A ‘aqedah de Isaque e o paradigma do amor

André Vasconcelos

Há pouco mais de um ano e meio, o Brasil ficou perplexo diante de um dos episódios mais tristes de sua história. No dia 13 de março de 2019, ocorreu um massacre na escola estadual Professor Raul Brasil, na cidade de Suzano, região metropolitana de São Paulo. A tragédia ceifou a vida de cinco alunos, duas funcionárias da escola, os dois assassinos e o tio de um deles.

Uma das vítimas foi Samuel Melchíades, de 16 anos. A história do jovem, que era membro da Igreja Adventista e integrante do Clube de Desbravadores, repercutiu na imprensa nacional. Isso porque, segundo a estudante Rafaela Macedo, amiga da vítima e testemunha dos fatos, Samuel teria salvado uma garota colocando-se na frente dela e impedindo-a de receber dois tiros.

Essa história de amor abnegado ilustra muito bem um acontecimento descrito em Gênesis 22: o sacrifício de Isaque. Embora Abraão tenha oferecido o filho amado como oferta ao Senhor, e não se entregado altruisticamente em lugar de outra pessoa como o jovem Samuel, ambos os relatos demonstram que o verdadeiro amor envolve sacrifício, resignação e entrega. Mas o que a experiência de Abraão e Isaque no Moriá tem a nos ensinar sobre o amor? Qual é a relevância desse assunto para nosso tempo?

Panorama interpretativo

O relato de Gênesis 22 tem inspirado teólogos e pensadores ao longo da história. Na tradição judaica, o sacrifício de Isaque é conhecido como ‘aqedat yitzchaq, que significa literalmente a “ligadura de Isaque”. Esse nome tem origem no verbo “amarrar”, do hebraico ‘aqad, usado em Gênesis 22:9.

Entre os intérpretes judeus, a ‘aqedah se tornou um exemplo supremo de lealdade a Deus e à Torá, mesmo diante do autossacrifício. Esse relato, mais do que qualquer outro, encorajou o povo judeu a enfrentar o martírio (kiddush HaShem) frente às perseguições romanas, cristãs e muçulmanas.1

Também se tornou um símbolo de expiação. O targum Neofiti, por exemplo, afirma: “E agora oro por misericórdia diante de Ti, ó Senhor Deus, quando os filhos de Isaque vierem a sofrer, lembrai-os da ‘aqedah de Isaque, seu pai, e libertai-os e perdoai-lhes os pecados” (Gn 22:14).2

O rabi Yishmael chega inclusive a comparar o sacrifício de Isaque com a oferta da Páscoa, cujo sangue deveria ser espargido sobre os umbrais das portas: “E quando Eu [o Senhor] vir o sangue? […] O que Ele viu? O sangue da ligadura de Isaque”.3

A ideia de expiação está tão presente na interpretação judaica de Gênesis 22 que esse texto se tornou parte da liturgia de Rosh Hashanah, o ano-novo judaico. Nesse dia de juízo, além de estudar o capítulo 22, os judeus oram: “Recorda, ó Eterno, nosso Deus, o pacto, a benevolência e o juramento que fizeste a Abraão, nosso pai, no monte Moriá, e quando Abraão, nosso pai, amarrou seu filho Isaque em cima do altar […]. Assim, subjuga Tua misericórdia à Tua cólera, e na Tua grande bondade, afasta do Teu povo o furor da ira.”4

Para os cristãos, a ‘aqedah está alinhada com o conceito de expiação, na medida em que aponta tipologicamente para o sacrifício de Jesus.5 Nesse caso, a prova de Abraão e Isaque no monte Moriá é interpretada como uma antecipação da experiência que Deus, o Pai, e Jesus, o Filho, vivenciariam no Calvário. Abraão teria sentido a angústia de entregar seu único filho como sacrifício, ao passo que Isaque teria experimentado o peso da separação do pai (Mt 27:46) e se entregado voluntariamente (ver Lc 23:46), assim como Jesus.

A influência desse relato também provocou intensa reflexão filosófica. Pensadores como Immanuel Kant, Søren Kierkegaard, Martin Buber e Emmanuel Lévinas escreveram sobre o assunto. Kierkegaard chegou a dedicar uma obra inteira, intitulada Temor e Tremor, para refletir sobre a experiência de fé perpetuada por Abraão, o “cavaleiro da fé”, no monte Moriá.

Esses exemplos são uma pequena amostra do impacto causado pela história do “sacrifício de Isaque” no pensamento religioso e filosófico. No entanto, algo chama atenção. Embora muito tenha sido escrito sobre o relato, poucos, como o escritor israelense Meir Shalev, no livro Beginnings: Reflections on the Bible’s Intriguing Firsts, se dedicaram a refletir acerca do amor nessa passagem.

Relato bíblico

A narrativa começa com a ordem divina para sacrificar Isaque, levando de uma vez por todas ao fim a odisseia espiritual de Abraão. O patriarca havia sido submetido a muitas provas severas desde que começara sua jornada com o chamado de Deus em Harã. Além de deixar tudo para trás e partir para uma terra estranha (Gn 11:31–12:1-3), enfrentou a fome (Gn 12:10), a guerra (Gn 14) e a dor de exilar seu filho Ismael (Gn 21:8-21).

Entretanto, nenhuma dessas experiências se igualou à provação narrada em Gênesis 22. No capítulo 12, Deus pediu a Abraão que deixasse sua terra, casa e família. No capítulo 22, o Senhor lhe pediu que sacrificasse seu filho amado e abandonasse a esperança de se tornar pai de uma grande nação, já que a promessa de posteridade estava vinculada à vida de Isaque.

O texto diz que Abraão deveria oferecer seu filho como holocausto na terra de Moriá. A segunda parte dessa ordem é similar à de Gênesis 12, na qual o Senhor também lhe pediu que fosse a uma terra. Essas passagens são unidas pela expressão “vai-te”, do hebraico lekh-lekha. Tal expressão, que funciona como uma moldura narrativa, ocorre somente em Gênesis 12:1 e 22:2 que são, respectivamente, a primeira e a última vez que Deus falou com o patriarca.

Algo curioso pode ser observado na ordenança registrada em Gênesis 22:2. O requerimento divino se parece mais com um pedido do que com um mandamento. Isso porque, no texto hebraico, a ação exigida por Deus – “toma teu filho” – é seguida pela palavra na’, “por favor”. Como Gordon Wenham observou, o uso dessa partícula enclítica é raro nas ordenanças divinas.6

O pedido de Deus é assustador e aparentemente cruel. Abraão não deveria simplesmente sacrificar o filho amado, mas oferecê-lo como holocausto. É importante relembrar que, nesse tipo de oferta, a vítima era esfolada, cortada em pedaços e totalmente queimada (Lv 1:1-17).

Isso deve ter quebrantado o coração do idoso patriarca. Ele, contudo, se submeteu ao pedido divino e disse: “Eis-me aqui” (Gn 22:1, 11). Kierkegaard retratou muito bem a atitude de Abraão diante desse cenário desolador: “Existiram grandes homens pela sua energia, sabedoria, esperança ou amor – porém Abraão foi o maior de todos: grande pela energia cuja força é fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é loucura, pela esperança cuja forma é demência, pelo amor que se resume em ódio a si mesmo.”7

Abraão fez os preparativos para a viagem e seguiu rumo à terra de Moriá. O fato de Sara não ser citada parece indicar que ela desconhecia os planos do marido. Talvez Abraão quisesse evitar que ela lançasse dúvidas sobre ele, como no caso da promessa do filho (ver Gn 16; 18:10-15).

Na sequência, Gênesis 22:3 sugere que não houve diálogo durante os três dias de peregrinação. O clima da viagem era pesado, com um nítido tom de angústia. Nahum Sarna constata que, na Bíblia, “três dias constituem um segmento significativo de tempo, particularmente em conexão com viagens”.8 Isso quer dizer que Abraão teve tempo suficiente para refletir no pedido de Deus e repensar sua atitude. Mesmo assim, o patriarca se manteve resoluto.

A parte final do verso 5 revela a esperança de Abraão de retornar com Isaque: “voltaremos para junto de vós”, disse o patriarca a seus servos. Abraão acreditava que, de alguma forma, Isaque voltaria com ele. Hebreus 11:19 confirma essa ideia ao mencionar que Abraão considerou que Deus era poderoso até para ressuscitar Isaque dentre os mortos.

Pai e filho se afastaram dos servos e foram até o monte Moriá. O ponto central da narrativa parece ser o diálogo entre Abraão e Isaque: “Quando Isaque disse a Abraão, seu pai: Meu pai! Respondeu Abraão: Eis-me aqui, meu filho! Perguntou-lhe Isaque: Eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto? Respondeu Abraão: Deus proverá para Si, meu filho, o cordeiro para o holocausto; e seguiam ambos juntos” (Gn 22: 7, 8).

O filho amado abriu o diálogo com as palavras “meu pai”, como se fosse um apelo ao sentimento paternal de Abraão. Parece que o idoso patriarca correspondeu a essa expectativa quando disse carinhosamente: “Eis-me aqui, meu filho”. Já a pergunta referente ao cordeiro “sugere uma ingenuidade que torna a ‘futura’ morte de Isaque ainda mais desoladora. Essa impressão é reforçada por sua dócil aceitação da resposta de Abraão, o que mostra que Isaque confiava inteiramente nas boas intenções do pai. Seria ele perspicaz o bastante para perceber através da resposta enigmática de seu pai que ele estava destinado a ser o cordeiro sacrificial? […] De qualquer forma, nossa apreciação pelo amor confiante que existia entre pai e filho é reforçada.”9

Isaque entendeu que ele era o sacrifício e se submeteu totalmente à vontade do pai. Embora arrasado, Abraão estava disposto a cumprir cabalmente a ordem divina. Não hesitou ao executar sua missão. Tinha fé que, de algum modo, Deus lhe restituiria o filho amado.

No momento crucial, quando estava prestes a tirar a vida do próprio filho, o quebrantado patriarca foi providencialmente impedido pelo Anjo do Senhor (v. 11, 12). Naquele instante, Abraão olhou para trás e “viu” um carneiro preso pelos chifres (v. 13); então entendeu que Deus providenciaria um substituto. Por isso chamou aquele monte de o lugar em que “o Senhor proverá”. Existe, porém, um detalhe que passa despercebido na tradução desse verso. O termo hebraico vertido ao português como “prover” é ra’ah, que significa literalmente “ver”. Abraão chamou aquele local de o lugar onde “o Senhor verá” porque foi ali que “viu” o carneiro preso pelos chifres.

Jesus fez referência a esse episódio quando disse que Abraão “alegrou-se por ver o Meu dia” (Jo 8:56). Essa observação legitima a abordagem judaico-cristã que enxerga no relato da ‘aqedah uma referência à expiação e demonstra a solidez da relação tipológica entre o Moriá e o Calvário.

Embora o texto afirme duas vezes que pai e filho caminharam “juntos” (Gn 22:6, 8), o narrador parece indicar que houve um cisma entre eles após aquele episódio. Isso fica evidente no verso 19. Abraão foi sozinho ao encontro dos servos, contrariando seu desejo anterior (v. 5), e retornou “junto” com eles para Berseba. Ou seja, Abraão voltou com os servos e não com o filho amado.

Isaque reaparece na história somente em Gênesis 24:62, habitando no Neguebe, possivelmente em Beer-Laai-Roi (ver Gn 16:14). O deserto do Neguebe ficava localizado um pouco mais ao sul de Berseba, o local em que Abraão havia fixado residência (Gn 22:19). Portanto, o texto sugere que, depois daquele episódio, Abraão tomou uma direção e Isaque outra.

Dessa maneira, o episódio ocorrido no monte Moriá é um tipo da experiência do Calvário. Ambos os montes presenciaram um pai amoroso que entregou o filho como sacrifício, assim como um filho separado do pai que se submeteu irrestritamente à vontade dele.

Primeiro amor

Toda a tensão vivenciada no Moriá torna a declaração de Gênesis 22:2, “toma teu único filho, Isaque, a quem amas”, ainda mais impressionante. É nesse contexto de sacrifício, entrega e separação que o verbo “amar”, no hebraico ’ahav, é empregado pela primeira vez na Bíblia. Curiosamente, esse termo não é usado para se referir ao amor de um homem por uma mulher nem ao amor de uma mãe pelos filhos, mas ao amor de um pai por seu filho único.

Mais interessante ainda é o fato de essa declaração não ser atribuída a Abraão nem ao narrador, mas ao próprio Deus. Meir Shalev foi muito feliz ao compará-la com o relato da criação.10 Na prerrogativa de criador, o Senhor é quem atribui nome às obras de Sua mão. Assim como chamou a luz de “dia” e as trevas de “noite”, a porção seca de “terra” e o ajuntamento das águas de “mares”, Ele chamou o sentimento de Abraão pelo filho de “amor”.

Deus é quem define o que é amor. Para Ele, “amor” equivale ao sentimento do pai pelo filho. Isso quer dizer que o Senhor materializou todo o afeto de Abraão por Isaque, o filho que o patriarca tanto havia almejado e esperado, na palavra “amor”. Esse é o paradigma do amor nas Escrituras.

Hoje, muitas pessoas confundem o amor verdadeiro com permissividade e complacência. Por um lado, é fato que o amor de Deus, expressão máxima do amor genuíno, não está condicionado à obediência (Rm 5:8); por outro, como exemplificado no “sacrifício de Isaque”, o amor não deve ser uma barreira para agir em harmonia com a palavra do Pai Celestial.

É cada vez mais comum ouvir cristãos influentes rebaixarem a necessidade de uma vida pautada pelas Escrituras. Mudança de hábitos e transformação de vida são encaradas como imposições arbitrárias de uma religião que se opõe ao “amor” de Deus. Frases como “se a religião te faz mal, ela não pode ser de Deus” ou “Jesus é leve” desconsideram o verdadeiro significado do amor na Bíblia.

Ao contrário dessa ideia, a “ligadura de Isaque” nos ensina que o amor envolve resignação, entrega e sacrifício; que o sentimento não deve ser um empecilho para viver em conformidade com a Palavra de Deus. Também nos revela que amar, às vezes, pode ser uma experiência dolorosa e angustiante. O conceito bíblico de amor, no entanto, não parece agradar aqueles que buscam uma definição do termo em meios puramente seculares e até mesmo profanos.

Abraão, por meio de uma ação simbólica, vivenciou como ninguém a verdadeira e divina experiência de amar incondicionalmente. O amor revelado no Moriá foi uma antecipação miniaturizada do amor eternizado no Calvário, que extrapolou a dimensão pai-filho e alcançou toda a humanidade: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo o que Nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3:16).

O relato da ‘aqedah, assim como a experiência do jovem Samuel, ilustra e exemplifica o amor divino demonstrado no Calvário. Amar, à luz da cruz de Cristo, é entregar o melhor; é abrir mão do próprio desejo; é se submeter à vontade de Deus. Como disse o apóstolo João, “nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou e enviou Seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4:9, 10). Portanto, concluiu João, “se Deus de tal maneira nos amou, devemos nós também amar uns aos outros” (v. 11). Isso é o que Ele espera de cada um de nós!

A “ligadura de Isaque” nos ensina que o amor envolve resignação, entrega e sacrifício; que o sentimento não deve ser um empecilho para viver em conformidade com a Palavra de Deus.

Referências

1 Nahum M. Sarna, The JPS Torah Commentary: Genesis (Filadélfia, PA: Jewish Publication Society, 1989), p. 394.

2 Ver Jubileus 17:15 e 49:1.

3 Mekilhta do Rabbi Yishmael, Êxodo 12:13, disponível em https://www.sefaria.org/Mekhilta_d’Rabbi_Yishmael.12.13?lang=bi.

4 Jairo Fridlin e Vitor Fridlin (eds.), Marzor Completo (São Paulo: Sêfer, 1997), p. 204.

5 Ver Epístola de Barnabé 7:3; Melito de Sardes, Catena Sobre Gênesis (Alexander Roberts, James Donaldson e A. Cleveland Coxe, The Ante-Nicene Fathers: Translations of the Writings of the Fathers Down to A.D. 325 [Oak Harbor: 1997], v. 8, p. 759); Irineu, Contra Heresias 4.5.4 (Roberts, Donaldson e Coxe, v. 1, p. 467); Tertuliano, Resposta aos Judeus 10 (Roberts, Donaldson e Coxe, v. 3, p. 164), Contra Marcião 3.18 (Roberts, Donaldson e Coxe, v. 3, p. 336).

6 Gordon J. Wenham, Word Biblical Commentary: Genesis 16-50 (Dallas, TX: Word, 2002), p. 104.

7 Søren Kierkegaard, Temor e Tremor (São Paulo: Hemus, 2008), p. 12.

8 Sarna, p. 151. Ver Gn 31:22; 42:18; Êx 3:18; 15:22;

Nm 10:33; 33:8; Jn 3:3.

9 Wenham, p. 108.

10 Meir Shalev, Beginnings: Reflections on the Bible’s Intriguing Firsts (Nova York: Harmony Books, 2011), p. 16, 17.

André Vasconcelos, editor na Casa Publicadora Brasileira