Lições do chamado de Jonas

Os estudiosos reconhecem cada vez mais as narrativas hebraicas como escritos altamente sofisticados que refletem uma construção cuidadosa e bem pensada.1 Nessa direção, Gerhard Hasel considera o livro de Jonas como único entre os livros proféticos da Bíblia, escrito no estilo de narração,2 embora alguns teólogos proponham uma mescla de estilos devido à presença da oração no capítulo 2.3 Como as narrativas bíblicas são complexas e obras-primas de literatura, apesar de sua aparente simplicidade de expressão, Jonas não é exceção. Assim, podem-se notar quatro detalhes literários na narrativa de Jonas: (1) palavras repetitivas, (2) diálogos fluidos, (3) estrutura tipo espelho ou quiasmo e (4) ironia.4

Jonas era natural de Gate-Hafer, cidade que ficava no território da tribo de ­Zebulom, dentro das fronteiras do reino do norte. Ali ele profetizou sobre um novo ciclo de expansão de Israel sob o reinado de Jeroboão II (793-753 a.C.; ver 2Rs 14:23-27). Tradicionalmente, tem-se considerado que o próprio Jonas tenha escrito o livro, o que traz maior curiosidade ao leitor, já que o uso de humor, sátira, ironia, absurdos e hipérboles é algo nítido no texto. Em outras palavras, Jonas foi irônico consigo mesmo. Portanto, trata-se de uma autobiografia de um anti-herói.

A “profecia” de Jonas é certamente a mais conhecida entre os cristãos, devido à simplicidade de sua narrativa e pelo caráter extraordinário dos detalhes de sua história.5 No entanto, tudo é estranho no livro: o chamado desafiador ao profeta, a reação de Jonas diante da missão, a conversão dos marinheiros, o aparecimento de um grande peixe, a sobrevivência de ­Jonas no ventre do peixe, o estranho sermão, a estranha conversão e o estranho desfecho. Esse é o enredo “estranho” de uma grande história. Dentro desse contexto, Jo Davidson salienta que a expressão “grande” aparece 38 vezes na narrativa,6 o que realça as ironias decorrentes do envolvimento de Deus na vida do profeta.

A narrativa começa com o chamado de Deus a Jonas: “Levante-se, vá à ­grande cidade de Nínive e pregue contra ela” (Jn 1:2). O verso 3 destaca a resposta do profeta: “Jonas se levantou, mas para fugir da presença do Senhor.” Claramente se vê aqui um contraste marcado entre o que Deus quer e o que faz o profeta Jonas. ­Esses três primeiros versos do livro concentram grande riqueza teológica, a qual será nosso objeto de estudo neste artigo.

Iniciativa divina

O livro de Jonas começa dizendo: “A palavra do Senhor veio a Jonas, filho de Amitai” (v. 1). O nome Amitai vem da raiz hebraica emeth, que significa “verdade”, “fidelidade”. A pergunta básica é: Por que a palavra do Senhor veio a Jonas, o “filho da verdade”? A questão sugere uma resposta lógica, mas é mais profunda do que se lê. Deus é soberano e conhece o ser humano. O fato de o nome “Jonas” ser pronunciado pelo Senhor indica que Jonas tinha um Deus pessoal – não como em outras ­culturas, com seus deuses distantes, desinteressados no ser humano e vivendo em dimensões desconhecidas. Em vez disso, o Senhor (no texto hebraico aparece o termo YHWH, o nome de Deus usado no contexto da aliança) chama o profeta pelo nome, e não só menciona o nome, mas destaca a família de Jonas. Ele é “filho de Amitai”, o que seria equivalente ao sobrenome hoje.

O primeiro verso de Jonas evidencia claramente o caráter missionário de Deus. É Ele quem toma a iniciativa. Não é o profeta quem procura um chamado, mas é o próprio Deus quem chama o profeta. E esse chamado não é aleatório, mas específico: “Jonas, filho de Amitai”, o que nos lembra mais uma vez que Deus nos conhece bem, desde sempre (Sl 139:13; ver Jer 1:5). Assim como identificou Samuel (1Sm 3:1-10), Davi (1Sm 16:1-13), a viúva de Sarepta (1Rs 17:8-16) e muitas outras personalidades bíblicas, Deus conhecia o filho de Amitai e sabia quem ele era, onde vivia e quais capacidades possuía. Deus sabia que Jonas tinha condições de cumprir a missão.

Caráter da missão

Podemos observar em Jonas 1:2 uma sucessão de três verbos imperativos, os quais denotam o caráter da missão:

Levante-se. Esse não é um chamado leve nem passivo, mas uma ordem forte, dada com senso de urgência. É um chamado a “levantar-se”, assim como Deus Se levanta em defesa de Seu povo (Dn 12:1). Nínive está em apuros, nela há muita maldade e esse pecado subiu até a presença de Deus, o qual não pode suportar o mal. É por isso que Ele recorre ao ser humano como Seu agente de evangelismo e de transformação. Podemos notar aqui um Deus preocupado e até “desesperado” pela maldade de Nínive. Ele faz um chamado veemente ao instrumento humano e espera que esse convite seja correspondido à altura.

Vá. Também denota “viajar”, “caminhar”, ou seja, “ir de um lugar ao outro” em qualquer forma de transporte (2Rs 7:14). Além disso, podemos notar na LXX que o verbo “vá!” (Πορεύθητι) é o mesmo usado no NT no contexto de ir pregar ou cumprir a missão (Mt 8:9; Lc 7:8, At 9:11; 28:26). Claramente, o termo expressa movimento. Afinal, não dá para pregar em Nínive sentado no conforto de Gate-Hafer. Jonas precisava sair de sua comodidade para empreender uma caminhada, uma viagem e, assim como o chamado a levantar-se, essa jornada também era urgente. A missão, portanto, não é um empreendimento que se faz sentado ou estático.

Pregue. Com esse verbo no imperativo Deus está dizendo ao profeta o que ele deve fazer em Nínive, a grande cidade corrupta. Jonas tem que pregar, proclamar o evangelho e chamar a atenção das pessoas, afinal, elas estão distraídas ou cegas devido às suas maldades. O interessante é que, se o chamado é imperativo, a ação de Jonas também deve ser. Jonas deve pregar com sentido de urgência, pois a cidade não tem muito tempo: só “40 dias e 40 noites”. Isso nos leva a refletir que, junto com o chamado e a missão, existe um tempo decrescente de graça (Gn 6; Ap 14:6-18), ainda que muitos não o reconheçam. A pregação tem um tempo, e esse tempo só Deus conhece.

Portanto, ao longo das Escrituras, não existe chamado sem missão, nem missão sem chamado.7 Vemos esse paradigma em Noé (Gn 6), Abraão (Gn 12), Moisés (Êx 3), entre muitos outros casos. Assim, a missão em Jonas é a combinação de três verbos imperativos: Levante-se + vá + prega = Missão.8

Motivo do chamado

A razão de Deus chamar Jonas está na segunda parte do verso 2: “Porque a sua ­maldade subiu até a Minha presença.” O chamado de Jonas responde a uma realidade, a um ­circunstancial de causa: a maldade diante de Deus. O termo maldade aqui significa “miséria”, “pecado”, “perversão”, “crime” e aparece em outros textos do AT (Et 9:2, Jr 1:6, Lm 1:2, Os 7:2, Jl 4:13). Essa mal­dade subiu diante do “rosto” ou da “presença” de Deus, o que nos leva a outras passagens de situação semelhante, tais como a maldade da Terra no tempo de Noé (Gn 6:5, 11) e o clamor de Israel no Egito no tempo de Moisés (Êx 3:7-9). Em todos os casos, Deus não agiu com as próprias mãos, mas chamou mensageiros para pregar: Noé pregou durante 120 anos, Moisés exortou pessoalmente o rei do Egito e, no caso de Jonas, o profeta pregou uma mensagem de juízo em Nínive. Portanto, a razão pela qual Deus chama a “levantar-se, ir e pregar” é para que se cumpra a missão. Não haveria “missão” se não houvesse maldade, ou seja, a missão existe porque existe o pecado (Gn 3). No chamado de Jonas encontramos a teologia da missão: tendo em conta que a missão existe porque existe o evangelho, e a existência do evangelho ocorre por causa da entrada do pecado.9 Em todos esses exemplos, vemos que Deus não quer que “ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe 3:9).

Resposta do profeta

Em Jonas 1:3, encontramos Jonas respondendo ao chamado divino, não com palavras, mas com uma atitude. Diante do chamado “levanta-te, vá e prega!”,
Jonas “se levantou” (v. 3). O verbo para descrever a ação de Jonas é o mesmo usado por Deus ao chamá-lo. Aparentemente, o profeta obedeceu. No entanto, o verso complementa: “mas para fugir da presença do Senhor, para Társis” (v. 3). ­Jonas se levanta “para fugir”! A raiz verbal da palavra tem que ver com “escapar” (Gn 31:27, Êx 36:33, Jn 4:2), em um sentido de “correr por sua vida” ou “querer ser livre”. O que Jonas está fazendo não é simples. Ele está fugindo por sua vida, pois sabe que o chamado que lhe foi dado é urgente, imperativo e sério. O livro não registra um diálogo tal como ocorreu com Moisés em Êxodo 3 ou com Gideão em ­Juízes 6. A única coisa que o livro apresenta é um profeta levantando-se para escapar para Társis, um porto fenício que ficava em uma direção totalmente oposta à de Nínive. Mais do que fugir da missão, Jonas queria fugir de Deus. Algum tempo depois, Jeremias escreveu sobre a impossibilidade de se esconder de Deus (Jr 23:24).

Escapar de quem? Escapar de quem o chamou. O texto revela que o profeta dá as costas não apenas ao chamado de Deus, mas ao próprio Deus. Afinal, como já mencionamos, a missão não nasce no ser humano, mas no coração de Deus; Ele é o responsável pela missão. Assim como a maldade sobe até a “presença do Senhor”, assim também Jonas foge – ele escapa da “presença do Senhor”. Justamente, essa frase “diante da presença do Senhor” se repete três vezes: a primeira quando as maldades de Nínive subiram diante da “presença do Senhor” (v. 2c) e as restantes enfatizando a fuga “da presença do ­Senhor” (v. 3a, c). O que Deus faria ao profeta pela fuga declarada? Possivelmente Jonas pensasse que Deus o mataria ou que enviaria outro profeta em seu lugar.

Consequência da fuga

O verso 3 destaca a presença do verbo descer em duas oportunidades: quando “desceu a Jope” e quando desceu para o navio. A palavra “descer” significa “fazer um movimento linear de uma elevação mais alta para uma mais baixa”.10 Em um sentido mais profundo da palavra, sempre que alguém desce de um lugar alto para baixo, tem implicações espirituais que vão além de caminhar ladeira abaixo: pode assinalar fracasso espiritual, e isso ocorre simplesmente por não se fazer a vontade de Deus. Alguns exemplos nos mostram essa premissa: Abrão e sua esposa desceram ao Egito em busca de alimentos (Gn 12:10), Moisés, do monte ­Sinai, desceu ao cenário do bezerro de ouro (Êx 32:15), ­Sansão desceu para o território filisteu (Jo 14:1), Saul desceu a Gilgal (1Sm 15:12) e Davi foi para o deserto de Parã (1Sm 25:1).

No caso de Jonas, o sentido dessa palavra o acompanhou muito bem. O profeta desceu quatro vezes no mesmo período do livro (1:1–2:10). Nenhuma outra pessoa na Bíblia hebraica experimentou uma “descida” em três etapas (1:3a, 1:3b e 2:6) como resultado de rejeitar o chamado de Deus para cumprir a missão. Na quarta vez, a Bíblia faz um trocadilho, afirmando que Jonas desceu para um “sono profundo” (vayeiradam). Parece que “descer” era o único verbo que constava no diário de bordo de Jonas. É o verbo contraposto ao “ide” de Deus. Isso é o que acontece quando alguém recusa o chamado divino para a missão: ele desce.

Conclusão

A atitude do profeta é contrastada com a dos demais personagens do livro. De todos os seres e coisas mencionados – a tempestade, o sorteio, os marinheiros, o peixe, os ninivitas, a planta, a lagarta e o vento leste –, o profeta é o único a se recursar a obedecer a Deus. Enquanto Jonas é insensível e nada misericordioso, Deus mostra Seu grande amor e graça pelos perdidos. Em pelo menos dois momentos, Jonas menciona a misericórdia divina (Jn 2:8; 4:2). O termo hebraico traduzido como “misericordioso” é hesed, o mais frequente substantivo para “amor” no AT (aparece mais de 250 vezes),11 termo que está intimamente associado ao concerto de amor divino por Israel. Embora Jonas reconheça a misericórdia de Deus pelos pecadores, ele não a aceita.

Deus escolhe Nínive como um campo missionário, sendo que ela era uma cidade grande, do mesmo tamanho ou maior que sua maldade. A conversão dos marinheiros e ninivitas é uma chamada de atenção a Israel que, não sendo um povo tão mau como os ninivitas, não se arrepende e não obedece à Palavra de Deus. Os marinheiros e ninivitas, sim! Na verdade, quem precisava de conversão era o próprio profeta, o mensageiro da graça.

Jonas representa a atitude do povo de Israel, chamado desde o início a cumprir a missão. Infelizmente, a nação não compreendeu isso, assim como o profeta Jonas. Talvez motivado por seu zelo nacionalista ou pela pouca experiência como evangelista em um lugar desconhecido, Jonas demonstrou desgosto pela misericórdia divina em favor dos gentios. Enquanto Moisés intercedeu pelo povo e em seguida adorou a Deus, Jonas pregou ao povo e depois praguejou por causa do livramento. Ao citar Êxodo 34:6, 7 (ver Jn 4:2), o profeta repreende a Deus por ter poupado os ninivitas da destruição. Jonas vê a compaixão de Deus como algo negativo. Com este comportamento, Jonas admitiu que a fuga deliberada para Társis ocorreu justamente porque ele não queria que os ninivitas fossem salvos do julgamento.

Como vimos, o livro de Jonas é notavelmente evangelístico e missionário. É Deus quem propicia o plano de ação e usa ­Jonas como Seu mensageiro. Como poderíamos negar o caráter missionário do livro de Jonas com todos esses elementos? Não se pode dizer que a mensagem de Jonas não tem “evangelho” porque anuncia destruição, já que o verdadeiro evangelho está imerso em uma mensagem de juízo. Foi a bondade do Senhor que convidou Jonas a cumprir a missão, bem como a salvar os ninivitas do juízo divino. Infelizmente, o profeta de Israel não aceitou a noção de que a graça divina é aplicada a todos aqueles que aceitam firmar um concerto de salvação com Deus, não importa a nacionalidade. E você tem cumprido sua missão? 

Referências

1 Jo Ann Davidson, Jonah: The Inside Story (Hagerstown, MD: Review and Herald Publisher, 2003), p. 21.

Gerhard F. Hasel, Jonah: Messenger of the Eleventh Hour (Montain View, CA: Pacific Press Publishing Association, 1973), p. 7.

Juan Calvino, Comentario sobre Jonás (San José, Costa Rica: Sola Scriptura, 2007), p. 17.

Davidson, Jonah: The Inside Story, p 23-29.

Carroll Gillis, El Antiguo Testamento: Un Comentario Sobre Su Historia y Literatura (El Paso, TX: Casa Bautista De Publicaciones, 1991), 5:169.

Davidson, Jonah: The Inside Story, p. 45

Jirí Moskala, “Misión en el Antiguo Testamento”, em Mensaje, Misión y Unidad de la Iglesia ed. Ángel Manuel Rodríguez (Buenos Aires: Asociación Casa Editora Sudamericana, 2015), p. 63.

Segundo Steven Thopson e Borge Schantz, aparecem sete vezes na Bíblia este tipo de chamado (“levantar-se, andar e pregar”): A Moisés, Balaão, Elias, Jeremias, moradores de Samaria e Jerusalém, e duas vezes ao profeta Jonas. Ver Steven Thopson e Borge Schantz, Misioneros Bíblicos (Buenos Aires: Asociación Casa Editora Sudamericana, 2015), p. 32.

George W. Peters, A Biblical Theology of Missions (Chicago, IL: Mody Press, 1984), p. 15.

10 J. Swanson, “יָרַד” en Diccionario de Idiomas Bíblicos: Hebreo (Bellingham, WA: Lexham Press, 2014).

11 John D. Barry (ed.), The Lexham Bible Dictionary (Bellingham: Lexham Press, 2016).

Heyssen Cordero Maraví

líder de Ministério Pessoal, Escola Sabatina e Evangelismo da União Peruana do Sul