Uma análise dessa aparente contradição nos escritos de Ellen White
Walter Alaña
Ao estudar os escritos de Ellen White, é possível dizer que existe contradição entre a instrução para deixar as cidades e a exortação para empreender uma evangelização urbana mais intensiva? É necessário ter cautela para lidar com esse tema e considerar as orientações dentro de seu contexto original. Ela relaciona o término da proclamação da terceira mensagem angélica com o fechamento da porta da graça, indicando que, quando o povo de Deus concluir a pregação do evangelho sob o poder da chuva serôdia, será capaz de resistir ao teste final. Em O Grande Conflito, Ellen White declarou: “Quando se encerrar a mensagem do terceiro anjo, a misericórdia não mais pleiteará em favor dos culpados habitantes da Terra. O povo de Deus terá cumprido sua obra. Recebeu a ‘chuva serôdia’, o ‘refrigério pela presença do Senhor’, e está preparado para a hora probante que está diante dele.”1
À luz dessa declaração, pode-se dizer que a melhor preparação para enfrentar a última crise é estar capacitado para participar da proclamação final. A pregação do evangelho é o único sinal do tempo do fim no qual o povo de Deus tem participação direta (Mt 24:14).
Continuamente, Ellen White incentivou os diferentes níveis eclesiásticos e as várias instituições da igreja a manter esse foco missionário, a fim de cumprir fielmente seu papel no cenário do tempo do fim. Suas diversas declarações sobre o estilo de vida dos adventistas do sétimo dia devem ser lidas e compreendidas dentro desse contexto.
Contradição aparente
À primeira vista, parece haver uma contradição entre as declarações de Ellen White sobre as cidades.2 Por um lado, há um conjunto de declarações em que ela promove a vida no campo como ideal; por outro lado, existem várias referências nas quais ela expressa grande preocupação com a evangelização dos centros urbanos.
A autora declarava repetidamente que o ideal de Deus para Seu povo é que ele viva em contato direto com a natureza. Por isso, aconselhava-o a deixar os centros urbanos, a mudar-se para áreas rurais e a aproveitar os benefícios da vida campestre. E quais seriam esses benefícios? Para ela, o campo proporciona o ambiente ideal para a educação dos filhos,3 promove o amadurecimento de uma espiritualidade autêntica,4 contribui para o desenvolvimento integral de todas as faculdades,5 pode ser uma solução para a pobreza6 e serve como medida de proteção contra os juízos divinos que cairão sobre as cidades.7
Contudo, a partir da última década do século 19, Ellen White começou a enfatizar a importância de proclamar a tríplice mensagem angélica nas grandes cidades de seu tempo, uma ênfase que ela manteve até o fim de seu ministério. Por mais de 20 anos, a líder destacou que a missão urbana ocupa um lugar especial na estratégia divina para evangelizar o mundo: “A mensagem que me é ordenado dar ao nosso povo neste tempo é: Evangelizem as cidades sem demora, porque o tempo é curto.”8
Assim, Ellen White considerava essa obra prioritária e urgente. Em 1910, num discurso feito em Mountain View, Califórnia, ela reafirmou a importância dessa questão. “Poucos ministros estão realizando um trabalho intensivo nesses centros maiores, onde milhares de pessoas precisam das verdades salvadoras que temos que proclamar. Os meios que deveriam ser usados para levar a mensagem às cidades parecem ter sido levados e usados onde talvez não devessem estar. Mas onde é vista uma preocupação em favor dessas cidades que há muito são apontadas como locais que devem ser trabalhados sem demora? Quem assumirá a responsabilidade dessa obra?”9
Solução divina
Ao revisar os escritos de Ellen White, encontramos um conceito que parece nos ajudar a articular as mensagens em que ela aconselha deixar as cidades e seus chamados para realizar evangelismo urbano intensivo. Os “centros” ou “postos avançados” surgem como uma solução divina para essa aparente contradição.
Ela afirmou: “Devemos elaborar sábios planos para advertir as cidades e, ao mesmo tempo, morar onde possamos proteger nossos filhos e a nós mesmos das influências contaminadoras e corruptoras que nelas tanto prevalecem.”10 Nesse sentido, propôs a seguinte estratégia: “Deve-se fazer o trabalho nas cidades partindo dos postos avançados. Disse o mensageiro de Deus: ‘Não serão advertidas as cidades? Sim; não porque o povo de Deus reside nelas, mas ao visitá-las para adverti-las do que está para sobrevir à Terra.’”11
Quanto às instituições adventistas, Ellen White ressaltou: “Repetidamente nos vem o Senhor instruindo que devemos fazer o trabalho nas cidades partindo de centros avançados. Nessas cidades, devemos ter casas de culto, como memoriais de Deus, mas as instituições para a publicação de nossa literatura, para a cura dos enfermos e para o preparo de obreiros devem ser estabelecidas fora das cidades. É especialmente importante que nossos jovens sejam protegidos das tentações da vida urbana.”12
Observe que, geralmente, as diferentes instituições da igreja na área de educação, saúde e publicações deveriam ser postos avançados localizados fora das cidades. Mesmo as famílias adventistas deveriam viver distantes dos grandes centros, visitando-os para alertar seus moradores do perigo iminente. Outro ponto interessante é que essas famílias deveriam gerar empreendimentos que beneficiassem a si mesmos e aos outros.13
Parece razoável crer que a aparente contradição entre a orientação divina de viver no campo e a relacionada à evangelização das cidades é resolvida quando os membros da igreja entendem que devem procurar fixar sua residência fora das grandes cidades, mas, ao mesmo tempo, desenvolver estratégias para pregar-lhes o evangelho, assim como fez Enoque.14
A importância de evangelizar as cidades fica evidente nas muitas orientações de Ellen White. Monte Sahlin revisou 107 artigos de periódicos nos quais ela se refere às cidades, dos quais 24 enfatizam a importância de deixar áreas urbanas, 75 aconselham a mobilização para o evangelismo nas cidades e 8 criticam as condições de vida nos grandes centros.15
Definição de “campo”16
O chamado inicial para deixar as cidades não é ir a lugares distantes e isolados. Em vez disso, os adventistas são aconselhados a se estabelecer em cidades (towns) ou vilas (villages). Isso é evidenciado na seguinte declaração: “Irmãos que desejem mudar de lugar, e que tenham em vista a glória de Deus, e sintam que pesa sobre eles uma responsabilidade individual de fazer bem aos outros, beneficiando e salvando pessoas por quem Cristo não poupou Sua preciosa vida, devem mudar-se para cidades pequenas [towns] e vilas [villages] onde exista pequena ou nenhuma luz, e possam ser de real utilidade, beneficiando outros com seu labor e sua experiência. Necessitam-se missionários que vão a cidades [towns] e vilas [villages] erguendo aí a bandeira da verdade.”17
Nesse ponto, é necessário esclarecer que Ellen White usava três termos para se referir às cidades: (1) Município/cidade (city), geralmente se refere a um espaço urbano com alta densidade populacional, no qual predominam o comércio, a indústria e os serviços. (2) Cidade (town), indica uma população menor, mas com limites claramente estabelecidos e prefeitura local. (3) Vila (village), denota uma pequena comunidade em área rural.18
Ao ler seus escritos, é importante considerar essa distinção para entender que, desde o início, o chamado para deixar as cidades incluía um claro foco evangelístico, conforme observado nesta declaração de 1891: “Há ao nosso redor cidades [cities] e vilas [towns] onde não se está fazendo esforço nenhum para salvar pessoas. Por que não haveriam de se estabelecer nesses lugares famílias conhecedoras da verdade presente para ali hastear a bandeira de Cristo, trabalhando com humildade, não à sua maneira, mas segundo a maneira de Deus, para proporcionar a luz àqueles que dela não têm conhecimento?”19
Além disso, Ellen White sugeriu uma possível distância que deveria existir entre a localização dos centros avançados e a cidade a ser alcançada com o evangelho. Em 1902, ela aconselhou: “Dessa forma, embora estejamos distantes das cidades [cities] trinta ou quarenta quilômetros, seremos capazes de alcançar o povo […] Deus realizará maravilhas por nós se, com fé, cooperarmos com Ele.”20
Observando essas orientações de maneira equilibrada, podemos concluir que ela não estabelece regras sobre locais de residência para famílias adventistas. Também é importante destacar que sua definição de campo não era específica. O que é campo para uma família não é necessariamente para outra. Fatores como antecedentes familiares, necessidades educacionais das crianças, disponibilidade de emprego e oportunidades para cumprir a missão devem ser considerados.
Deve-se notar ainda que ela não aconselha os movimentos rápidos nem a concentração de muitos adventistas em um só lugar,21 mas insiste na importância de cada família gastar tempo buscando a direção de Deus e segui-la, ao dizer: “Nenhuma mudança deve ser feita sem que tal passo e tudo o que ele implica sejam cuidadosamente considerados – tudo pesado. […] A todo homem é dada sua obra segundo a sua variada aptidão. Então, que ele não se mude hesitantemente, mas com firmeza, confiando humildemente em Deus. Pode haver indivíduos que façam tudo precipitadamente e entrem em algum negócio de que nada sabem. Deus não exige isso. Pensem com simplicidade, de maneira piedosa, estudando a Palavra de Deus com todo o cuidado e devoção, tendo o espírito e o coração despertos para ouvir a voz de Deus.”22
Hora de partir
Ellen White exorta o povo de Deus a deixar as cidades, mas essa partida deve ser progressiva. A princípio, a mudança deve ser de grandes centros para cidades menores. Em relação a essa primeira saída, ela adverte: “Repetidas vezes o Senhor tem dado instruções de que nosso povo deve tirar suas famílias das cidades [cities] para o campo, onde poderão cultivar seu próprio mantimento; pois no futuro o problema de comprar e vender será bem sério. Devemos começar, agora, a atender às instruções que frequentemente nos têm sido dadas: ‘Saiam das cidades [cities] para as zonas rurais, onde as casas não são aglomeradas, e onde vocês estarão livres da interferência dos inimigos.’”23
Ela também indica que chegará o momento de fugir. Primeiro, dos grandes centros às cidades menores. A última oportunidade de fazer essa mudança será quando a lei dominical for promulgada nos Estados Unidos. Em suas palavras, “Como o cerco de Jerusalém pelos exércitos romanos era o sinal de fuga para os cristãos judeus, assim o apropriar-se nossa nação [Estados Unidos] o poder no decreto que torna obrigatório o dia de repouso papal será uma advertência para nós. Será então tempo de deixar as grandes cidades, passo preparatório ao sair das menores para lares retirados em lugares solitários entre as montanhas.”24
Posteriormente, os fiéis terão que deixar os centros menores e fugir para áreas remotas e pouco povoadas. Os adventistas reconhecerão que esse momento chegou quando um decreto de morte for emitido contra eles. “Quando o decreto promulgado pelos vários governantes da cristandade contra os observadores dos mandamentos lhes retirar a proteção do governo, abandonando-os aos que lhes desejam a destruição, o povo de Deus fugirá das cidades e vilas e se reunirá em grupos, habitando nos lugares mais desertos e solitários.”25
Conclusão
Ao considerar essas orientações, podemos afirmar que há conselhos suficientes para tomar decisões sábias. Ellen White diz: “É a própria essência de toda fé correta fazer a coisa certa na hora certa.”26 Chegou, portanto, a hora de deixar as cidades? Chegou a hora de dar passos de fé em direção ao ideal de Deus.
A Bíblia ensina que toda vez que um filho de Deus decide dar passos de fé em obediência à direção divina, experimenta o cumprimento das promessas do Senhor (Js 21:43-45). Isso contribui para o pleno desenvolvimento de seu caráter (santidade); enquanto cresce progressivamente na capacidade de proclamar a tríplice mensagem angélica (missão), aspectos que constituem a preparação essencial para o breve encontro com Jesus.
Referências
1 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 613.
2 Ver Allan Novaes e Wendel Lima, “Country Versus City Tension: Historical and Socio-religious Context of the Development of Adventist Understanding of Urban Mission”, Journal of Adventist Mission Studies 15, n. 1 (2019): 52-71.
3 Ellen G. White, Vida no Campo (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015), p. 20, 21.
4 Ellen G. White, Mensagens Escolhidas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015), v. 2, p. 356.
5 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), v. 4, p. 136.
6 Ellen G. White, A Ciência do Bom Viver (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015), p. 190.
7 Ellen G. White, Vida no Campo, p. 45, 46.
8 Ellen G. White, Ministério Para as Cidades (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015), p. 23.
9 Manuscrito 9, 27 de janeiro de 1910.
10 Ellen G. White, Vida no Campo, p. 46.
11 Ibid., p. 44.
12 Ibid., p. 45.
13 Ellen G. White, A Ciência do Bom Viver, p. 183, 184, 193, 194.
14 Ellen G. White, Vida no Campo, p. 44, 45.
15 Monte Sahlin, Mission in Metropolis: The Adventist Movement in an Urban World (Lincoln, NE: Center for Creative Ministry, 2007), p. 16.
16 Algumas ideias dessa seção foram extraídas de Arthur L. White e E. A. Sutherland, Da Cidade Para o Campo (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2019), p. 5-63.
17 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015), v. 2, p. 115.
18 Ver Shundalyn Allen, “City, Town, and Village – What’s the Difference?”, <bit.ly/2NXorh7>, acesso em 24/5/2020.
19 Ellen G. White, Ministério Para as Cidades, p. 92, 93.
20 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010), v. 7, p. 79.
21 Ellen G. White, Conselhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010), p. 61.
22 Ellen G. White, Vida no Campo, p. 38, 39.
23 Ibid., p. 15.
24 Ibid., p. 47.
25 Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 626.
26 Ellen G. White, Notas Biográficas de Elena G. de White (Buenos Aires: Aces, 2014), p. 366.
Walter Alaña, diretor da Faculdade de Teologia da Universidade Peruana União