A pessoa e a obra de Cristo manifestas no Antigo Testamento

Toda a Escritura é inspirada por Deus” (2Tm 3:16). Esse versículo resume um princípio de interpretação denominado Tota Scriptura, que destaca o valor de todos os livros que integram as Sagradas Escrituras e refuta a ideia de conceder graus de inspiração entre eles ou de estabelecer um “canon” dentro do Canon. Toda a Bíblia, e não somente uma parte dela, é inspirada por Deus. Esse preceito, juntamente com o da Sola Scriptura, sempre esteve no centro do desenvolvimento doutrinário adventista, e constitui uma premissa indispensável para a correta compreensão do Texto Sagrado.1 Apesar disso, nem sempre é fácil integrá-lo à práxis da vida cristã. Há um problema que ressurge de vez em quando: Que utilidade tem o Antigo Testamento (AT) para os cristãos?

Uma visão distorcida

Certa vez, um grupo de jovens me mostrou uma Bíblia. Percebi que ela era mais fina do que as que eu conhecia, não porque suas letras fossem menores, mas simplesmente porque era uma versão incompleta. Continha somente o Novo Testamento (NT) e o livro de Salmos. Muitos cristãos defendem que apenas o NT é suficiente para pregar o evangelho e apresentar a doutrina cristã. Consideram o AT ultrapassado, abolido e têm pouco interesse em examinar suas páginas. Assim, abrem mão dele. O problema se agrava ainda mais quando se aceita certa dicotomia entre as descrições de Deus presentes em ambos os Testamentos. Em um deles, um Senhor irado e justiceiro. No outro, um Pai amoroso e perdoador. No segundo século depois de Cristo, um cristão de origem grega já havia enfatizado essa distinção. Marcião rejeitou todo o AT e os livros do NT que se vinculavam mais diretamente a este. Tirar o AT da Bíblia é uma postura radical, porém, não é a única maneira na qual se manifesta o problema.

Quando aceitei a fé cristã, com minha mãe, lembro-me de como ela se esforçava todos os anos para fazer seu ano bíblico. No entanto, logo desanimava após chegar ao livro de Levítico ou, no melhor dos casos, ao primeiro livro de Crônicas. A luta que minha mãe enfrentava é a mesma que muitos cristãos experimentam atualmente. Eles aceitam o AT como Palavra de Deus, mas acham-no complicado e enfadonho. Para resolver esse problema, recorrem a uma leitura seletiva, ou seja, leem somente aquilo que julgam agradável ou interessante.

Trabalhei por algum tempo no Ministério Jovem. Certa ocasião, alguém fez a proposta de um novo modelo de ano bíblico para os estudantes em nossas escolas. Era uma versão resumida e, o “promotor”, ao fazer o lançamento do projeto, enfatizou que os alunos certamente iriam apreciar, pois, todas as partes maçantes da Bíblia haviam sido tiradas!

A leitura seletiva das Escrituras não é uma proposta de todo errada. Ela é uma excelente opção para quem está começando a estudar a Bíblia. O problema é quando isso se prolonga por toda a vida, e piora quando se torna normativo.

A leitura seletiva das Escrituras não é uma proposta de todo errada. Ela é uma excelente opção para quem está começando a estudar a Bíblia. O problema é quando isso se prolonga por toda a vida, e piora quando se torna normativo.

A partir dessas considerações, nota-se a dificuldade que muitos cristãos enfrentam em relação ao AT. No entanto, sua compreensão é fundamental para a doutrina e a missão da igreja.

A hermenêutica de Jesus

Ao longo do Seu ministério, Cristo constantemente dirigiu Seus ouvintes às verdades expostas no AT. Respondeu às tentações com um “está escrito”, e aproveitou cada oportunidade para recordar algo do que estava na Bíblia Hebraica. Contudo, não Se limitou somente a isso. Ele declarou que era o cumprimento das Escrituras, de modo que elas davam testemunho Dele (Jo 5:39). Foi devido a essa regra hermenêutica que Jesus pôde dizer um sábado, na sinagoga, após ler Isaías 61:1 e 2: “Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir” (Lc 4:21). Do mesmo modo, assegurou com convicção que Abraão viu o Seu dia (Jo 8:56) e que Moisés escreveu a respeito Dele (Jo 5:46, 47). Após toda a consternação sofrida na cruz, Jesus disse a dois discípulos no caminho para Emaús: “Porventura, não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na Sua glória? E, começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a Seu respeito constava em todas as Escrituras” (Lc 24:26, 27, grifos acrescentados). Em outra ocasião, voltou a reiterar: “São estas as palavras que Eu vos falei, estando ainda convosco: importava que se cumprisse tudo o que de Mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24:44, grifos acrescentados). Ambas as referências aludem à totalidade do AT, tal como havia sido preservado no canon judaico.2

Desse modo, é possível afirmar que o AT possui muitos símbolos e profecias que revelam antecipadamente a vida e obra de Jesus. No entanto, Cristo não aparece no AT somente como uma figura ou promessa de alguém que viria à Terra.

Mais do que um símbolo

A preexistência de Jesus é um ensinamento básico da doutrina cristã.3 Entretanto, em determinadas ocasiões, parece que tal ensino foi compreendido como se fosse uma mera abstração teológica, e que essa preexistência situava o Filho de Deus no Céu, separado da realidade humana, aguardando o momento para entrar na história somente a partir de Seu nascimento. Nada é mais distante da realidade!

Quando Paulo falou da peregrinação de Israel no deserto, afirmou que os israelitas “bebiam de uma pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo” (1Co 10:4). Pedro declarou que aos profetas foram revelados pormenores da vida de Jesus, pois o próprio “Espírito de Cristo, neles estava” (1Pe 1:10-12).

“Em todas estas revelações da presença divina, a glória de Deus se manifestava por meio de Cristo. Não somente por ocasião do advento do Salvador, mas através de todos os séculos após a queda e promessa de redenção, ‘Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo’ (2Co 5:19). Cristo era o fundamento e centro do sistema sacrifical, tanto da era patriarcal como da judaica. Desde o pecado de nossos primeiros pais, não tem havido comunicação direta entre Deus e o homem. O Pai entregou o mundo nas mãos de Cristo, para que por Sua obra mediadora remisse o homem, e reivindicasse a autoridade e santidade da lei de Deus.”4

“Desde o pecado de Adão, a raça humana estivera destituída da comunhão direta com Deus. A comunicação entre o Céu e a Terra era feita por meio de Cristo; mas agora que Jesus viera ‘em semelhança da carne do pecado’ (Rm 8:3), o próprio Pai falou. Antes, Ele tinha Se comunicado com a humanidade por intermédio de Cristo; agora fazia-o em Cristo.”5

“Todo raio de luz divina que já atingiu o nosso mundo decaído, foi comunicado por meio de Cristo. É Ele que tem falado por intermédio de todos os que, em todos os tempos, têm declarado a Palavra de Deus ao homem. Toda a excelência manifestada nas maiores e mais nobres almas da Terra, era reflexo Dele.”6

Essas citações rompem com qualquer dicotomia entre o Deus do AT e o do NT, lei e graça, antigo e novo pacto. Desde que o ser humano caiu em pecado, foi Cristo, a segunda pessoa da Divindade, quem Se ofereceu como mediador entre Deus, o Pai, e a humanidade condenada. A mesma voz que ensinou por meio de parábolas junto ao mar da Galileia, é a voz que falou “muitas vezes e de muitas maneiras” por intermédio dos profetas que escreveram os livros do AT. Jesus esteve constantemente ativo e presente na história de Seu povo. Muitos puderam contemplá-Lo visivelmente como o Anjo do Senhor, 7 Miguel ou outra teofania. Cada vez que estudamos o AT temos a possibilidade de escutar a mesma voz terna do nosso Salvador. Podemos compreender como Ele cuidou do Seu povo ao longo de todas as épocas, valorizar a santidade da Sua lei, a gravidade do pecado e o enorme preço que custou nossa salvação.

“Em todas estas revelações da presença divina, a glória de Deus se manifestava por meio de Cristo. Não somente por ocasião do advento do Salvador, mas através de todos os séculos após a queda e promessa de redenção, ‘Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo’ (2Co 5:19).”

Os 66 livros que compõem a Bíblia chegaram às nossas mãos manchados com o sangue dos profetas, apóstolos e mártires que durante séculos entregaram sua vida para registrar e preservar aquilo que temos herdado. Deus, em Sua providência, deixou-nos esse legado escrito como um registro fidedigno de Sua verdade. Temos a sagrada responsabilidade de esquadrinhar “todas” as Escrituras, já que nelas encontramos a única salvaguarda para os tempos difíceis que ainda virão. A compreensão de toda verdade revelada na Palavra de Deus requer esforço e dedicação, mas, principalmente, a iluminação do Espírito Santo.

Portanto, o AT e o NT são duas janelas que mostram duas perspectivas diferentes da mesma paisagem: Cristo e Sua obra. 

Referências

  • 1 Richard M. Davidson, “Interpretación bíblica”, Tratado de Teología Adventista Del Séptimo Día (ACES, 2009), p. 68-79; Frank M. Hasel, “Presuposiciones en la interpretación de las Sagradas Escrituras”, Entender las Sagradas Escrituras, ed. George W. Reid (ACES, 2010), p. 33-57.
  • 2 Divisões do canon hebraico: Torah (Lei), Nebi’im (Profetas) e Ketubim (Escritos). O livro de Salmos era o primeiro e principal da terceira seção, por isso nomeava toda ela.
  • Mq 5:2; Jo 1:1; 8:58; Cl 1:15-17.
  • 4 Ellen G. White, Patriarcas e Profetas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 366.
  • 5 Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 116.
  • 6 Ellen G. White, Educação (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016), p. 73.
  • 7 Vários comentaristas têm identificado esse Ser como o Cristo pré-encarnado (Gn 18; 32:24, 30; Êx 3; 23:20, 21; 32:34; 33:14; Js 5:13-15; Jz 13; Dn 3:25; 10:1-9; Zc 3:1,2; Ml 3:1).