A possibilidade de extração de significado como um pressuposto hermenêutico adventista

O ser humano se encontra no mundo como ser que questiona. A busca por entender o que está à sua volta, a si mesmo e aquilo que não se pode perceber tem movido a humanidade. Os antigos sábios gregos questionavam o funcionamento da natureza (phisis) e buscavam sua origem (psiche). Cedo nasceu a filosofia como arte de busca pelo entendimento de Deus (theos), do homem e do mundo. No entanto, essa busca pressupõe que há algo a ser entendido, que o conhecimento é possível e existe uma verdade a ser descoberta.

Com o advento do cristianismo, a teologia cristã surge como tentativa de entender os mesmos conceitos (Deus, homem e mundo), mas a partir do Antigo e do Novo Testamento. Assim, o conceito de verdade continuou presente no sentido de que o escrutínio das Escrituras é a busca pela revelação divina da verdade.

Os cristãos herdaram esse entendimento da cosmovisão judaica, que tem como fundamento o fato de que os escritos religiosos hebreus surgiram como produto de direta revelação divina. Desde cedo, porém, tal teologia tem se consolidado sobre pressupostos filosóficos, inclusive os que se relacionam com a verdade.1

Vários métodos de interpretação desses escritos foram desenvolvidos com o tempo e, em todos eles, estava implícita a possibilidade de encontrar o “significado” do texto, que compunha a verdade absoluta e eterna na forma de informações de caráter espiritual necessárias à salvação do homem.

Entretanto, o despertamento crítico iniciado pelo Iluminismo mudou o paradigma metodológico de busca pela verdade, trazendo a experiência como fator indispensável para a aprovação de um dado conhecimento. Nesse tempo, a Bíblia também passou a ser analisada com um grau de racionalidade maior e com as mesmas ferramentas com que se examinavam outros
documentos antigos.

Nesse contexto, pode ser vista uma mudança na ênfase hermenêutica: em vez de voltar-se para o texto buscando seu significado, passa-se a priorizar o conhecimento da cultura do autor e o contexto histórico (sitz im leben) de sua composição, para que seu verdadeiro intuito possa ser entendido e fazer sentido no mundo do intérprete.2 De certa forma, essa corrente de pensamento incentivou o ceticismo quanto à origem e ao significado do texto bíblico. Entretanto, o conceito de verdade alcançável ainda existia.

Com o enfoque filosófico apresentado por Martin Heidegger, que coloca as realidades de Deus, homem e mundo em um mesmo plano temporal-histórico, houve novamente alterações no plano hermenêutico. O significado do texto como algo possível de ser alcançado pelo intérprete foi questionado por Hans-Georg Gadamer, tendo em vista o problema filosófico da finitude humana e a abordagem constitutiva da linguagem.3

Gadamer descreve o trabalho do intérprete como sendo o de busca por entender-se a si mesmo, através
do texto. Desse modo, o intérprete passa a ser o foco do trabalho hermenêutico. Assim, quando o horizonte histórico do texto se encontra com o horizonte de “pré-suposições” do intérprete, algo de significado pode ser encontrado.4 Esse, contudo, nunca será o sentido intencionado pelo autor.

Um novo conceito de verdade e significado então nos é apresentado: a verdade existencial/histórica, que não necessariamente precisa ser taxada como “verdadeira” segundo a concepção iluminista, mas cumpre o papel de resposta aos questionamentos do homem em seu próprio tempo e espaço e é inalcançável em outro momento.

Essa perspectiva dá abertura a uma abordagem hermenêutica bíblica mais existencialista e antropocêntrica, incentivada por desafios culturais de grupos específicos (mulheres, índios, pobres, homossexuais, etc.), gerando interpretações distintas e, às vezes, divergentes.

É importante perceber também que Gadamer não defende uma subjetividade absoluta da verdade, mas que a verdade alcançável é, em si, limitada.5 Uma aproximação do significado pretendido pode ser obtida, por exemplo, quando se leva em conta o horizonte histórico do texto e a tradição como reguladores do sentido descoberto.6

Esse conceito tem sido assimilado, se não a nível teórico, ao menos a nível prático, por muitos credos cristãos. Há, contudo, espaço para uma verdade existencial/histórica na cosmovisão adventista do sétimo dia?

Perspectiva adventista

O mundo cristão no século 19 era marcado por considerável variedade de denominações protestantes que, apesar de erguerem a mesma bandeira quanto à obtenção da verdade apenas por meio da Bíblia, o faziam com base em textos selecionados e com um pano de fundo filosófico.

A novidade adventista foi a tentativa de se eliminar os filtros de caráter filosófico de qualquer época, buscando se aproximar de uma “filosofia” biblicamente fundamentada. Para que isso ocorra, é obrigatório que se aceite que a Bíblia “é”, e não “contém”, a palavra de Deus; que ela transmite conhecimento verdadeiro, eterno e útil para a salvação do homem; que os princípios e valores nela apresentados não são historicamente condicionados e que suas proposições que lidam com história são fidedignas, tanto no que se refere ao homem quanto a Deus.7 Podemos dizer que o adventismo do sétimo dia surgiu do esforço de levar o princípio sola Scriptura a sério, incluindo nele os conceitos de tota e prima Scriptura,8 tornando a Bíblia a base epistemológica para o real entendimento de Deus, do homem e do mundo e da interação entre os três.

Aproximando-se das Escrituras com esses pressupostos, os adventistas chegaram a conclusões que os distinguem como grupo e dão o motivo de sua existência, entre elas: a fidedignidade do relato das origens, conforme apresentado em Gênesis; o real cumprimento das profecias na história; a literalidade do sacerdócio de Cristo no Santuário Celestial; e um relacionamento de continuidade e progressão entre a antiga e a nova aliança (de onde se deriva o conceito de validade da Lei moral como princípio eterno e universal e do sábado do sétimo dia como marca distintiva do povo de Deus).

Assim, os adventistas mantêm uma metanarrativa cosmológica chamada de “grande conflito”, na qual se inserem como movimento escatológico estabelecido por Deus para reparar as brechas do cristianismo enquanto preparam uma geração para estar em pé e aguardar a vinda literal de Jesus. Logo, um conceito de verdade que seja eterno, absoluto e imutável é imprescindível para a sustentação do sistema teológico adventista.

Se a verdade é de caráter puramente histórico, e a linguagem não permite que alcancemos o significado pretendido por Deus e pelo autor inspirado, a base da teologia adventista se corrói, trazendo abaixo toda a estrutura.

Contudo, o que dizer do conceito de “verdade presente” sustentado pelos adventistas? É mais fácil entender essa questão quando se compreende que a revelação progressiva nos moldes adventistas evidencia um relacionamento de unidade, continuidade, progressividade e diversidade entre revelações anteriores e posteriores, ou seja, uma nova revelação não anula uma anterior. Isso pode ser dito com respeito ao entendimento teológico, que é progressivo e que em cada momento histórico exige uma ênfase específica num aspecto da verdade (o que é bem exemplificado na interpretação adventista das cartas às sete igrejas em Apocalipse 2 e 3).

Desse modo, apesar de a verdade presente constituir-se de uma ênfase histórica e se manifestar por meio de um novo entendimento teológico, ela faz parte de um todo maior, considerado verdade eterna. Por isso, “verdade presente” não se relaciona apenas com o indivíduo em sua finitude histórica, mas é parte de uma verdade universal independente dele.

É preciso reconhecer, porém, que muitos dos postulados hermenêuticos modernos e pós-modernos têm valor, mesmo para a investigação bíblica adventista.Conhecer o contexto histórico do autor e da composição do texto, por exemplo, é uma tarefa legítima e útil para a extração do significado contido no texto,10 mas nossa incapacidade de fazê-lo perfeitamente não pode obliterar o testemunho que a Bíblia dá de si mesma, como palavra autoritativa de Deus para o homem.

Concluímos, então, que a busca pela verdade tem levado o homem a entendê-la de diversas formas. Em tempos recentes, Gadamer propôs aquilo que podemos chamar de verdade histórica, relevante na época e no local do autor, impossível de ser descoberta em outro local e época, mas que possibilita a criação de uma verdade igualmente histórica no tempo do intérprete.

Ficou claro ainda que o fundamento teológico adventista é incompatível com o modelo hermenêutico de Gadamer, já que pressupõe a existência de uma verdade universal, imutável, eterna, não historicamente condicionada e, principalmente, alcançável. 

Referências

  • 1 Fernando Canale, “Toward a Criticism of Theological Reason: Time and Timelessness as Primordial Presuppositions”, tese de doutorado (Berrien Springs, MI: Universidade Andrews, 1983).
  • 2 Grant R. Osborne, A Espiral Hermenêutica: Uma Nova Abordagem à Interpretação Bíblica (São Paulo, SP: Vida Nova, 2009), p. 601, 602.
  • 3 Luísa P. F. Silva, “Da ‘Fusão de Horizontes’ ao ‘Conflito de Interpretações’: A Hermenêutica entre H. G. Gadamer e P. Ricoeur”, Revista Filosófica de Coimbra, <https://goo.gl/CCJr8M>, p. 128-134.
  • 4 Vinícius Bonfim, “Gadamer e a Experiência Hermenêutica”, Revista CEJ, <https://goo.gl/2RnrEN>, p. 76-82; Aloísio Ruedell, “Gadamer e a Recepção da Hermenêutica de Friedrich Schleiemacher: Uma Discussão sobre a Interpretação Psicológica”, Veritas, <https://goo.gl/4inHZh>, p. 74-85; Silva, ibid.
  • 5 Silva, p. 141.
  • 6 Osborne, ibid.; Ruedell, ibid.; Silva, ibid.
  • 7 Nisto Cremos: As 28 Crenças Fundamentais da Igreja Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 11.
  • 8 Fernando Canale, Criação, Evolução e Teologia: Uma Introdução aos Métodos Científico e Teológico (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2016).
  • 9 George W. Reid (ed.), Compreendendo as Escrituras: Uma Abordagem Adventista (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2007), p. 29-35, 111, 112, 116.
  • 10 Osborne, p. 42, 43.