Os escritos de E. G. White parecem suge-rir ora, que Jesus teve natureza humana idêntica à de Adão antes da queda, ora idêntica à nossa. O autor procura explicar a aparente contradição.

Que tipo de natureza humana foi assumida por Deus o Filho ao encarnar e viver entre nós? Pré-lapsariana, isto é, idêntica a de Adão antes da queda, ou pós-lapsariana, isto é, idêntica à nossa? Ambas as hipóteses parecem contar com o apoio das Escrituras. Heb. 7:26, por exemplo, refere-se a Cristo como “santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores, e feito mais alto do que os céus”. Essas palavras descrevem adequadamente uma condição pré-lapsariana de humanidade. Por outro lado, esta mesma epístola, em 2:14 e 17, afirma que Ele Se tornou semelhante aos demais homens, na “participação comum da carne e sangue”, o que sugere uma condição pós-lapsariana (ver também Rom. 8:3).

Igualmente o Espírito de Profecia parece favorecer uma e outra hipótese. Eis algumas citações com sabor pré-lapsariano. Grifos são por nossa responsabilidade: “Cristo veio à Terra assumindo humanidade e colocando-Se como representante do homem para mostrar na controvérsia com Satanás que o homem como Deus o criou em comunhão com o Pai e o Filho, poderia obedecer a cada requerimento divino.” (Signs of the Times, June 9, 1898).

“Cristo é chamado o segundo Adão. Em pureza e santidade, unido com Deus e amado por Deus, Ele começou onde o primeiro Adão começou. Ele cruzou o chão onde Adão caiu, e redimiu o fracasso de Adão.” (Youth’s lnstructor, June 2, 1898).

“Ele venceu Satanás na mesma natureza sobre a qual no Éden Satanás obteve a vitória”. (Ibidem, April 25, 1901).

“Ele devia tomar Sua posição como cabeça de humanidade ao tomar a natureza mas não a pecaminosidade do homem.” Signs of the Times, May 29, 1901).

“Sede cuidadosos, extremamente cuidadosos quanto a como vos ocupais com a natureza humana de Cristo. Não o coloqueis diante do povo como um homem com as propensões do pecado. Ele é o segundo Adão. O primeiro Adão foi criado puro, impecável, sem uma mancha de pecado sobre si; ele era a imagem de Deus… Jesus Cristo… poderia ter caído, mas nem por um momento existiu nEle uma propensão má… Nunca, de forma alguma, deixeis a mais leve impressão sobre as mentes humanas de que uma mancha de corrupção, ou inclinação para corrupção se apegou a Cristo, ou que Ele de alguma forma cedeu à corrupção… Que cada ser humano seja advertido contra a idéia de tornar a Cristo totalmente humano tal como um de nós; isto não pode ser.” (SDABC, vol. 5, págs. 1.128, 1.129).

Destas citações podemos inferir que Cristo é o segundo Adão e como tal era diferente de nós no sentido de não possuir a mácula do pecado, que possuímos desde o momento em que somos gerados (ver Sal. 51:5). Ele era isento das tendências carnais e pecaminosas que marcam a nossa vida. Para E. G. White, expressões como “pecaminosidade do homem”, propensão para corrupção, “mancha de corrupção”, “propensão má”, e “propensões do pecado”, são, neste contexto, mais ou menos equivalentes. Nenhuma destas coisas se fez presente em Jesus.

Outro grupo de citações parece implicar um sentido pós-lapsariano. Damos alguns exemplos novamente grifando expressões por motivo de ênfase:

“A natureza de Deus, cuja lei tinha sido transgredida, e a natureza de Adão, o transgressor, se reuniram em Jesus — o Filho de Deus e o Filho do homem.” {Ibidem, vol. 7, pág. 926).

“Cristo, que não conhecia o mínimo vestígio de pecado ou contaminação, tomou nossa natureza em seu estado deteriorado.” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 253).

“Ele tomou sobre Sua natureza impecável, nossa natureza pecaminosa.” (Medicai Ministry, pág. 181). “Estava no plano de Deus que Cristo tomasse sobre Si a forma e natureza do homem caído.” (Spirit of Prophecy, vol. 2, pág. 39).

Estas citações deixam claro que Cristo assumiu uma natureza humana desfigurada pelo pecado, portanto idêntica à nossa. Como harmonizar os dois grupos de citações?

Bem, Cristo não pode ter tido duas naturezas humanas, uma imaculada e outra maculada pelo pecado. Se é isto o que E. G. White está afirmando então ela se contradiz. Mas seguramente não é este o caso. A questão é se entendemos corretamente o que está sendo declarado. Na verdade os conceitos pré e pós-lapsarianos, no contexto da Bíblia e do Espírito de Profecia, não se contradizem, não se excluem, mas se complementam. Caso contrário, não possuiríam ambos o aval da inspiração.

Tomemos como exemplo a declaração acima, extraída de Medicai Ministry, pág. 181. E. G. White não pode estar afirmando que Jesus tomou nossa natureza pecaminosa sobre Sua natureza impecável, no sentido de que Ele passou a possuir duas naturezas humanas, uma que já era Sua e outra que tomou de nós. Aliás, o sentido do verbo inglês to take (tomar) seguido da preposição upon (sobre), como aparece no original, é, segundo o Webster Dictionary, “aceitar a responsabilidade por, aceitar como uma responsabilidade ou dever”. A idéia é que Cristo Se submeteu à situação do homem no pecado, para conhecer por experiência as lutas do pecador, e, por esse meio, capacitar-Se a prestar-lhe uma ajuda autêntica, eficaz. A citação, em seu contexto, favorece esse pensamento. “Ele tomou sobre Sua natureza impecável, nossa natureza pecaminosa, para que pudesse saber como socorrer aqueles que são tentados.”

O mesmo se verifica em relação à citação seguinte, extraída de Spirit of Prophecy, vol. 2, pág. 39: “Ao tomar a natureza humana Cristo habilitou-Se a entender a natureza das provações humanas, e todas as tentações que assediam o homem. Os anjos, que não estavam familiarizados com o pecado, não poderiam simpatizar-se com o homem em suas provações peculiares. .. Estava no plano de Deus que Cristo tomasse sobre Si a forma e natureza do homem caído, para que pudesse aperfeiçoar-Se através do sofrimento [o que não poderia ocorrer com Adão antes da queda], e Ele mesmo suportasse a força das ardentes tentações de Satanás, a fim de que pudesse entender como socorrer aqueles que seriam tentados.” Cristo assim participou das conseqüências do pecado, às quais todos estamos sujeitos, mas não do próprio pecado. (Ver Heb. 2:18; 4:15).

Outro ponto a ser considerado tem a ver com a terminologia usada na exposição do assunto. É sabido que há ocasiões quando faltam a um escritor termos que denotem com mais precisão o significado daquilo que deve ser exposto. Recursos literários se mostram inexpressivos, às vezes, na abordagem de temas transcendentais. Certamente escritores bíblicos depararam este problema e com E. G. White não foi diferente. Este simples fato deve alertar-nos quanto à necessidade de cuidado ao nos propormos à difícil tarefa da interpretação. Quando, por exemplo, a Bíblia diz que Deus “Se arrependeu”, cumpre-nos procurar saber o que realmente está sendo aí enunciado. Seja o que for, não poderá contrariar o significado de outras informações que a mesma Bíblia presta sobre Deus, como por exemplo o atributo da imutabilidade. Nesse caso, temos de convir que o que Deus é normatizará o significado dos termos usados em referência a Ele, e não vice-versa.

No caso da natureza humana de Jesus, a exemplo de qualquer outro tema, cumpre-nos procurar saber por que E. G. White fez tais e tais declarações, por que utilizou determinada terminologia, e o que realmente estava querendo comunicar. Uma forma através da qual é possível descobrir o que certo escritor está querendo dizer quando emprega determinados ter-mos, é observar o sentido que ele mesmo deu àqueles termos em outras ocasiões nas quais assuntos mais óbvios foram abordados. Isto, todavia, nem sempre funciona, porque podem estar os referidos ter-mos sendo agora empregados em declarações não plenamente elaboradas. Exemplos disto ocorrem em declarações do Espírito de Profecia que devem ser consideradas como citações livres que E. G. White faz de suas fontes de pesquisa.

Para a serva do Senhor a imaculabilidade e impecabilidade de Cristo não significam incolumidade às conseqüências do pecado. Portanto, dois importantes aspectos da natureza humana de Jesus são abordados pelo Espirito de Profecia.

A propósito, a revista The Ministry publicou há algum tempo um curto, mas excelente artigo da autoria de Tim Poirier, secretário assistente do White Estate, que toca exatamente este ponto. Devemos compreender que a Sra. White não se acomodou com as visões que Deus lhe deu. Ela foi uma incansável pesquisadora, examinando autores cujos escritos poderiam não somente ajudá-la a entender certos assuntos, mas igualmente suprir-lhe certas expressões através das quais poderia melhor comunicar a revelação divina.

Segundo o articulista, certo número de afirmações de E. G. White sobre a natureza humana de Jesus parece refletir o pensamento do pregador anglicano Henry Melvill (1798-1891), cujos sermões foram publicados em vários volumes. Para este autor, a queda do homem acarretou duas conseqüências primárias: (1) debilidades inocentes, coisas como fome, dor, fraqueza, sofrimento e morte; e (2) propensões pecaminosas, isto é, inclinações ou tendências para o pecado. Cristo assumiu as primeiras sem assumir as segundas. Ainda de acordo com o articulista, termos como propensão, tendências, predisposição, foram entendidos e empregados por E. G. White numa perspectiva idêntica a de um outro autor, Octavius Winslow, o qual seguiu a mesma linha de argumentação de Melvill. Recomendamos a leitura de todo o artigo, publicado em The Ministry, Dec. 1989, págs. 7 a 9.

Este fato confirma o que concluímos anteriormente. Que para a serva do Senhor a imacularidade e impecabilidade de Cristo não significam incolumidade às conseqüências do pecado. Portanto, dois importantes aspectos da natureza humana de Jesus são abordados pelo Espírito de Profecia, ambos imprescindíveis à nossa salvação. Por um lado cristo é referido como o segundo Adão, o Homem representativo da nova humanidade, o pai da raça redimida, Aquele que significa a nossa segunda oportunidade, o Filho de Deus. Por outro lado Ele é o Filho de Maria, Aquele que não somente Se identifica conosco em nossas dores, conflitos e misérias, tornando-Se o nosso grande Ajudador, mas antes de tudo Aquele que tomou as nossas dores, que Se colocou em nosso lugar para arrostar a pena que nos estava reservada, tornando-Se assim o nosso Substituto e Redentor. “Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou Seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos.” (Gál. 4:4 e 5). O quadro, pois, se completa, e Jesus é colocado em Seu devido pedestal. Ele é tudo o que o homem carece, o Alfa e o Ômega, o Autor e Consumador da redenção, o grande Ideal e o grande Recurso deparado pelo Céu para que esse ideal seja alcançado. Temos então os dois lados de uma única moeda que se chama a natureza humana de Cris-to. Observemos um terceiro grupo de citações que nos ajudam a estabelecer definitivamente o assunto. Grifamos novamente um ou outro ponto digno de destaque:

“Jesus aceitou a humanidade quando a raça havia sido enfraquecida por quatro mil anos de pecado.” (O Desejado de Todas as Nações, pág. 41). No mesmo parágrafo ela firma que Cristo Se subordinou à lei da hereditariedade. O termo chave dessa citação é humanidade enfraquecida. Quanto às doenças, Cristo não as teve porque cumpriu à risca as leis de saúde. (Ver O Desejado de Todas as Nações, pág. 35).

“Separada da presença de Deus, a família humana, a cada geração sucessiva, estivera se afastando mais e mais, da pureza, sabedoria e conhecimentos originais, que Adão possuía no Éden. Cristo suportou os pecados e fraquezas da raça humana tais como existiam quando Ele veio à Terra para ajudar o homem. Em favor da raça, tendo sobre Si as fraquezas do homem caído, devia Ele resistir as tentações de Satanás em todos os pontos em que o homem seria tentado.” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, págs. 267 e 268. Aqui é afirmado que Jesus não veio no vigor de Adão antes da queda. Ele assumiu uma natureza humana enfraquecida física, mental e espiritualmente pelo pecado, e venceu o inimigo nesta condição.

“É um irmão em nossas fraquezas, mas não em possuir idênticas paixões. Sendo sem pecado, Sua natureza recuava do mal.” (Testemunhos Seletos, vol. 1, pág. 220). Aqui são apresentados os dois lados da moeda, “…em nossas fraquezas” implica condição pós-lapsariana, enquanto “sem pecado” implica condição pré-lapsariana. Cristo arcou com uma humanidade enfraquecida pelo pecado, mas moralmente era imaculado. João 14:30 afirma que o diabo não encontrou em Jesus qualquer correspondência às suas tentações. Mais algumas citações realçam o devido equilíbrio entre esses dois aspectos:

“Ele era incontaminado pela corrupção, um estranho ao pecado [condição pré-lapsariana]; contudo, orava, e freqüentemente com grande clamor e lágrimas. Orava por Seus discípulos e por Si mesmo, identificando-Se assim com nossas falhas, que são tão comuns à humanidade [condição pós-lapsariana]. Era um poderoso intercessor, não possuindo as paixões de nossa natureza humana caída [condição pré-lapsariana], mas rodeado das mesmas fraquezas [condição pós-lapsariana], tentado em tudo como nós. Jesus suportou a agonia que requeria ajuda e apoio de Seu Pai.” (Testimonies, vol. 2, págs. 508 e 509).

“Ao tomar sobre Si mesmo a natureza do homem em Sua condição caída [condição pós-lapsariana], Cristo não teve a mínima participação em seu pecado [condição pré-lapsariana]. Não deveriamos ter nenhuma dúvida com respeito a perfeita impecabilidade da natureza humana de Cristo [condição pré-lapsariana].” (SDABC, vol. 5, pág. 1.131).

“Vestido nas vestimentas da humanidade, o Filho de Deus desceu ao nível daqueles a quem Ele desejava salvar. nEle não havia qualquer mancha ou pecaminosidade; Ele foi sempre puro e imaculado [condição pré-lapsariana]; entretanto tomou sobre Si nossa natureza pecaminosa [condição pós-lapsariana].” Review and Herald, Dec. 15, 1898). É evidente nesta citação que “tomar nossa natureza pecaminosa” não significa que Ele adquiriu pecaminosidade. Na citação anterior é feita alusão à perfeita impecabilidade da natureza humana de Jesus.

“Ele nasceu sem uma mancha de pecado [condição pré-lapsariana], mas veio ao mundo de maneira igual a da família humana [condição pós-lapsariana].” (Letter 97, 1898, cit. em Question on Doctrine, pág. 657).

É óbvio que E. G. White afirma que Jesus Se subordinou às limitações impostas pelos efeitos do pecado na raça humana desde a queda, a partir da qual a natureza humana se foi tornando mais e mais enfraquecida. Tal natureza humana, assim afetada pelo pecado, foi assumida por Ele.

Mas ao mesmo tempo Ele não herdou a mancha do pecado, a inclinação para o mal que afeta a cada ser humano, e que costumamos chamar natureza carnal ou pecaminosa. Santidade plena e fragilidade de homem caído se fizeram presentes em Jesus Cristo. Esses dois aspectos de uma única natureza foram nEle combinados numa forma singular para capacitá-Lo a ser nosso Salvador. Fosse apenas imaculado e não participasse de nossa experiência como vítimas do pecado, e não poderia ser nosso Substituto e Ajudador. Participasse de nossas dores e não da imacularidade de Adão antes da queda, e não poderia ser o nosso Salvador. Teria de padecer por Si mesmo. “Não houve uma só gota de nossa amarga miséria que Ele não provasse, parte alguma de nossa maldição que não sofresse, a fim de que pudesse levar a Deus muitos filhos e filhas.” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 253).