Reflexão a respeito dos impactos dos cultos on-line sobre o ministério e a congregação local
Carlos Henrique Nunes
“O mundo não será mais o mesmo.” Essa tem sido a avaliação de especialistas de todas as áreas, a partir da explosão do contágio da Covid-19. Se essa é uma previsão que atinge a sociedade, o ministério adventista também não está isento às consequências dessa pandemia. Desde que o novo coronavírus invadiu o cenário mundial, muitas têm sido as reflexões nos mais diferentes fóruns eclesiásticos, formais e informais, sobre os rumos do pastorado diante dos desafios emergentes.
Entre elas, um possível novo ministério on-line estabelecido a partir das plataformas digitais; as dificuldades conjunturais resultantes de um serviço de culto não presencial; o perfil de adorador que vai surgir dessa experiência global e os desafios para liderar a igreja nesse possível cenário.
Nesta reflexão, gostaria de analisar a perspectiva do advento de um novo ministério de adoração via streaming e suas implicações sobre a maneira de liderar a igreja, considerando a possibilidade do surgimento de um novo perfil de adorador resultante dessa experiência.
Novo ministério?
Será verdade que o cenário pós-pandemia consolidará um ministério de interface digital? Será real que esse deslumbramento pelas nem tão novas tecnologias consiga ser relevante ao reunir em interações virtuais quase o mesmo público de um culto em nossas igrejas?
Todas essas perguntas e considerações convergem a um ponto: talvez ainda não estejamos vocacionados para liderar uma virada no estilo de adoração porque não entendemos as questões filosóficas subjacentes ao simples uso instrumental dessas tecnologias. Talvez ainda sejamos como garotinhos que ganham um brinquedo e se divertem como nunca desbravando o artefato, sem saber que duas coisas poderão acontecer com o passar do tempo: (a) o desinteresse, ou (b) um uso instrumental sem noção de o porquê e para que o usamos. Em outras palavras, um automatismo irrefletido.
Não se pode ignorar que o uso meramente instrumental pode gerar experts em pouco tempo, mas essa justamente é a questão de fundo, em especial no contexto comunicacional. Faz algum tempo que a proliferação de cursos de natureza técnica em áreas operacionais de mídia, os chamados “técnicos em Rádio/TV”, têm sido a solução para uma política educacional que tem preferido formar executores em detrimento de pensadores. Profissionais que operem bem as mídias e que se posicionem bem diante das câmeras podem ser bons comunicadores, mas talvez nem tão bons pensadores assim.
Existem questões de natureza epistemológica e filosófica as quais estão diretamente relacionadas ao uso indiscriminado de uma tecnologia. E delas podem resultar transformações radicais na cosmovisão e na missão denominacional. Paulo Cândido de Oliveira, falando sobre cosmovisão, revisita os critérios que estabelecem as chamadas cosmovisões universais: classificação, o eu, o outro, causalidade, tempo e espaço.1 Dois deles cobram especial sentido quando pensamos em adoração via streaming ou pregadores virtuais.
Quando pensamos na perspectiva do critério “classificação”, entende-se que tal mediação recebida constantemente, finalmente será classificada/catalogada como um filtro de reconhecimento da realidade. As plataformas digitais serão, finalmente, a classificação da realidade adventista? Quem sabe fazer pode não saber por que faz, tampouco entender os efeitos disso na formação de um novo adorador.
Da perspectiva do “outro”, entende-se que os critérios de familiaridade definem nossos relacionamentos. Em outras palavras: se minha cosmovisão depende em última instância de um “outro” e de minhas interações sociais com ele para se estabelecer, e está diretamente ligada à minha rede de interlocutores, é correto pensar que uma plataforma fria, onde estou só em conexão com um pregador, de fato terá reflexos em minha formação como cidadão do Reino.
Como ministério, talvez ainda não tenhamos uma geração de “evangelitubers”, criando aqui um neologismo, instrumentalizada para discutir essas implicações a médio e longo prazo. E talvez isso valha para ambas as dimensões: o próprio ministério e sua rede de fiéis. Sim, porque a curto prazo, ainda se seguirá o prazer do brinquedo novo. O certo é que os meios, como dizia McLuhan,2 são em alguma instância comunicativa como extensões do próprio homem. Nesse processo, o perigo é chegar ao ponto em que, na proliferação do muito que dizer, a mensagem se perca em um meio difuso, de pouca retenção e tão fugaz como é o streaming. E como disse Maquiavel em sua célebre frase, já não ocorra que “os fins justifiquem os meios”, mas que os “meios [on-line] justifiquem os fins”.3
Novas relações?
Do uso das plataformas digitais surge a pergunta: Seremos, finalmente, adoradores não presenciais pós-coronavírus? Transformar a pergunta em afirmação ainda é um risco. Apressar-se em afirmar que a doxologia cúltica jamais será a mesma depois que fomos forçados a abandonar atitudes tão enraizadas como depositar o dízimo ou a oferta na salva a cada sábado, preparar-nos para sair de casa em direção à igreja, cantar de forma congregacional e expressar por meio de gestos o sentido gregário do Corpo de Cristo reunido, parece muito precoce.
Se é certo que teremos um novo adorador, quem ele será? Alguém que sairá mais forte dessa “sacudidura embrionária”, mais proativo e não tanto reativo às demandas do Reino? Alguém que já não precisará ser estimulado aos compromissos da vida religiosa? É preciso cautela com os “profetas do acontecido”, os que são definitivos nos primeiros movimentos do tabuleiro. Centenas de anos podem ruir em um clique, é verdade, mas seria demasiado arriscado bater o martelo ou jogar todas as fichas que está nascendo um adorador virtual, conectado e livre das rotinas presenciais cúlticas como resultado de uma quarentena.
Além disso, uma transformação nesse nível implicaria uma nova forma de liderar a igreja. É preciso que se diga que a dinâmica congregacional ao longo dos séculos sempre esteve sustentada por um rol de atividades promovidas de maneira presencial. O que, quando e como fazer sempre foi algo entregue a partir de um encontro. Foi sempre a presença física em um lugar, a igreja, que permitiu a administração do grau de efetividade no cumprimento da missão. A ideia de manter o Corpo ocupado executando tarefas em favor da expansão do Reino sempre esteve condicionada ao feedback presencial.
Nesse sentido, é pertinente a pergunta: As plataformas virtuais conseguirão manter o mesmo nível de engajamento dos membros no cumprimento da missão? Se essa ruptura se confirmar, estamos, de fato, em meio ao início de uma revolução espiritual que demandará um novo perfil de liderança e uma revisão de estruturas e estratégias de governança corporativa.
Notadamente se percebe que a “nova” era tecnológica abre espaço para uma nova figura dentro do espectro comunicacional. Joan Ferrés i Plat a chama de “prosumer”.4
Quem é esse indivíduo? Aquele que além de ser um consumidor é também um produtor de informação. Ao mesmo tempo, ele é a culminação do antigo modelo emissor-receptor, que ditou regra nos sistemas comunicativos analógicos. Com a invasão dos cultos on-line, das plataformas virtuais e da possível adoração não presencial, não é difícil imaginar que os fiéis adventistas tomem a liberdade de assumir a postura “prosumer”, deixando de ser dependentes dos ensinos da igreja em termos de missão e cosmovisão.
Ao analisar as funções mediadoras da tecnologia virtual, Ferrés i Plat considera que as ferramentas digitais nunca são neutras. Ele assegura que as relações interpessoais mediadas pela tecnologia são inevitavelmente distintas das relações diretas e dá como exemplo a relação entre mãe e filho: “Uma mãe que, graças à tecnologia, se conecta com filhos que vivem a milhares de quilômetros, desfruta o prazer de vê-los e, ao mesmo tempo, padece da frustração de não poder abraçá-los.”5 Podemos vir a ser parte de uma igreja que se vê, mas que não se abraça. O autor finaliza afirmando que o “o modelo piramidal próprio da era industrial está sendo substituído por um modelo horizontal próprio da era digital”.6
Tal cenário demandaria uma rede horizontal de administração com muito maior conectividade do que o modelo vertical pôde promover até hoje. Por consequência, resultaria em um nivelamento organizacional e num achatamento estrutural. Em outras palavras, a igreja estaria estruturada em movimentos orgânicos e não mais em níveis interdependentes dentro de um organograma funcional, em que a chegada de uma informação, conteúdo ou plano eclesiástico depende de um canal hierárquico organizacional, os chamados condutores regulares. Isso é o que, de algum modo, já ocorre nos lugares em que a liberdade religiosa é restrita. Nessas condições, a informação flui por canais informais e os atores da ponta, os membros em especial, são mais influentes do que os líderes no modelo tradicional.
Se estivermos diante de uma nova era de adoração virtual, será preciso rediscutir os quatro eixos da igreja como organismo social, segundo David Bosch: martyria, leitourgia, koinonia e diakonia.7
Será necessário medir, a médio e longo prazo, o grau de disposição para o sacrifício dessa comunidade virtual, implícito no conceito da palavra grega martyria, desprovida do sentido congregacional, alimentada via streamings. Será urgente considerar a eficácia corporativa de uma nova liturgia, traduzindo a palavra grega bastante parecida, mediada por uma tela de computador e seus efeitos no modus vivendi do povo do advento. Será irrevogável considerar a capacidade de preservar o espírito do congraçamento, que é algo inerente ao termo grego koinonia. E finalmente, será primordial encontrar mecanismos de envolvimento no serviço cristão e formas para medi-lo, aspecto central da diakonia.
Conclusão
Todos os pontos aqui levantados e discutidos têm seu lugar nos fóruns apropriados. Das conclusões que cada um deles possa produzir deverá inevitavelmente aparecer o caminho. Razão e não emoção. Argumentos e não paixões. Equilíbrio e não destemperos a um e outro extremo. Oração e consagração. E o tempo revelará a “mão de Deus ao leme”.
Referências
1 Paulo Cândido de Oliveira, “Worldview: Vital for mission and ministry in the 21st Century”, Journal of Adventist Mission Studies: v. 5, n. 1, p. 22-41, 2009.
2 Marshall McLuhan, Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem (São Paulo: Cultrix, 1995).
3 Nicolau Maquiavel, O Príncipe (São Paulo: Universo dos Livros, 2009, versão eletrônica).
4 Joan Ferrés i Plat, Las Pantallas y el Cerebro Emocional (Barcelona: Gedisa, 2014, versão eletrônica), posição 1516.
5 Joan Ferrés i Plat, Las Pantallas y el Cerebro Emocional, posição 1926.
6 Ibid.
7 David Bosch, Misión en Transformación (Grand Rapids, MI: Libros Desafío, 2005), p. 464.
Carlos Henrique Nunes, pastor em Bagé, RS