servidor que facilita a autoridade bíblica na igreja é o processo vital de desenvolver um ambiente de confiança. Se há um baixo nível de confiança em sua igreja, não é possível trabalhar. A liderança tende a se tomar autocrática. Nesse caso, os membros deixam de colaborar, tornam-se desconfiados, sem motivação. Espalham seu desgosto como algas na superfície, estagnando a fonte.

Covey pergunta o que uma organização é quando existe baixo nível de confiança, e ele mesmo responde numa palavra: “rígida.”9 Quando as pessoas na igreja não se sentem livres para agir utilizando seus dons, aproveitando as oportunidades que o Espírito Santo lhes dá, a igreja começa a encolher e morrer. Nenhum programa pode ter tanto êxito co-mo quando todos os membros aproveitam todas as oportunidades de usar seus dons, para atender as necessidades humanas.

A confiança é o fundamento de uma comunidade crente comprometida com as almas que necessitam conhecer a Cristo como Salvador e encontrar o caminho de volta ao lar. Como disse Covey, “eu não me preocupo tanto com o que você sabe, até que eu saiba o que lhe preocupa tanto”.10 O relacionamento de um líder servo que se preocupa com as pessoas e confia nelas, facilita a operação da autoridade bíblica.

Presença calma

Um terceiro item no desenvolvimento da autoridade bíblica, baseado no modelo líder servidor, é o convite a sermos menos ansiosos. Isso significa estar calmos em situações de tensão. É assim que nos tomamos melhores ajudadores das pessoas em suas dificuldades. Em presença de um líder calmo, as pessoas são libertadas para pensar mais claramente e agir mais responsavelmente.

Nesse processo, o líder servidor é modelo de fé para os membros, não por dizer-lhes o que fazer, mas por mostrar a realidade da luta por crescimento na vida cristã. Ele não tenta exemplificar a perfeição, mas exemplifica o processo. O primeiro caso pode ser ilustrado com a imagem de um pastor sorridente, procurando esconder um coração dolorido que se esforça para dar aparência de êxito e vitória, enquanto esconde a realidade dos altos e baixos diários. O segundo é exemplificado no pastor que procura ser autêntico. É uma pessoa cheia de esperança e sabedoria, com um enraizado relacionamento de confiança com o Senhor. Esse é o pastor que sabe por experiência como permanecer cal-mo e confiante quando diante de cargas como conflitos, divórcio, doenças, desespero e morte. Nenhum sorriso pode mascarar tais experiências. O líder servidor sabe disso e não tenta fingir.

Quando o invulnerável pastor perde a calma cria ansiedade e conflito. Mas quando o líder permanece calmo, a ansiedade é administrável. Indivíduos perfeccionistas, defensivos e invulneráveis são, invariavelmente, ansiosos. E têm razões para isso! Mas somente uma calma presença pode criar o cenário para a livre operação da autoridade bíblica, que produz uma congregação vibrante e confiante, bem como o crescimento do Reino.

Segundo Richardson, “o principal trabalho do líder. Em sua ma-neira de ser na congregação, é criar uma atmosfera emocional onde exista a maior tranqüilidade – ser uma presença calma. Para ser um líder competente não é necessário saber tudo. Quando você se torna uma presença calma, transmite ao grupo experiência e sabedoria para descobrir sua próprias soluções para os desafios enfrentados”.11

Estes três elementos são cruciais para a implementação do modelo líder servidor de autoridade, descrito por Jesus: líderes que verdadeiramente ouçam as pessoas; líderes que desenvolvam um relacionamento de confiança com as pessoas e procurem ser uma presença calma para elas.

Para refletir

Feitas essas considerações sobre um assunto tão incompreendido, é oportuno refletir sobre alguns itens conclusivos.

Primeiro, o núcleo do egoísmo e interesse próprio sempre estará enraizado em nosso coração, enquanto esperamos o eschaton, de modo que a implementação da genuína autoridade bíblica será imperfeita. Mas, essa não é uma boa desculpa para retardar sua implementação, afinal as alternativas que existem são anti-cristãs: autoritarismo, jogo de poder e interesse pessoal.

Em segundo lugar, a autoridade bíblica nunca deve ser confundida com hierarquia baseada em autoritarismo. São duas coisas opostas; dois estilos infinitamente opostos de vida institucional.

Terceiro item, o uso do poder é um atributo intrínseco de autoritarismo e é sempre autopromocional. Em contraste, o amor é o atributo intrínseco da autoridade bíblica, que busca o crescimento, os interesses e a liberdade de outras pessoas, não o controle sobre elas.

Finalmente, em quarto lugar, se a autoridade bíblica é experimentada em uma congregação composta de indivíduos com uma variedade de dons espirituais como liderança, pastoreio e profecia, não há necessidade de temer conflitos. Esse é o modelo designado por Deus para a Sua Igreja. De acordo com Seu plano, todos devem trabalhar cooperativamente como servidores.

Na Igreja, a “autoridade para agir” dos membros está baseada na “comissão para agir” de Deus. Está ligada aos dons espirituais. Ao invés de causar conflito, gera harmonia. Na metáfora usada por Paulo em seus escritos aos romanos, Coríntios e efésios, todos os dons estão juntos na Igreja e funcionam como um corpo verdadeiramente cooperativo e integrado -o indivisível corpo de nosso Senhor Jesus Cristo.

Referências

  • 1. Eugene Kennedy e Sara Charles, Authority (Nova York: The Free Press, 1997), pág. 7.
  • 2. Ibidem, pág. 198.
  • 3. Ibidem, pág. 199.
  • 4. Ibidem, pág. 205.
  • 5. Mateus 5 e 6.
  • 6. Robert Greenleaf, Insights on Leadership, Larry Spears, ed. (Nova York: John Wiley and Sons, 1997), pág. 19.
  • 7. James Griffith e Melissa Elliott Griffith, The Body Speaks (Nova Yokr: Basic Books, Harper Collins Publishers, 1994).
  • 8. Jan Smuts van Rooyen, Discontinuance From the Mi-nistry by Seventh-day Adventists Ministers: A Qualita-üve Study (Universidade Andrews, 1997).
  • 9. Steven Covey, Insights on Leadership, pág. 16.
  • 10. Ibidem.
  • 11. R. W. Richardson, Creating a Healthier Church, (Mineápolis: Fortress Press, a996), pág. 173.