Como e por que a liderança da igreja pós-apostólica se afastou das crenças e práticas das Escrituras
Quando mencionamos a história da igreja, pensamos no período do Novo Testamento, na Reforma, ou nos tempos atuais. Porém, não podemos esquecer a era pós-apostólica imediata, vital para a formação do cristianismo. Lições daquele período devem levar líderes cristãos de volta à Palavra e, especialmente, a seu Autor.
No fim do primeiro século, todos os apóstolos estavam mortos. Haviam completado seu trabalho, tinham dado a vida proclamando que o Salvador havia ressuscitado dos mortos.
Tudo parecia funcionar bem, apesar da forte oposição dos romanos, das filosofias pagãs e dos ataques culturais. Mas, algumas das maiores ameaças enfrentadas pela igreja surgiam dentro dela mesma, de “lobos vorazes” mencionados por Paulo (At 20:29). As cartas desse apóstolo são evidências de primeira mão de que os lobos atuavam e sérias divisões ameaçavam a igreja.
Ataques filosóficos
Dois fortes ataques filosóficos afetaram a igreja primitiva: Gnosticismo e docetismo. Os gnósticos eram dualistas cujo ensinamento dizia que o espírito era bom e a matéria, má. Consequentemente, o corpo era mau e a alma era boa. O corpo era mortal. Mas, adquirindo conhecimento especial (gnosis), depois da morte, a alma deixaria o corpo e teria vida imortal, no Céu. Somente poucos privilegia- dos poderiam ter o conhecimento especial provedor dessa liberdade, e esse conhecimento estaria escondido na Bíblia, em tipos, símbolos e mistérios.
As ideias gnósticas estavam presentes nos tempos do Novo Testamento, o que inclusive motivou o conselho de Paulo a Timóteo para que evitasse “conversas inúteis e profanas e as ideias contraditórias do que é falsamente chamado conhecimento” (1Tm 6:20). As posições gnósticas foram combatidas longa e arduamente por líderes pós-canônicos, desde Inácio a Tertuliano.
Intimamente relacionado ao gnosticismo estava o docetismo, que também ensinava que o corpo era mau; na verdade, tão mau que Jesus não teria tido um corpo real porque Ele era Deus. A aparência e experiências humanas de Jesus eram apenas ilusão; inclusive Ele nem teria morrido na cruz. Esses falsos ensinamentos influenciaram alguns cristãos primitivos, mesmo no período apostólico, de tal modo que eles duvidavam da realidade da encarnação. Por isso, em sua primeira carta, João mencionou que escrevia a respeito do Jesus real, “o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam” (1Jo 1:1). Pouco depois, Inácio de Antioquia também argumentou sobre a realidade de “Jesus Cristo… que realmente [alethos] nasceu, alimentou-Se e bebeu; que realmente foi perseguido por Pôncio Pilatos, que realmente foi crucificado e morto… que, além disso, realmente ressuscitou da morte”.1
A palavra traduzida como “realmente” é também raiz da palavra aletheia, significando “verdade”. Assim, Inácio e outros defenderam que a encarnação corporal, crucifixão e ressurreição de Jesus foram reais e verdadeiras.
As ideias gnósticas e docetistas foram propagadas por meio de muitos “evangelhos” e vasta literatura que surgiram no cristianismo a partir do segundo século. Conforme um texto daquela época, falando sobre a crucifixão, Jesus teria dito o seguinte: “Foi uma brincadeira, digo-vos, foi uma brincadeira.”2 Então, teria zombado dos cristãos que “proclamam a doutrina de um Homem morto”.3
Gnosticismo e docetismo foram ideias muito populares na igreja, porque pareciam ter sentido. Se a salvação era tão especial, então a pessoa necessitava saber coisas especiais a fim de ser salva. Se Jesus era Deus, então não havia maneira pela qual Ele realmente tivesse entrado neste mundo mau. Desde que a carne é matéria e, portanto, é má, dizer que Jesus Se encarnou implicaria que Ele Se tivesse tornado pecaminoso. Consequentemente, Jesus não teria sido realmente humano. Todos esses ensinamentos estavam alinhados com os paradigmas intelectuais e culturais da época, e somente pessoas supostamente “ignorantes” discordavam deles.
Assim, as duas correntes causaram sérias consequências ao cristianismo. Buscar o significado claro das Escrituras já não parecia bom para muitos cristãos. Se apenas pessoas especiais podiam ter acesso ao conhecimento especial, então era importante aprender somente delas, desde que tinham a chave para a salvação. Se o corpo era mau, que necessidade havia para a ressurreição dele? Em vez disso, a alma ascendia imediatamente ao Céu. De fato, não havia necessidade da segunda vinda de Jesus, desde que não somente o corpo, mas todo o mundo era mau. Se Jesus não havia morrido nem ressuscitado, então isso não podia ser a base da salvação, e o foco mudava para o que os seres humanos tinham a conhecer e o que tinham que fazer para ser salvos. Dessa maneira, a verdade da justificação pela fé estava obscurecida.
“Pressão popular, números e votos não decidem o que é a verdade. A Palavra do Senhor deve reinar suprema”
Por essa razão, os “pais da igreja” tiveram um difícil trabalho em defesa do evangelho, conforme foi proclamado pelos apóstolos. Entretanto, no geral, eles enfrentaram o desafio, e escritores como Justino Mártir, Teófilo, Irineu e outros construíram fortes defesas dos ensinos do Novo Testamento, sobre temas como a natureza da humanidade, o estado dos mortos e o fim do mundo. Porém, mesmo nesses escritos, foram lançadas sementes de futuros problemas.
A forma pela qual eles interpretavam as Escrituras era parte do problema. Muitos deles, à semelhança de Clemente e Orígenes, viam a Bíblia como tendo vários níveis ocultos de significado requerendo interpretações que, às vezes, eram muito forçadas. Abandonando o fundamento claro e literal para compreensão da Bíblia, eles descartaram os limites hermenêuticos que dirigiram os escritores do Novo Testamento. Orígenes, por exemplo, foi bem conhecido por seu método alegórico de interpretação. A simples narrativa da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (Mt 21:1-7), nas mãos de Orígenes, tornou-se um veículo para alegorizar que o jumento era o Antigo Testamento e o potro era o Novo Testamento.4 Embora seja possível encontrar o método alegórico de interpretação no Novo Testamento, seus autores expuseram uma hermenêutica restrita e consistente que está ausente em Orígenes e em outros pais alexandrinos.5
Além dos métodos de interpretação, os líderes da igreja enfrentaram outro problema: Estando engajados com os intelectuais da época, na defesa da fé, eles obviamente usavam a linguagem e as ideias filosóficas de seu tempo. Esse engajamento não foi o problema. A questão foi que, ao fazer assim, eles gradualmente absorveram mais e mais daqueles paradigmas filosóficos, intelectuais e culturais. De fato, alguns desses pais da igreja, como Atenágoras e Clemente, consideravam Platão um cristão honorífico, usado por Deus a fim de preparar o caminho para o cristianismo.
Uma igreja morta
A igreja cresceu rapidamente e muitos pagãos foram batizados. Essas pessoas professavam o cristianismo, porém eram essencialmente pagãs em suas crenças e seu estilo de vida. No fim do segundo século, a grande maioria dos professos cristãos no Império Romano não se reunia em templos nem nas igrejas em casa, mas em cemitérios, e celebravam a Ceia do Senhor em sepulturas, em meio a noitadas de embriaguez.6
Até mesmo alguns pagãos ficavam chocados com o comportamento desses cristãos, pois as pessoas civilizadas iam aos templos para orar. Temos o relatório de um prefeito pagão de uma cidade norte-africana que, referindo-se ironicamente aos cristãos, mencionou os cemitérios como lugares “onde todos vocês fazem suas orações”.7 Muitas das primeiras basílicas cristãs, incluindo a Basílica de São Pedro, foram construíras sobre cemitérios.8
Por que os cristãos faziam isso? A razão é simples: Eles estavam apenas praticando o culto tradicional aos mortos, como sempre haviam feito quando eram pagãos. Na mente, eles criavam sua própria mistura de cristianismo com o estilo de vida e crenças do paganismo.
Durante 200 anos, os líderes da igreja toleraram esse culto “cristão” aos mortos, porque pouco eles podiam fazer. Quando começaram a escrever contra ou excomungar a prática, era muito tarde. A maioria das pessoas não dava ouvidos. Estavam acostumadas com o que então era simples tradição “cristã”. Quando Agostinho, bispo de Hipona, tentou reformar essas práticas, o povo se queixou: “Por que agora? Aqueles que permitiram isso no passado certamente não eram pagãos.”9 Eventualmente, bispos como Ambrósio e Agostinho decidiram usar outra estratégia: em vez de banir as práticas populares, manteriam tudo sob controle.10 Assim o culto semi-cristão aos mortos foi transformado no culto oficial aos santos. A oferta da Ceia do Senhor nas sepulturas dos santos se tornou a oferta da Missa pelos mortos no altar das grandes igrejas, sobre o corpo dos santos que haviam sido sepultados novamente.11
As mudanças físicas progressivas no culto, realizadas nos séculos 4 e 5, corresponderam à aceitação de mudanças para os ensinos da igreja. Mas esses “novos” ensinamentos foram aqueles nos quais a maioria dos cristãos havia crido durante muito tempo. O culto aos santos levou a igreja a reduzir seu foco sobre a ressurreição na segunda vinda de Jesus, considerando que os mártires e santos já estavam no Céu com Deus; e a maioria dos cristãos acreditava que, quando eles morressem, iriam se juntar àqueles mártires e santos. Com isso, a igreja também renunciou à sua longa batalha contra o dualismo platônico. E se os santos e mártires intercediam no Céu, então a ideia de Jesus como nosso Intercessor foi rebaixada, desde que havia outros meios de salvação com os quais as pessoas podiam se relacionar.12 Os méritos humanos, em termos de agradar aos santos na vida pós- morte, começaram a ganhar mais e mais importância no cristianismo. De fato, a igreja necessitou encontrar formas para interpretar a Bíblia, porque as antigas não funcionavam para os tempos “modernos”.
A grande pergunta é: Depois de ter lutado contra essas coisas por mais de 200 anos, por que os líderes da igreja cederam tanto? Por que eles traíram as crenças do Novo Testamento, anteriormente estabelecidas e defendidas com muita luta? Os fatos de que eles interpretavam a Bíblia alegoricamente e que haviam absorvido muito dos paradigmas filosóficos de seus dias podem ser contados como fatores que levaram à capitulação, mas não explicam tudo.
Em última instância, não foram essas coisas nem gnosticismo ou docetismo que causaram a derrocada. A razão fundamental pela qual os líderes da igreja naufragaram pode ser encontrada nos números. Quando viram que os pontos de vista populares poderiam ganhar, eles tomaram o caminho mais fácil. A falta de coragem andou de mãos dadas com o desejo de ser aclamados pelas pessoas. Acomodaram-se aos pontos de vista e práticas do grande número de membros da igreja.
Lições da História
Houve pessoas corajosas que protestaram. Vigilantius foi uma dessas pessoas. Ele se opôs na Itália à prática cristã do culto aos mortos. Como resultado, Jerônimo o chamou de “insano”.13 Nada do que ele escreveu foi preservado, e tudo o que se sabe a respeito dele é proveniente dos escritos de seus inimigos. Mas, em todas as épocas, o povo de Deus tem permanecido firme em favor do que é certo, e sabemos que Ele terá um povo fiel até o fim da história do mundo.
É importante que os cristãos se lembrem de que, fundamentalmente, as pessoas ainda são as mesmas. Elas desejam aceitação e popularidade. Sempre é mais fácil aceitar o ponto de vista da maioria, mas é preciso coragem para que os líderes cristãos permaneçam em defesa dos princípios da Palavra de Deus. Se houve um tempo em que líderes cristãos capitularam no erro, hoje eles devem permanecer ao lado de Deus.
De todas as importantes lições que devemos aprender da igreja cristã, uma se destaca: Pressão popular, números e votos não decidem o que é a verdade. Muito menos o faz a eminência das pessoas que defendem e querem impor seus pontos de vista particulares. Não é a antiguidade de crenças e práticas que decide o que é a verdade. A Palavra do Senhor deve reinar suprema. Jesus deve ser o Senhor em nossa vida e na vida da igreja. Esse conceito não é menos relevante para a igreja hoje, do que foi quando viveram os apóstolos.
Referência:
- 1 Inácio, em The Apostolic Fathers: Greek Texts and English Translations, ed. Michael W. Holmes (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2007), p. 220, 221.
- 2 Marvin Meyer, trad., The Second Discourse of Great Seth, 60.13, em The Nag Hammadi Scriptures: The Revised and Update Translation of Sacred Gnostic (Nova York: Harper Collins, 2008), p. 482.
- 3 Ibid., 60.20, p. 482.
- 4 Orígenes, Commentary on the Gospel of John, v. 10, p. 18.
- 5 Algumas parábolas de Jesus, como a parábola do semeador (Mc 4:1-20), são interpretadas alegoricamente. Paulo também usou interpretações alegóricas em muitas partes da epístola aos gálatas (Gl 4:21-31).
- 6 Ver Cartas de Agostinho, 29, p. 10, 11; Sermon 311, p. 5; Paulino de Nola, Poem 27, p. 542- 547, 595.
- 7 Acta Purgationis Felicis 5, em Optatus the Donatists, (liverpool: Liverpool University Press, 1997), p. 174.
- 8 Ramsay MacMullen, Journal of Biblical Literature 129, no 3 (2010), p. 597-613.
- 9 St. Augustine: Select Letters, (Londres: Heinemann, 1965), p. 81, 82.
- 10 Confissões de Agostinho 6, p. 2.
- 11 Robin M. Jensen, Commemorating the Dead: Texts and Artifacts in Context – Studies of Roman, Jewish, and Christian Burials (Berlin: Walter de Gruyter, 2008), p. 120.
- 12 Cipriano, Letter 21.3.2. 13 Jerônimo, Vigilantius 5.