A perspectiva teológica atual abre espaço para que a teologia adventista exerça um papel efetivo

Desde que Adolf von Harnack lançou a tese de que quase todas as coisas consideradas ortodoxia cristã (“o elemento católico”) são resultado da “helenização aguda do cristianismo”,1 o próprio fundamento clássico da teologia foi abalado. Como se confirmasse isso, Jürgen Moltmann cunhou a frase “os Pais batizaram Aristóteles”.2

Desde então, os protestantes, particularmente evangélicos, têm começado um processo de “deselenização” da teologia. O que esse processo faz à teologia? De que maneira isso está relacionado à teologia adventista? Este artigo resumirá a história do processo de “deselenização” na teologia protestante e evangélica, a fim de mostrar como essa história afetou a compreensão da ideia de Deus e, consequentemente, a compreensão da natureza humana. Também tentará demonstrar que essa mudança de paradigma coloca a Igreja Adventista do Sétimo Dia em uma posição ideal para apresentar seu sistema doutrinário.

Deselenização de Deus

Começando com a compreensão de que a teologia tem sido construída sobre pressuposições filosóficas do antigo helenismo grego, um dos primeiros elementos a ser reformulados por uma minoria de eruditos foi a pressuposição fundamental do Ser de Deus. Se a atemporalidade de Deus tinha sido anteriormente o ponto de partida da teologia clássica, agora seria radicalmente reinterpretada por um novo paradigma filosófico.

À medida que os filósofos se tornaram mais familiarizados com a natureza básica da realidade, eles compreenderam que as coisas temporais poderiam ser conjecturadas como sendo reais. Assim, a História deixou de ser uma cópia ilusória das realidades eternas – atemporais – tal como foi concebido pela filosofia platônica e pelo teísmo clássico. Em sua obra-prima Sein und Zeit [Ser e Tempo], Martin Heidegger rejeitou a atemporalidade conforme estabelecida por Aristóteles, Parmênides e Tomás Aquino, e propôs o seguinte: “Nosso objetivo é a interpretação provisória do tempo como o horizonte possível para toda e qualquer compreensão do ser.”3 A realidade foi reinterpretada em termos de temporalidade.4

Seguindo essa linha de raciocínio, Deus não é visto como um Ser no qual há uma ausência de tempo, mas como um Deus que inclui o tempo em Seu Ser. Oscar Cullmann rejeitou a pressuposição da atemporalidade do Ser de Deus porque isso pertencia à antiga filosofia grega. Cullmann argumentava que a mente hebraica concebe que Deus vive em um tempo sem limite e não em uma forma abstrata, como se Ele estivesse além do tempo. Em sua análise exegética do uso da palavra grega aiôn no Novo Testamento, Cullmann conclui que o conceito bíblico de eternidade não é necessariamente uma realidade atemporal, mas uma experiência ilimitada de tempo. A eternidade não é atemporal, mas tempo sem fim – tempo linear partilhado por Deus e os seres humanos.5

De acordo com Norman Gulley, Fernando Canale resolveu a questão do relacionamento de Deus com o tempo. Canale sugeriu que “a ontologia bíblica clama por uma compreensão do tempo como uma pressuposição primordial”.6 Estabeleceu que, tendo como base a pressuposição bíblica do Ser de Deus, “surgirá um novo sistema teológico que, pela primeira vez, será livre de condicionamento extra-teológico”.7

Doutrina do homem

A doutrina do homem foi o ponto seguinte a ser mudado e reformulado por alguns teólogos atuais. Seguindo Aristóteles, Tomás Aquino tinha ensinado que os seres humanos eram animais racionais. Entretanto, em contraste com o filósofo grego, Aquino sustentava que a alma é separada do corpo na morte. Ele considerava que a alma não era corporal, entidade permanente que podia existir sem o corpo durante o período entre a morte da pessoa e a ressurreição geral.8

Um dos pioneiros que tentaram uma reformulação da influência filosófica grega sobre a antropologia foi Oscar Cullmann. Em um ensaio apresentado em 1955 na Universidade Harvard, Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead? The Witness of the New Testament, Culmann estabeleceu que o conceito da imortalidade da alma é “um dos maiores
mal-entendidos do cristianismo”.9 Ele também afirmou que a ressurreição da morte estava ancorada nos ensinamentos de Cristo e que é “incompatível com a crença grega na imortalidade”.10 Nesse sentido, os primeiros cristãos não consideravam a alma intrinsecamente imortal, mas que era imortal apenas por meio da ressurreição de Jesus Cristo e pela fé nEle. Junto a isso, Cullmann também negou a dualidade entre corpo e alma – um conceito que deriva do platonismo grego.

De uma perspectiva do Antigo Testamento, Hans Walter Wolff também chegou à conclusão de que não existe dualismo antropológico nas Escrituras. Ele estabeleceu que uma interpretação equivocada da terminologia antropológica da Bíblia tinha “levado na direção de uma antropologia dicotômica ou tricotômica, na qual, corpo alma e espírito estão em oposição mútua”.11 De acordo com Wolff, “a questão que ainda deve ser investigada é como, com a língua grega, a filosofia grega tem aqui suplantado as visões semitas bíblicas, sobrecarregando-as com influências estranhas”.12

Avanços atuais

Essa negativa do dualismo platônico em favor de uma visão integral dos humanos tem sido desenvolvida mais recentemente. Muitas vozes de diferentes linhas teológicas de pensamento estão proclamando uma mensagem semelhante. Clark Pinnock, ex-presidente da Evangelical Theological Society, por exemplo, afirma que “a crença helenística sobre a natureza humana que tem dominado o pensamento cristão” é “uma antropologia não bíblica”.13 Para ele, “a Bíblia não ensina a imortalidade natural da alma; em vez disso, ela aponta para a ressurreição do corpo como dom de Deus aos crentes”.14 G. C. Berkouwer argumenta que não há “divisão” antropológica nos humanos,15 porém, defende que esses existem num estado intermediário com Cristo depois da morte.16 Semelhantemente, enquanto Helmut Thielicke defende que “não há divisão entre corpo e alma”, ele também se inclina à ideia do estado intermediário.17

Tendo como base Lucas 24:36-49, Marilyn McCord Adams argumenta que o estado ideal não é o de uma alma independente desencarnada do corpo, mas o objetivo final é a ressurreição do corpo.18 De uma perspectiva psicológica, David Myers defende uma visão integral da pessoa. Ele estabelece que a visão bíblica de conhecimento é fundamentada na visão da pessoa como uma entidade integral, não com a dicotomia de mente e corpo.19 E de uma perspectiva filosófica de religião, baseada na lógica como uma disciplina, Eleonore Stump e Norman Kretzmann também argumentam contra a visão dualística cartesiana do ser humano.20

Um dos mais recentes avanços na compreensão deste assunto é a assim chamada visão constitucional, segundo a qual os seres humanos são constituídos por um corpo, mas não são idênticos ao corpo que os constitui, da mesma forma que uma estátua é constituída de bronze, mas não é idêntica ao bronze que a constitui.21 Semelhante a essa visão é a que é conhecida como “dualismo emergente”.22 Essa posição aceita que os seres humanos, bem como outros organismos, inicialmente consistem de nada mais que matéria física comum; entretanto, é adicionada a ideia de emergência. Essa ideia significa que quando os elementos de certos tipos são organizados corretamente, alguma coisa nova vem à existência, algo que antes não existia.

William Hasker, um dos proponentes dessa posição, faz um paralelo com um eletromagneto. Essencialmente, trata-se apenas de um rolo de arame. Mas, quando uma corrente elétrica atravessa o arame, algo novo aparece: um campo magnético. Esse campo exerce poderes casuais que não havia antes que ele fosse criado, habilitando-o a ativar o motor ou fazer algo funcionar. “Assim como o magneto gera seu campo magnético, um organismo gera seu campo de consciência.”23 Entretanto, desde que Hasker não quer ser confundido com o dualismo platônico, ele esclarece: “Assim, para o dualismo emergente, a vida eterna é inteiramente possível, mas virá por meio de um extraordinário e miraculoso ato de Deus, não como um atributo natural de uma ‘alma imortal’.”24

Tudo parece indicar que a visão dualística grega continuará a ser desafiada a partir de múltiplas perspectivas.25

Deselenização adventista

A teologia adventista começou com um processo de desconstrução da teologia tradicional. Esse processo surgiu como consequência de o próprio adventismo ter mudado dos condicionamentos filosóficos para estudar a Bíblia com base em seus próprios pressupostos. A mudança dos pioneiros adventistas também começou com a doutrina de Deus. Por exemplo, Tiago e Ellen G. White enfatizaram o conceito de “duas pessoas distintas, literais, tangíveis”26 da Divindade, em contraste com o Deus impessoal, teórico e abstrato da filosofia grega. Jerry Moon afirma o seguinte sobre isso: “Ela [Ellen G. White] rejeitou pelo menos três das pressuposições filosóficas presentes no trinitarianismo: (1) o dualismo radical de espírito e matéria, que concluía que Deus não podia ter uma forma visível; (2) a noção de impassibilidade, segundo a qual Deus não tinha paixões, sentimentos nem emoções, portanto não podia ter interesse nem simpatia para com os seres humanos; e (3) o dualismo do tempo e atemporalidade, que levava a noção de ‘geração eterna’, e ‘progressão eterna’. A rejeição dela a esses conceitos constitui-se um afastamento radical do dogma medieval da Trindade.”27

Desde seus primórdios, a igreja Adventista do Sétimo Dia também tem mantido uma visão monística do ser humano.28 Em sua defesa dessa visão, os pioneiros adventistas condenaram o dualismo antropológico como tendo sua origem na filosofia platônica.29 Para eles, “um elemento na apostasia da qual surgiu a besta [Ap 13], e que foi um poderoso impulso na formação dela, foi a adoção da filosofia pagã”, e um dos resultados disso foi a crença na “imortalidade da alma”.30 Citando o historiador Edward Gibbon, A. T. Jones argumentou que a ideia da imortalidade da alma chegou ao cristianismo por meio do dualismo platônico.31 Uriah Smith considerou que a ideia de uma alma “imaterial, sempre consciente, nunca morrendo” veio “de certas especulações de Sócrates e Platão”.32

Fazendo diferença

Um crescente número de protestantes e evangélicos tem abraçado a tradicional posição adventista sobre o monismo bíblico: “a posição segundo a qual todas as expressões da vida interior dependem da natureza humana completa, incluindo o sistema orgânico.”33 Entretanto, quando protestantes e evangélicos chegaram a essa compreensão antropológica, os adventistas a defendiam por muito tempo. A perspectiva teológica atual abre espaço para que a teologia adventista exerça um papel teológico efetivo.

Embora o protestantismo, em suas formas ortodoxas, tenha sido construído sobre as pressuposições ontológicas gregas, alguns eruditos discordam do dualismo platônico. Thomas Kuhn, médico e filósofo norte-americano, indicou que isso é uma anomalia que eventualmente deveria requerer mudança de paradigma.34 Essa mudança de paradigma já ocorreu na teologia adventista. Como povo da Bíblia, necessitamos entrar na arena teológica cristã e mostrar que o adventismo tem uma teologia confiável.

Referências:

  • 1 Adolf Von Harnack, History of Dogma (Boston, MA: Little, Brown and Co., 1902), v. 1, p. 48-60.
  • 2 Jürgen Moltmann, The Trinity and the Kingdon of God (Londres: SCM, 1892), p. 20-22.
  • 3 Martin Heidegger, Being and Time (San Francisco, CA: HapperCollins, 1962), p. 1.
  • 4 Heidegger também explica o tempo como horizonte transcendental da questão do ser. Ver Op. Cit., p. 65.
  • 5 Oscar Cullmann, Christ and Time: The Primitive Christian Conception of Time and History (Philadelphia, PA: Westminster, 1964), p. 49.
  • 6 Norman Gulley, Systematic Theology: Prolegomena (Berrien Spring. MI: Andrews University Press, 2003), p. 10.
  • 7 Fernando Canale, A Cristicism of Theology Reason: Time and Timelessness as Primordial Presuppositions (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1983), p. 399.
  • 8 Ver Marilyn McCord Adams, Philosophical Topics 20, nº 1 (1992), p. 1-33.
  • 9 Oscal Culmmann, em Imortality and Resurrection (Nova York: Macmillan, 1965), p. 9.
  • 10 Ibid.
  • 11 Hans Walter Wolff, Anthropology of the Old Testament (Londres: SCM, 1974), p. 7.
  • 12 Ibid.
  • 13 Clark H. Pinnock, em Four Views on Hell (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1996), p. 147.
  • 14 Ibid., p. 147, 148.
  • 15 G. C. Berkhouwer, Man: The Image of God (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1962), p. 265.
  • 16 Ibid.
  • 17 Helmut Thielicke, Living With Death (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1983), p. 173.
  • 18 Marilyin McCord Adams, The Expository Times 117, nº 6, (2006), p. 252.
  • 19 David Myers, The Human Puzzle (San Francisco, CA: Harper & Row, 1978), p. 125.
  • 20 Eleonore Stump and Morman Kretzmann, Faith and Philosophy 13, nº 3 (1996), p. 405-412.
  • 21 Kevin J. Corcoran, Rethinking Human Nature: A Christian Materialist Alternative to the Soul (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2006), p. 65.
  • 22 Aqui a palavra dualismo não é compreendida de modo platônico ou cartesiano, mas como oposta ao monismo meramente material, que apresenta os seres humanos como animais.
  • 23 William Hasker, em For Faith and Clarity: Philosophical Contributions to Christian Theology (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2006), p. 257.
  • 24 Ibid., p. 258.
  • 25 Ver Marco Blanco, Journal of Asia Adventist Seminary 15, nº 1 (2012), p. 108-112.
  • 26 James White, Day-Star, 24 de janeiro de 1846, p. 25; Ellen G. White, Primeiros Escritos, p. 54.
  • 27 Jerry Moon, Journal of the Adventist Theological Society 17, nº 1, (2006), p. 156, 157.
  • 28 Leroy Edwin Froom, The Conditionalist Faith of Our Fathers (Washington DC: Review and Herald, 1966), p. 646-740.
  • 29 Stephen Nelson Haskel, The Story of Daniel the Prophet (South Lancaster, MA: Bible Training School, 1901), p. 229.
  • 30 The Adventist Review and Sabbath Herald, nº 17 (1900), v. 77, p. 162; Alonso Trevier Jones, Ecclesiastical Empire (Batte Creek, MI: Review and Herald, 1901), p. 97.
  • 31 A. T. Jones, Vaily Bulletin of the General Conference, nº 10, 13 e 14 de fevereiro de 1893, p. 261.
  • 32 Uriah Smith, Here and Hereafter, or Man in Life and Death: The Reward of the Righteous and the Destiny of the Wicked (Battle Creek, MI: Review and Herald, 1897), p. 173.
  • 33 Aecio Cairus, em Handbook of Seventh-day Adventist Theology (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), p. 212.
  • 34 “Paradigm Shift”, Wikipedia, www.wikipedia.org/wiki/Paradigm_shift, acessado em 6 de abril de 2015.