Sugestões práticas para o trabalho pastoral pós-quarentena
Moisés Mattos
A crise pode ser uma oportunidade de recomeçar, e de forma mais inteligente. Ao menos, é o que sinto na esteira da pandemia da Covid-19. Ela chegou e, mal-educadamente, não bateu à porta, não pediu entrada, transtornou nossa vida e, ao que tudo indica, vai demorar para ir embora de vez. Quando isso acontecer, não deixará saudade. Muitos aprendizados têm sido revelados por pessoas de diferentes formações. O conteúdo dessas descobertas vai desde a necessidade de nos preocuparmos mais com os outros, cuidar da saúde, trabalhar em home office, olhar com mais apreço para algumas profissões e valorizar momentos especiais ao lado da família e dos amigos.1
Do ponto de vista ministerial, o que se pode extrair de uma situação que deixou o mundo sem saída? À parte das fissuras que ela nos legou nas esferas econômica, social e política, o que podemos aprender a fim de orientar nossas ações para o futuro?
Penso que devemos olhar para o olho da tempestade e perguntar: “Senhor, o que Tu esperas que eu aprenda? De que maneira vais me mudar como pessoa e ministro do evangelho?”
Se Fernando Pessoa estava certo em dizer que “de tudo fica um pouco”, creio que nesse redemoinho aprendi coisas novas e reforcei conceitos já estabelecidos. Se colocarmos esses ingredientes em um caldeirão de ideias, a soma resultante pode se converter em práticas saudáveis para o ministério.2
Certeza profética
Uma das primeiras lições que me vieram à mente foi a confirmação de fé no que chamaria de modelo escatológico. A escatologia exerce forte influência em todo o pensamento adventista. Contudo, ao pregar sobre a união dos poderes representados pelas bestas de Apocalipse 13, o decreto dominical e outros temas, às vezes pode-se sentir no ar uma ponta de descrença da parte de alguns, fruto da nossa racionalidade. Será que tudo isso vai realmente se cumprir? Como o cenário mundial será desenhado para que as predições se concretizem?
Embora a pandemia do novo coronavírus esteja mais relacionada com a saúde pública e nosso bem-estar, as medidas preventivas resultaram também em um quadro, de certo modo, asfixiante. Isso permite antever algumas coisas: a agilidade e a maneira com que todas as organizações agiram nos mostra que nenhum cenário pode ser considerado impossível. Tudo pode se configurar de forma não dimensionada, sorrateira, e de expansão sem precedentes. A rapidez impressiona até mesmo alarmistas de plantão, acostumados a relacionar esses acontecimentos com os sinais dos tempos.
Menos de três meses após um surto de pneumonias sem causa conhecida ocorrer em uma província na China, o mundo inteiro foi envolvido. O médico infectologista Anthony Fauci, um dos líderes no combate ao novo coronavírus nos Estados Unidos, afirmou que nunca viu uma doença como a Covid-19.3
Quando acreditávamos que todos os medicamentos e a tecnologia nos garantiriam uma vida mais longa, apareceu o intruso. De repente, lavar as mãos, usar máscaras e observar o isolamento social se tornaram a ordem do dia.
Houve comoção mundial e a pauta virou o novo coronavírus. Até nas leis ele se intrometeu. Esse quadro ilustra que uma cena de acontecimentos e decisões que cumpram profecias pode estruturar-se mais fácil do que prevemos e imaginamos.
A observação desse desenrolar dos fatos reacendeu em mim a vontade de pregar com mais veemência e profundidade sobre as profecias bíblicas. Sinto uma certa carência da igreja em ouvir e aprender assuntos escatológicos. Aliás, o adventismo vive um de seus problemas exatamente na escatologia. A tentativa de alguns em desprezar o historicismo e o devaneio de outros em tentar colar nas profecias ideias mirabolantes e alheias ao texto bíblico constituem-se em uma ameaça real.4 Nosso desafio é explicar as profecias sem a superficialidade e o sensacionalismo que muitas vezes caracterizam discursos nessa área.
A importância da igreja
Paralelamente, pensei no impacto da pandemia no meu conceito de igreja. Não me refiro ao conceito bíblico e teológico do corpo de Cristo, mas na igreja em seu funcionamento prático. A situação vivida permite que visualizemos uma mudança paradigmática, migrando de uma igreja complexa para uma simples. Ellen White previu que esta seria formada por “atalaias e portadores de luz”.5
Reflita: nesses dias de isolamento social, o que nos faltou como congregação de adoradores? A resposta óbvia é: o básico. Queríamos cantar e orar juntos. Gostaríamos de pregar a Palavra e escutá-la, seja no púlpito ou nas casas, em estudos bíblicos, cultos ou pequenos grupos. Não tivemos a oportunidade de devolver presencialmente dízimos e ofertas, embora pudéssemos contar com recursos digitais, entre outros meios. Além disso, notamos a ausência do carinho dos abraços, de testemunhar pessoas aceitando a Cristo, da realização de batismos, apresentações infantis, casamentos, Santas Ceias, entre outras cerimônias.
Às vezes, na normalidade, nos sobrecarregamos com muitas coisas que, em si, são boas, mas que, ao fim, pouco colaboram para o cumprimento da missão. Falhamos em avaliar o que deve permanecer ou não no cotidiano de uma igreja. Assim, corremos o risco de perder muito tempo, energia e dinheiro fazendo mais coisas e tornando-nos menos efetivos. Conforme Thom Rainer afirmou: “A maioria das igrejas mantém seus membros tão ocupados que não têm tempo para ministrar.”6
Igrejas serão relevantes na medida exata em que compreenderem bem para que existem, qual sua missão, qual sua mensagem, e estabelecerem suas prioridades. Evangelismo e missão devem ser seu foco. Se perderem isso, poderão até ser relevantes socialmente ao mundo, mas irrelevantes para os propósitos de Deus.
Outra tendência igualmente perigosa é a da transformação da missão em um local ao invés de um estilo de vida. Podemos ir a um local e ajudar pessoas; frequentar a igreja e impressionar a congregação com música, oratória e um conjunto bem elaborado de cerimônias e projetos. No entanto, missão vai além disso. Precisamos fazer missões exatamente onde vivemos. É necessário ver o local de trabalho, a escola e a vizinhança como campo missionário. Missão não é um local, é um estilo de vida.
Nesse sentido, é sempre oportuno relembrar o objetivo principal da formação do movimento adventista do sétimo dia: “A igreja é o instrumento escolhido por Deus para a salvação dos seres humanos. Foi organizada para servir, e sua missão é levar o evangelho ao mundo. Desde o princípio, Deus planejou que Sua igreja refletisse às pessoas Sua plenitude e suficiência. Os membros da igreja, que Ele chamou das trevas para Sua maravilhosa luz, devem manifestar Sua glória.”7 Esse propósito deveria orientar e balizar nossas avaliações formais ou informais do trabalho da igreja em qualquer de suas instâncias.
Por outro lado, uma das lições aprendidas na pandemia poderia ser o que eu chamaria de um golpe na tendência atual de minimizar a necessidade da frequência à igreja. Um número crescente de cristãos tem perguntado: “Por que eu preciso da igreja? Qual é a vantagem de estar nos cultos, já que pela internet eu tenho acesso a informações bem mais interessantes para minha espiritualidade? Não poderia estar em casa lendo a Bíblia confortavelmente ao invés de ouvir um sermão monótono, atrapalhado pelo choro de crianças ou conversas paralelas?” Inclusive, há quem questione se o pertencimento a uma igreja é realmente necessário para exercer sua fé.
Corre pela internet uma frase de efeito que afirma: “Igreja não é ir, é ser”. Ela reflete o que muitos “cristãos desigrejados” alardeiam. Embora saibamos que não adianta “ir” sem “ser”, entendemos que o “ser” envolve o “ir”. Um cristão não é um anônimo enclausurado em seu mundo egoísta e egocêntrico. Ele faz parte de uma comunidade interativa de amor, ajuda e adoração. A igreja é o lugar em que os crentes podem amar uns aos outros (1Jo 4:12), exortar uns aos outros (Hb 3:13), encorajar uns aos outros (Hb 10:24), servir uns aos outros (Gl 5:13), instruir uns aos outros (Rm 15:14), honrar uns aos outros (Rm 12:10) e ser bondosos e misericordiosos uns com os outros (Ef 4:32).
A pandemia e o fechamento dos templos ensinaram que ainda há o forte desejo de pertencer a uma comunidade e se expressar por meio dela. O isolamento social mostrou também que as pessoas têm vontade de frequentar cultos, e isso lhes faz bem, além de ser um elemento facilitador de sua adoração a Deus.8 De fato, podemos adorar ao Senhor em qualquer lugar, “em espírito e em verdade” (Jo 4:23), mas precisamos da igreja para demonstrar de que lado estamos.
Um antigo slogan dizia: “nada substitui o talento”. Parafraseando, pode-se afirmar que nada substitui o presencial. Igreja se faz com pessoas, e estas precisam se reunir (Hb 10:25). A pandemia nos fez refletir seriamente sobre o equilíbrio necessário a fim de vivermos a adoração individual e coletiva de forma saudável. Ambas são fundamentais para o desenvolvimento espiritual do membro da igreja de Jesus Cristo.
O retorno
As ponderações até aqui estimulam a alteração ou confirmação de algumas ações no período pós-pandemia. É momento de avaliar métodos, programas, materiais e estratégias sem perder de vista a doutrina e a identidade da igreja. Novos tempos pedem novas posturas, ou melhor, posturas alinhadas com a necessidade das pessoas e o foco da igreja.
De uma perspectiva pessoal, o que mudará em minha maneira de exercer o ministério? Evidentemente, vamos continuar trabalhando com nossas atividades regulares. Porém, nesse retorno, ainda que paulatinamente, pretendo implementar ou continuar algumas práticas que podem estar associadas às considerações levantadas até agora. Elas deverão ser adaptadas às recomendações sanitárias vigentes, especialmente porque, enquanto não houver vacina ou tratamento eficaz contra a Covid-19, teremos que manter a vigilância redobrada. Com prudência, segurança e criatividade, planejo fazer o seguinte:
1. No primeiro culto após a autorização para a reabertura dos templos, quero realizar uma cerimônia batismal demonstrando aos membros que não podemos perder o foco de nossa missão: resgatar pessoas.
2. Reativar as classes bíblicas aos domingos, ligadas a departamentos como Escola Sabatina, Desbravadores, Aventureiros e ASA, entre outros.
3. Reunir, capacitar e equipar as duplas missionárias da igreja, visando motivá-las para o trabalho. Minha experiência diz que o estudo bíblico ministrado nos lares não perdeu seu valor e se constitui em um dos métodos mais eficazes de alcançar pessoas para Cristo.
4. Aproveitar a experiência obtida com os meios digitais e realizar capacitações para os líderes de departamento do distrito. A primeira iniciativa será um curso de formação de anciãos.
5. Promover aulas para as equipes de diaconato e recepção. A maneira como receberemos as pessoas na igreja fará a diferença na salvação de pessoas que nos procurarão após a quarentena.
6. Manter a regularidade na apresentação de relatórios trimestrais das finanças da igreja. Transparência constitui-se num fator que estimula a fidelidade e a confiança dos membros. Como observou Juan Prestol-Puesán, “confiança é tudo o que temos e, para os líderes adventistas do sétimo dia, não há outra opção; nós temos que fazer o certo”.9 Ellen White reforça esse conceito ao escrever que “tudo quanto os cristãos fazem deve ser tão transparente como a luz do Sol”.10
7. Intensificar a realização de seminários e aulas de teologia para membros, a fim de aprofundar seu conhecimento bíblico e doutrinário.
8. Assim que possível, promover reuniões sociais com o objetivo de integrar e confraternizar membros e interessados da igreja. O ideal é que, para isso, usemos as estruturas existentes nos departamentos e pequenos grupos. Para os tempos posteriores ao novo coronavírus, se prevê “uma explosão de sociabilidade”, e nossa comunidade não pode ficar fora disso.11 Ainda que os recursos digitais tenham assumido o protagonismo no momento, a convivência pessoal também faz muita falta.
9. Em reunião com a liderança local, estudar e avaliar cultos e programas em geral, tentando torná-los mais objetivos, dinâmicos e atrativos para membros e convidados. A proposta da Igreja Adventista na América do Sul, que enfatiza comunhão, relacionamento e missão pode, com eficácia, ajudar a nortear ações que glorifiquem o nome de Deus e tornem Sua igreja relevante.
Não desistir
Depois de uma crise, de uma provação ou até de uma pandemia, a ordem é começar outra vez. Não devemos nos esquecer de que a força e a resistência para o futuro podem ser estabelecidas agora. Todas as dificuldades nos ensinam que “a experiência da fornalha da prova e da aflição paga todos os pesares de seu preço”.12
Temos nossas esperanças renovadas quando confiamos no Senhor da igreja, o Deus que entrou em um mundo infectado com o vírus terrível do pecado, Aquele que respirou o mesmo ar que nós, alimentou-Se como nós e morreu isolado em uma cruz. Sua vida, morte e ressurreição nos garantem um futuro não apenas seguro, mas eterno. Ele estará conosco para implantar o novo, quebrar paradigmas, desafiar modelos e renovar ações. A Ele toda glória!
Igrejas serão relevantes na medida exata em que compreenderem bem para que existem, qual sua missão, qual sua mensagem, e estabelecerem suas prioridades.
Referências
1 Kiko Kislansky, “Lições que o coronavírus nos ensina”, disponível em: <glo.bo/2YvCLUA>; Paula Stange, “5 lições que aprendemos com o coronavírus”, disponível em: <bit.ly/2zP4FQU>, acesso em 5/5/2020.
2 Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo
(Rio de Janeiro: Record, 2000), p. 92-95.
3 Peter Nicholas, “Anthony Fauci’s plan to stay honest”, disponível em: <bit.ly/35tslpZ>, acesso em 5/5/2020.
4 Jon Paulien. The End of Historicism? Reflections on the Adventist Approach to Biblical Apocalyptic – Part One. Journal of the Adventist Theological Society, v. 14, n. 2, 2003, p. 15-43.
5 Ellen G. White, Eventos Finais (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2004), p. 41.
6 Thom Rainer, “Eight reasons churches become too busy”, disponível em: <bit.ly/2ylVK9a>, acesso em 5/5/2020.
7 Ellen G. White, Atos dos Apóstolos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p. 9.
8 Iuri Pitta, “Brasileiro dá prioridade a igreja e salão
de beleza no pós-quarentena”, disponível em:
<bit.ly/2YtEolB>, acesso em 5/5/2020.
9 Citado em Marcos Paseggi, “Adventist leaders discuss integrity and transparency”, disponível em: <bit.ly/2W3gyvv>, acesso em 5/5/2020.
10 Ellen G. White, O Maior Discurso de Cristo (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2008), p. 57.
11 Leandro Karnal, Especial: “O Mundo Pós-Pandemia”, disponível em: <bit.ly/2zVwjvJ>, acesso em 5/5/2020.
12 Ellen G. White, Atos dos Apóstolos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p. 574.
Moisés Mattos, pastor em São José do Rio Preto, SP