A maior saída para as tragédias e o sofrimento humano é a contemplação da cruz

Em 1927, Thornton Wilder escreveu um livro intitulado The Bridge of San Luis Rey [A Ponte de São Luís Rei]. Ele fez isso inspirado pelo incidente de uma ponte que se partiu e ceifou a vida de cinco cidadãos peruanos, em julho de 1714. A história gira em torno de um sacerdote franciscano, o padre Juniper, que, estando convencido de que nada acontece por acidente no Universo de Deus, decidiu estudar a vida de cada uma daquelas vítimas, a fim de mostrar a providência e sabedoria divinas, mesmo em meio à tragédia.

“Pareceu ao irmão Juniper que era alto tempo de a teologia ocupar seu lugar entre as ciências exatas, e ele tencionou colocá-la aí”,1 escreveu Wilder. O padre Juniper estava fazendo o que os teólogos têm feito durante séculos, ou seja, tentar estabelecer uma teodicéia, para mostrar a justiça e bondade de Deus a despeito do mal e do sofrimento. Para usar as palavras de Alexander Pope, ele estava buscando “vindicar os caminhos de Deus para o homem”2, ou, segundo John Milton, “afirmar a eterna providência e justificar os caminhos de Deus para o homem”.3

Com efeito, as Escrituras tratam desse tema, como, por exemplo, na ocasião em que Davi pediu perdão a Deus: “de maneira que serás tido por justo no Teu falar” (Sal. 51:4). O motivo do grande conflito também é uma teodicéia: “Devia-se permitir que o mal chegasse a amadurecer”, escreveu Ellen G. White. “Para o bem do Universo inteiro, através dos séculos sem fim, devia Satanás desenvolver mais completamente seus princípios, para que suas acusações contra o governo divino pudessem ser vistas sob sua verdadeira luz por todos os seres criados, e para sempre pudessem ser postas acima de qualquer dúvida a justiça e misericórdia de Deus e a imutabilidade de Sua lei.”4

Para minha compreensão de teodicéia, da vindicação do caráter de Deus apesar do sofrimento humano, sempre foi central a idéia de que todas as nossas questões sobre o mal seriam respondidas com a certeza encontrada na álgebra e na geometria. Sempre acreditei que poderia ter respostas definitivas para explicar, com lógica e clareza perfeitas, todo exemplo de mal que qualquer pessoa tenha enfrentado. Porém, agora, não estou tão seguro disso. Talvez, nem todas as perguntas sejam respondidas porque, devido à natureza do mal, elas não podem ser respondidas. Quem sabe, estamos procurando explicações para o que é, essencialmente, inexplicável.

Explicar é justificar

O que incitou essa mudança de pensamento foi uma frase do livro Evil in Modem Thought: An Alternative History of Philosophy [O Mal no Pensamento Moderno: Uma História Alternativa da Filosofia], de Susan Neiman. A frase é a seguinte: “Uma teodicéia justifica a felicidade do poderoso e o sofrimento do fraco.”5 Embora o capítulo seja a respeito de Kari Marx, e essas palavras estejam num contexto de luta de classes, elas me fizeram pensar nas palavras de Ellen White: “E impossível explicar a origem do pecado de maneira a dar a razão de sua existência. … O pecado é um intruso, por cuja presença nenhuma razão se pode dar. É misterioso, inexplicável; desculpá-lo corresponde a defendê-lo. Se para ele se pudesse encontrar desculpa, ou mostrar-se causa para a sua existência, deixaria de ser pecado.”6

Embora suas palavras se refiram à origem do pecado e do mal, não seria aplicável o mesmo princípio? Pode o mal ser desculpado mais do que pode ser o pecado, que é o fundamento do mal? Explicar o mal, à semelhança do pecado, não seria desculpá-lo ou justificá-lo?

Suponhamos o seguinte: Uma mulher chega ao Céu. Depois de ali receber explicação para todas as manifestações do mal que sofreu na Terra, ela responde: “Oh! Sim, Jesus. Agora eu sei porque minha filha de 16 anos foi estuprada e morta diante dos meus olhos. Agora, tudo faz sentido; muito obrigada pela explicação!” O mesmo acontece com um suposto remido cuja família foi exterminada. Ele diz: “Oh! Sim, Senhor. Agora compreendo porque minha família inteira foi inocentemente metralhada na guerra. Quão simples e claro tudo está agora!”

Isso me parece quase obsceno. Porém, que outra opção existe, se nós assumimos, como sempre o fizemos, que há um motivo racional atrás de todo mal? Se todas as perguntas que fazemos sobre situações trágicas podem ser respondidas, então, tais ocorrências podem ser explicáveis, e até justificáveis. Acaso, fez Deus qualquer plano para que três mil pessoas estivessem juntas para morrer no dia 11 de setembro de 2001? Ou fez, e isso era parte de Sua providência, ou não existe nenhuma justificativa para a tragédia. Creio que é mais fácil aceitar a segunda alternativa; é mais plausível que a primeira.

Se alguma coisa é, por definição, inexplicável, então, não pode ser explicada. Em caso contrário, não é inexplicável. Estaríamos limitando Deus, ao afirmarmos que em Seu Universo pode existir o inexplicável? Bem, precisamos lembrar que onipotência não significa habilidade para fazer o que é logicamente impossível, e se alguma coisa é, por natureza, inexplicável, não tem explicação.

Teodicéia

Sendo assim, não teria Deus respostas para a suposta mulher cuja filha foi estuprada e morta, ou para o homem cuja família foi dizimada na guerra, nem para aqueles que perderam cônjuges, pais e filhos no fatídico 11 de setembro de 2001? Estão essas pessoas deixadas ao léu de suas dúvidas? Que tipo de teodicéia é essa?

A chave para compreendermos isso é encontrada, segundo acredito, na definição da palavra teodicéia. Esse termo significa justificação de Deus, não do mal. Aqui existe uma distinção crucial. O pecado e o mal não podem ser justificados; Deus pode. E a cruz é fundamental para essa explicação. Apenas sob a irresistível realidade de Cristo crucificado, do Criador em carne humana experimentando o sofrimento da humanidade, podemos começar a compreender como Deus poderia ser vindicado aos olhos de todo o Universo, incluindo a parte que tem sido atingida pelo sofrimento do pecado e do mal.

No contexto do clímax do grande conflito, Ellen White toca no coração da resposta: “Jamais se olvidará que Aquele cujo poder criou e manteve os inumeráveis mundos através dos vastos domínios do espaço, o Amado de Deus, a Majestade do Céu, Aquele a quem querubins e resplendentes serafins se deleitavam em adorar, humilhou-Se para levantar o homem decaído; que Ele suportou a culpa e a ignomínia do pecado e a ocultação da face de Seu Pai, até que as misérias de um mundo perdido Lhe quebrantaram o coração e aniquilaram a vida na cruz do Calvário. O fato de o Criador de todos os mundos, o Arbitro de todos os destinos, deixar Sua glória e humilhar-Se por amor do homem, despertará eternamente a admiração e a adoração do Universo.”7

Notemos: “as misérias de um mundo perdido” tiraram a vida do “Criador de todos os mundos”. Falando a respeito da cruz, Isaías diz que Jesus “tomou sobre Si as nossas enfermidades e as nossas dores” (Isa. 53:4). A palavra hebraica traduzida como “enfermidades” é holi, que significa “doença”. Já o termo traduzido como “dores” é makov, cujo significado é “dor, sofrimento físico e emocional”. Que dores, doenças e misérias Ele “tomou sobre Si” na cruz? Todas as dores, doenças e misérias do mundo. Assim, o que nós conhecemos apenas como nossas dores, enfermidades e misérias individuais, Ele carregou coletivamente sobre Si.

Essas implicações são cruciais para a teodicéia. Uma das citações de The Waste Land [A Terra Devastada], de T. S. Elliot, diz o seguinte: “Minhas sensações externas não são menos privadas, para mim, que meus pensamentos ou sentimentos. Nos dois casos, minha experiência cai dentro do meu próprio círculo, um círculo fechado no lado de fora.”8 Em outras palavras, o sofrimento humano limita-se a um círculo fechado, conhecido apenas de cada indivíduo sofredor. Ninguém pode sentir a dor do outro; conhecemos somente a nossa dor, e de mais ninguém.

A suposta mãe da filha estuprada e assassinada, o imaginário pai da família metralhada ou as três mil vítimas do 11 de setembro, nenhum deles sofreu mais do que um indivíduo pode sofrer. Embora estejamos sempre atordoados com o crescente número de calamidades, o sofrimento real é de cada vítima em particular. E mais: o sofrimento de cada um está sempre cercado pelos limites da humanidade. Entretanto, na cruz, as misérias de um mundo caído e perdido, suas doenças, dores e seu sofrimento, tudo caiu ao mesmo tempo sobre Cristo Jesus. Isso significa que Ele sofreu infinitamente mais que qualquer ser humano tem sofrido ou poderia sofrer individualmente. Quem pode acusar Deus de ser indiferente ou estar distante do nosso sofrimento, quando Ele o conhece mais agudamente, porque também o experimentou mais que qualquer um de nós?

Albert Camus escreveu: “Cristo veio resolver dois problemas: o mal e a morte, que são exatamente os problemas que preocupam o rebelde. A solução que Ele encontrou consistiu, primeiramente, em experimentá-los. O homem-Deus sofreu muito, com paciência. O mal e a morte  não Lhe podem ser inteiramente imputados, pois Ele já sofreu e morreu.”9 Camus só faltou dizer que “Ele já sofreu e morreu” de modo infinitamente pior que qualquer pessoa já tenha sofrido e morrido.

O exemplo de Jó

Outro elemento-chave para a compreensão desse assunto está no livro de Jó. Deus não deu àquele patriarca uma longa explicação sobre a razão pela qual sua propriedade foi destruída, seus filhos foram mortos e seu corpo foi tomado de feridas. Deu-lhe, porém, um lampejo de Si mesmo como Criador: “Onde estavas tu, quando Eu lançava os fundamentos da Terra?… poderás tu atar as cadeias do Sete-estrelo? … ou dás tu força ao cavalo?” (Jó 38:4 e 31; 39:19). Essa revelação foi bastante para que Jó, em meio à calamidade pessoal, pudesse exclamar: “Por isso, me abomino e me arrependo no pó e na cinza (Jó 42:6).

Porém, em vez de um simples lampejo, na segunda vinda de Jesus teremos uma clara visão de Deus (I Cor. 13:12), e O contemplaremos como Criador e Redentor. Pairando acima de todas as tragédias humanas estará a realidade de Jesus, “o Criador de todos os mundos”, que tomou sobre Si, coletivamente, tudo aquilo que conhecemos individualmente. Então, à luz do Calvário, que põe todas as coisas sob nova perspectiva, talvez não mais procuremos respostas, como o fazemos agora. O amor de Deus será tão aparente e irresistível, visto através de uma desobstruída visão da cruz, que Sua bondade e misericórdia serão compreendidas, ainda que não possamos entender todas as nuanças do mal.

Mas, o que dizer de textos como estes: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rom. 8:28); “Porque, agora, vemos como em espelho, obscuramente; então, veremos face a face. Agora conheço em parte; então, conhecerei como também sou conhecido” (I Cor. 13:12)? Que dizer a respeito desta afirmação: “Todas as perplexidades da vida serão então explicadas. Onde para nós apareciam apenas confusão e decepção, propósitos frustrados e planos subvertidos, ver-se-á um propósito grandioso, predominante, vitorioso, uma harmonia divina”?10

Significam essas afirmações que todo o mal será justificado? Evidentemente, Deus pode transformá-lo em bem. Por trás de todo sofrimento e amargura, Ele opera Seus planos, do modo mais justo e misericordioso possível, para dar fim à era do pecado. O fato de “todas as coisas” contribuírem “para o bem” não significa que tudo é bom; significa que Deus pode extrair o bem de todas as coisas.

Conhecer como somos conhecidos não significa conhecer o irreconhecível. Ver “um propósito grandioso, predominante, vitorioso” não é ter cada incidente de sofrimento, dor e injustiça dissecado e explicado. Podemos esperar ver, um dia, a soberana bondade de Deus revelada através de Sua solução para o pecado e o mal. Isso não é a mesma coisa como ter uma explicação racional para o mal e o pecado como se eles fossem componentes cruciais do plano abrangente de Deus. Em alguns casos, tais como a cruz, até poderia ser; mas não é assim em todas as situações. Apesar das ruínas da queda, Deus tem feito tudo para dar fim ao pecado e ao sofrimento humano, em medida justa e misericordiosa. O âmago de Sua ação foi a cruz.

Deus é amor

Em face de alguma tragédia, freqüentemente tenho perguntado: “Por que, Deus?” “Que razão possível existe para isso?” “A que propósito serve?” Mas, estou chegando à conclusão de que, talvez, eu esteja fazendo as perguntas erradas, procurando algo que não pode ser achado. Não há explicação para o inexplicável, e posso até dizer que existe um sentimento de liberdade, ao deixar de tentar responder o irrespondível.

Há pessoas que, diante de calamidades, tentam justificar o horror. “A doença de meu filho ajudou-me a ser mais compassivo”; ou, “Deus permitiu que minha esposa morresse para que eu passasse a orar mais”, e por aí vai. É verdade que Deus pode extrair coisas positivas de situações negativas; mas, qual é o custo-benefício da doença de um filho ou morte de um cônjuge para que um pai se tome mais compassivo, ou o cônjuge solitário ore mais? Não acho que Deus aja desse modo.

Tudo o que podemos fazer em relação ao mal é voltarmos à cruz. Ela nos diz, mesmo diante de uma tragédia irreparável, que Deus ama o mundo. Agarrados à cruz e tudo o que ela representa, podemos conseguir coragem e fé, confiança em Deus, para enfrentar situações que nos fazem chorar em angústia, e sobreviver a elas.

O padre Juniper, depois de anos cavoucando a vida dos cinco peruanos mortos, não encontrou nenhuma explicação racional para a tragédia da ponte San Luis Rey. Para sua desgraça, ele foi levado à Inquisição e condenado à morte. Enquanto estava na prisão, esperando o momento de ser queimado, tentou buscar em sua própria vida razões que o diferenciassem daqueles cinco peruanos mortos, mas não encontrou.

Clifford Goldstein, editor da Lição da Escola Sabatina em inglês

Referências:

1 Thornton Wilder, Tha Bridge of San Luis Rey (Nova York: Perennias Classics, 1998), pág. 7.

2 Alexander Pope, Essay on Man and Others Poems (Nova York: Dover Publications, 1994), pág. 46.

3 John Milton, Paradise Lost (Nova York: W. W. Norton Company, 1975), pág. 9.

4 Ellen G. White, O Grande Conflito, pág. 499.

5 Susan Neiman, Evil in Modem Thought (Prince-ton, NJ: University Press, 2002), pág. 105.

6 Ellen G. White, Op. Cit., págs. 492 e 493.

7 Ibidem, pág. 651.

8 T. S. Eliot, The Waste Land (Nova York: Har-court Brace, 1967), cf. 412, 54.

Albert Camus, The Rebel: An Essay on Man in Revolt (Nova York: Knopf, 1956), pág. 32. Ellen G. White, Educação, pág. 305.