Um panorama do debate teológico a respeito do local em que ocorre a expiação

Uma das questões que têm recebido muita atenção nas recentes pesquisas em Hebreus é: “A expiação na cruz foi completa?” Esse tema ganhou novo fôlego com a publicação da tese de David Moffitt, em 2011, sobre a relação entre a ressurreição e o conceito de expiação em Hebreus1 e, mais recentemente, com a obra de Robert Jamieson sobre a “oferta celestial” de Jesus em Hebreus.2

É verdade que a maioria dos estudiosos ainda reduz a expiação ao evento da crucificação, mas muitos autores não adventistas recentemente têm localizado a expiação como um evento que ocorre no Céu. O retrato do debate atual é: (1) a oferta celestial de Hebreus é apenas uma metáfora para a cruz (na Terra), ou (2) o livro retrata uma sequência sacrificial que começa na cruz e termina no Céu.

No meio evangélico, a segunda posição era considerada “socinianismo”.3 No entanto, Socino não inventou esse conceito bíblico, que foi defendido por muitos cristãos ao longo da história e tem encontrado muitos defensores atualmente. Robert Jamieson mapeou as principais visões acadêmicas sobre o assunto e identificou cinco posições principais, da quais duas entendem que a expiação ocorre no Céu.4 Este artigo apresenta um breve panorama das pesquisas sobre esse tema realizadas por autores não adventistas.

Santuário no Céu

Um número expressivo de pesquisadores tem afirmado que, em Hebreus, o santuário celestial é um lugar real, não um produto do idealismo platônico helenista,5 pois os “arquétipos celestiais têm existência real”.6

Para esses autores, a correspondência vertical entre o santuário terrestre e o celestial na literatura apocalíptica judaica sugere que o autor de Hebreus crê em um santuário celestial que tem dois compartimentos,7 assim como o santuário israelita, pois “o tabernáculo terrestre e suas ofertas são modelados sobre as realidades que existem no Céu”.8 Eles acreditam também que os destinatários originais de Hebreus estavam familiarizados com o conceito de um santuário no Céu com dois compartimentos, já que um santuário de dois compartimentos era “um componente básico e imutável em todas as estruturas do santuário do antigo Israel”.9

Em suma, o santuário celestial de Hebreus seria um conceito encontrado fartamente na literatura e no pensamento judaicos, especialmente no Antigo Testamento.10 A relação conceitual entre Hebreus, o Antigo Testamento e a literatura apocalíptica judaica torna possível concluir que Hebreus reflete o conceito de um santuário celestial real (não metafórico ou platônico), no Céu (não é o próprio Céu), com dois compartimentos, e onde há atividade sacerdotal, diferentemente do modelo judaico de um santuário escatológico inativo.

A mudança de paradigma começou em 1970, quando Ronald Williamson refutou a ideia de que Hebreus seria uma obra platônica/filônica, e os pesquisadores passaram a buscar outras fontes para servir como pano de fundo do livro.11 Portanto, continuar afirmando que Hebreus é um texto platônico parece ser mais uma opção pela defesa de uma pressuposição do que o resultado da análise das evidências fornecidas pelas pesquisas mais recentes.

Local da expiação

A ideia de que o sacrifício expiatório de Jesus foi uma realidade celestial pós-ressurreição é encontrada desde os primeiros séculos até perto do final do primeiro milênio, em autores como Irineu de Lyon, Hipólito de Roma, Orígenes, Gregório Nazianzeno,12 Teodoro de Mopsuéstia,13 Teodoreto de Ciro14 e Fócio de Constantinopla.15

Próximo do surgimento do adventismo, William e George Milligan, teólogos reformados do século 19, defenderam que precisamos olhar “para a oferta de Cristo como um todo”, e que a cruz era “a preparação necessária para essa obra, não a obra em si”. A “oferta da morte” devia ser completada com a “oferta da vida [o sangue]”, no Céu,16 e o “está consumado”, bradado por Cristo na cruz, refere-se à Sua obra consumada na Terra, não à expiação como um todo. Por isso, a ressurreição e glorificação de Jesus não foram apenas uma recompensa, mas parte do ato expiatório.17 Afinal, Ele “ressuscitou para a nossa justificação” (Rm 4:25), e há um outro brado de “Feito está!”, que sai exatamente do santuário celestial (Ap 16:17).

Ainda no século 19, Franz Delitzsch também argumentou que a obra da redenção “não se limitou ao momento em que a carne e o sangue estavam externamente separados na cruz”, mas a apresentação antitípica do sangue feita no Céu é a “conclusão eterna e o selo de ratificação da obra da redenção”.18 Como sumo sacerdote, Jesus tem uma oferta a fazer (Hb 8:3), e “o lugar de tal oferta não pode ser terrestre e, portanto, deve ser celestial”.19

Recentemente, tem ganhado força entre alguns teólogos o entendimento de que, em Hebreus, a expiação acontece no Céu.20 Para esses autores, a entrada de Jesus no santuário celestial é expiatória. Destacam que Cristo “entrou no Santuário, […] e obteve uma eterna redenção” (Hb 9:12), como afirmam as versões NVI, NAA e NVT, e não “entrou […], havendo obtido uma eterna redenção”, como trazem a ARA e a ACF. A ordem é importante: Jesus entrou no santuário, e assim obteve a eterna redenção, pois “o lugar de oferta de Cristo estava no Céu”.21 A entrada de Jesus no santuário celestial “também é um ato litúrgico, um componente de Seu sacrifício”22 e “um ato de grande sacrifício sacerdotal”.23

Dessa maneira, o sacrifício de Jesus não começa e termina na cruz, mas é um processo que inclui a cruz e o santuário celestial.24 Seguindo o modelo levítico de oferta sacrificial, um abate só será um sacrifício expiatório se o sangue for apresentado a Deus. Por isso, o que acontece após a morte da vítima é determinante para a “efetiva expiação no santuário celestial”.25 No ritual levítico, a ênfase não estava na imolação da vítima, mas na posterior manipulação do sangue, na queima e no ato de comer a carne sacrificada.26 Assim, em sentido amplo, a oferta de Cristo em Hebreus é entendida como “Sua vida, morte e entrada no Céu”.27

Hebreus “leva o evento sacrificial […] ao santuário celestial”, e é ali que ele “assegura a ‘eterna redenção’ (9:11-14)”.28 Dessa maneira, a “oferta expiatória de Jesus […] foi apresentada no tabernáculo celestial, não no mundo terrestre (Hb 8:2; 9:1-28)”.29 A lei exige que o sangue seja aspergido; no caso de Jesus, isso ocorreu “dentro da realidade celestial”, e “este não é um argumento abstrato”.30 Portanto, o sacrifício não visava unicamente à morte da vítima sacrificial, mas também à obtenção do sangue inocente para posterior aplicação.31

A morte voluntária de Cristo foi “o primeiro componente em um roteiro sacrificial maior”, que continuou em Sua ascensão ao Céu e Sua entrada no santuário celestial,32 e que, por sua vez, é “o principal lugar da realização cultual de Jesus, Sua oferta de sacrifício”.33 Ele oferece um sacrifício superior em um santuário superior.34

É preciso destacar que, ao colocar um holofote sobre o ministério sacerdotal de Cristo no santuário celestial, esses autores não estão diminuindo a importância da cruz: “A localização celestial da oferta de 
Jesus, no entanto, não significa que a morte de Jesus na Terra não é sacrificial”.35 O fato é que após morrer, Cristo “precisava ser ressuscitado e ascender ao Céu para oferecer Seu sangue no santuário celestial”,36 pois essa oferta celestial “leva à purificação dos crentes (e à purificação do santuário celestial)”.37

Nos textos de Hebreus em que a morte de Cristo é o sujeito (Hb 2:9-14; 5:7-10; 6:6; 9:15; 12:2; 13:11-13), o verbo prosférō (“oferecer”) e semelhantes não aparecem; e a entrada de Jesus no Céu é descrita com prosférō, como se fosse o evento crítico, em vez de Sua morte (Hb 9:7, 25, 28).38 A cruz é um “componente” do sacrifício de Cristo, que “permitiu Sua entrada no santuário celestial com Seu sangue”, e “o ato de sacrifício de Jesus inclui Sua apresentação do sangue de Seu sacrifício para Sua entrada no santuário celestial”.39 Como o lugar de expiação (hilastērion) é visto por esses autores como o trono divino, um “lugar de misericórdia” (Hb 4:16; 9:5, cf. Lv 16:2-14), então “Cristo fará expiação diante do trono da glória no templo eterno nos Céus”.40

Conclusão

É curioso que tantos autores não adventistas estejam defendendo algo muito semelhante ao que os adventistas ensinam há bastante tempo. Contudo, isso não significa que esses autores acreditem pessoalmente nisso nem que estejam defendendo a posição adventista. Eles apenas estão reconhecendo que o conceito de expiação em Hebreus aponta para uma obra efetuada no santuário celestial, após a cruz e a ressurreição.

Há, no entanto, uma diferença marcante entre o que eles ensinam e a crença adventista. Geralmente, esses autores creem que Hebreus esteja seguindo a sequência sacrificial do Yom Kippur. Portanto, eles veem o antitípico Dia da Expiação como algo já acontecendo nos dias do autor de Hebreus.41 Nesse Dia da Expiação escatológico, o sangue de Jesus é o que faz a “remoção da impureza dos pecados do santuário celestial”,42 pois a eliminação do pecado é feita pela aplicação de sangue inocente.43 Para eles, a entrada de Jesus no Santo dos Santos celestial (e não no santuário, como seria a melhor tradução de Hb 9:12) seria a consumação da sequência sacrificial do Dia da Expiação, que começou na cruz, mas cuja oferta se efetua mesmo é no Céu.44

Até onde foi possível analisar, esses autores não acreditam que Jesus desenvolve um ministério sacerdotal bifásico no santuário celestial. Essa parece ser uma das contribuições únicas do adventismo. O fato curioso é perceber a ascensão de tantas vozes afirmando que Hebreus traz as “atividades sacrificais celestiais de Jesus”.45 Em palavras muito parecidas com as que Ellen White utilizou para descrever a inauguração do ministério no santuário celestial,46 é dito que “Jesus entrou no reino celestial, aspergiu Seu próprio sangue no altar e foi entronizado ao lado de Deus, assegurando a ‘eterna redenção’ (Hb 9:11, 12)”.47 Esse panorama da pesquisa em Hebreus representa um convite aos adventistas para que exponham ainda mais ousadamente sua compreensão a respeito do ministério sumo sacerdotal de Cristo no santuário celestial, pois há crescente interesse no assunto, e a teologia adventista pode dar grande contribuição.  

Referências

1 David Moffitt, Atonement and the Logic of Resurrection in the Epistle to the Hebrews (Leiden: Brill, 2011).

2 Robert B. Jamieson, Jesus’ Death and Heavenly Offering in Hebrews (Cambridge: Cambridge University Press, 2021).

3 Fausto Socino foi um antitrinitariano que argumentou, em 1578, que Cristo não realizou a expiação na cruz, mas ao oferecer a Si mesmo no Céu após a ressurreição.

4 R. B. Jamieson, “When and where did Jesus offer Himself? A taxonomy of recent scholarship on Hebrews”, Currents in Biblical Research, v. 15, n. 3, 2017, p. 343.

5 S. D. Mackie, Eschatology and Exhortation in the Epistle to the Hebrews (Tübingen: Mohr Siebeck, 2007), p. 159; C. K. Barrett, “The Eschatology of the Epistle to the Hebrews”, em W. D. Davies; D. Daube (eds.), The Background of the New Testament and its Eschatology (Cambridge: Cambridge University Press, 1956), p. 388; cf. Jamieson, “When and where did Jesus offer Himself?”, p. 350.

6 O. Michel, Der Brief an die Hebraer (Güttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1966), p. 288.

7 Benjamin J. Ribbens, Levitical sacrifice and heavenly cult in Hebrews (Wheaton: Wheaton College, 2013, tese de doutorado), p. 142.

8 Moffitt, Atonement and the Logic of Resurrection, p. 224.

9 J. A. Barnard, The Mysticism of Hebrews: Exploring the Role of Jewish Apocalyptic Mysticism in the Epistle to the Hebrews (Tübingen: Mohr Siebeck, 2012), p. 110, 111.

10 Elias Brasil de Souza, O Santuário Celestial no Antigo Testamento (Santo André, SP: Academia Cristã, 2015).

11 Ronald Williamson, Philo and the Epistle to the Hebrews (Leiden: E. J. Brill, 1970). Ver também Barrett, “The Eschatology of the Epistle to the Hebrews”, p. 363-393; R. P. C. Hanson, Allegory and Event: A Study of the Sources and Significance of Origen’s Interpretation of Scripture (Richmond: John Knox Press, 1959).

12 David Moffitt, “Jesus’ heavenly sacrifice in early Christian reception of Hebrews: A survey”, Journal of Theological Studies, v. 68, n. 1, 2017, p. 54.

13 Alphonse Mingana (ed.), Commentary of Theodore of Mopsuestia on the Lord’s Prayer and on the Sacraments of Baptism and Eucharist (Cambridge: Heffer & Sons, 1933), p. 74, 78-83.

14 R. C. Hill (trad.), Theodoret of Cyrus: Commentaries on the Letters of St. Paul (Brookline: Holy Cross Orthodox Press, 2001), v. 2, p. 169, 172, 173, 175.

15 Moffitt, “Jesus’ heavenly sacrifice”, p. 54, nota 17.

16 G. Milligan, The Theology of the Epistle to the Hebrews: With a Critical Introduction (Edinburgh: T & T Clark, 1899), p. 152.

17 W. Milligan, The Resurrection of Our Lord (Nova York: Macmillan, 1917), p. 136, 141, 142.

18 Franz Delitzsch, Commentary on the Epistle to the Hebrews (Edinburgh: T&T Clark, 1887), p. 89.

19 Delitzsch, Commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 290.

20 Para uma exposição mais detalhada sobre esse tema, ver I. Malheiros, “Expiação: Na terra ou no Céu? Um panorama da pesquisa sobre o conceito de expiação celestial em Hebreus”, Kerygma, v. 12, n. 2, p. 73-103, 2018.

21 G. H. Guthrie, “Hebrews” , em G. K. Beale; D. A. Carson (eds.), Commentary on the New Testament Use of the Old Testament (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2007), p. 1131-1222, 1194.

22 R. D. Nelson, “He offered Himself: Sacrifice in Hebrews”, Interpretation, v. 57, n. 3, 2003, p. 256; D. A. DeSilva, Perseverance in Gratitude: A Socio-Rhetorical Commentary on the Epistle to “the Hebrews” (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2000), 
p. 305-307.

23 L. T. Johnson, Hebrews: A Commentary (Louisville, KY: Westminster John Knox, 2006), p. 222.

24 Jonhson, Hebrews, p. 71; Michel, Der Brief an die Hebraer, p. 293. Ribbens, Levitical Sacrifice and Heavenly Cult in Hebrews, p. 178, 179.

25 Nelson, “He offered Himself”, p. 255; cf. p. 54, 55, 254-256.

26 W. E. Brooks, “The perpetuity of Christ’s sacrifice in the epistle to the Hebrews”, Journal of Biblical Literature, v. 89, n. 2, 1970, p. 208, 209.

27 John H. Davies, “The heavenly work of Christ in Hebrews”, Studia Evangelica, v. 4, 1968, p. 387.

28 Mackie, Eschatology and Exhortation, p. 95; cf. J. J. Cervera i Vallis, “Gran sacerdot i víctima en Hebreus: Una teologia judeocristiana de la mediació i de l’expiació”, Revista Catalana de Teologia, v. 34, n. 2, 2009, p. 485.

29 G. H. Guthrie, Hebreos: Del Texto Bíblico a una Aplicación Contemporánea (Miami, FL: Vida, 2014), p. 217, cf. p. 106, 404.

30 A. N. Chester, “Hebrews: The final sacrifice”, em S. W. Sykes (ed.), Sacrifice and Redemption: Durham Essays in Theology (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), p. 65, 66.

31 I. Willi-Plein, “Some remarks on Hebrews from the viewpoint of Old Testament exegesis”, em G. Gelardini (ed.), Hebrews: Contemporary Methods – New Insights (Leiden: Brill, 2005), p. 33.

32 Nelson, “He offered Himself”, p. 254, 255.

33 S. D. Mackie, “Heavenly sanctuary mysticism in the epistle to the Hebrews”, The Journal of Theological Studies, v. 62, n. 1, 2011, p. 78.

34 E. F. Mason, You Are a Priest Forever: Second Temple Jewish Messianic and the Priestly Christology of the Epistle to the Hebrews (Leiden: Brill Academic Publication, 2008), p. 194, 195.

35 Ribbens, Levitical Sacrifice and Heavenly Cult in Hebrews, p. 145. Ênfase no original.

36 J. M. Vis, The Purification Offering of Leviticus and the Sacrificial Offering of Jesus (Durham: Duke University, 2012, tese de doutorado), p. 257.

37 Vis, The Purification Offering of Leviticus and the Sacrificial Offering of Jesus, p. 257.

38 Davies, “The heavenly work of Christ in Hebrews”, p. 386, 387.

39 Mason, You Are a Priest Forever, p. 35, 39.

40 T. Eskola, A Narrative Theology of the New Testament: Exploring the Metanarrative of Exile and Restoration (Tübingen: Mohr Siebeck, 2015), 
p. 390; cf. p. 226; Barnard, The Mysticism of Hebrews, p. 116.

41 Mackie, Eschatology and Exhortation, p. 95, 96; D. A. DeSilva, “The invention and argumentative function of priestly discourse in the epistle to the Hebrews”, Bulletin for Biblical Research, v. 16, n. 2, 2006, p. 308-311.

42 DeSilva, “The invention and argumentative function”, p. 308.

43 Willi-Plein, “Some remarks on Hebrews from the viewpoint of Old Testament exegesis”, p. 33.

44 Cervera i Vallis, “Gran sacerdot i víctima en Hebreus”, p. 479.

45 J. C. Calaway, The Sabbath and the Sanctuary access to God in the Letter to the Hebrews and Its Priestly Context (Tübingen: Mohr Siebeck, 2013), p. 28.

46 Ellen G. White, “With power and great glory”, Signs of the Times, 19/4/1905.

47 Calaway, The Sabbath and the Sanctuary, p. 76; cf. p. 155, 156.