A eficácia ministerial será proporcional à condição espiritual do pastor diante de Deus
Clodoaldo Tavares dos Santos
Em meu último ano na faculdade de Teologia, ganhei o livro de Richard Exley intitulado Perigos que Rondam o Ministério. Nele, o autor adverte contra a lascívia e o poder, duas das principais ameaças que cercam a vida do pastor. Entretanto, penso que, apesar de seus efeitos danosos ao exercício do pastorado, a lascívia e o poder estão longe de ser comparados aos riscos de uma falsa espiritualidade, pois esta é exatamente a porta que nos leva a trilhar as veredas de todos os outros perigos.
Podemos nos enganar pensando que, devido ao fato de a natureza do trabalho pastoral envolver aspectos espirituais e sobrenaturais, isso seja garantia de uma espiritualidade saudável. Outro engano seria presumir que a grandeza que envolve o ministério da pregação seja proporcional ao nível espiritual em que supostamente nos encontramos.
Vejamos o que as Escrituras dizem sobre a espiritualidade do ministro do Senhor e suas implicações a partir de exemplos do Antigo e Novo Testamentos.
Exemplos do Antigo Testamento
A primeira consequência do pecado foi o rompimento do ser humano com seu Criador, ocasionando uma condição de desarmonia espiritual. A Bíblia diz que Adão e Eva “se esconderam” de Deus. O verbo esconder em hebraico é chava, e pode também ser traduzido como “se ocultou” ou “se afastou”. Ele se encontra no modo hitpael incompleto. Esse detalhe ajuda a compreender a natureza real da ação do primeiro casal. Assim, o tronco verbal indica que o sujeito realiza uma ação cujos resultados se voltam contra si mesmo. Nesse sentido, o ato de se esconder se voltou contra o próprio casal, pois, a partir dali, Adão e Eva viveriam continuamente fugindo da presença do Senhor. Por outro lado, por ser uma ação não concluída, existia a possibilidade de restabelecimento da relação, desde que o Senhor tomasse a iniciativa. E foi isso que ocorreu.
O ser humano, que originalmente desfrutava de uma relação natural com os Céus, experimentou uma inversão radical de seu relacionamento com Deus e Seu mundo.1 John MacArthur descreve os efeitos dessa ruptura: Eles não mais se preocupariam com os pensamentos de Deus, mas apenas com seus pensamentos (Sl 53:1; Rm 1:25); não mais teriam a visão espiritual, pois foram cegados por Satanás para que não vissem a glória do Senhor (2Co 4:4); não mais seriam sábios, mas tolos (Sl 14:1; Tt 3:3); não mais viveriam para Deus, mas estariam mortos em seus delitos e pecados (Rm 8:5-11); não mais amariam as coisas do Alto, mas as da Terra (Cl 3:2); não mais andariam na luz, mas nas trevas (Jo 12:35, 36, 46); não mais possuiriam a vida eterna, mas teriam de enfrentar a morte espiritual (2Ts 1:9); não mais viveriam dominados pelo Espírito Santo, mas pela carne (Rm 8:1-5).2
Portanto, a transgressão no aspecto espiritual foi, e continua sendo, a causa de todas as outras transgressões, inclusive as de cunho ético e moral. Ela provocou o sentimento de medo (Gn 3:10) e também atingiu as relações interpessoais. Assim, as conveniências humanas passaram a ter primazia, ainda que causem conflitos.
Como pastores, muitas vezes nos esquecemos de que estamos inseridos nesse contexto de rupturas e que, se elas começaram no âmbito espiritual, devemos procurar solucioná-las na mesma esfera. Se o chamado divino nos capacita a compartilhar as boas-novas de que é possível restabelecer o que foi quebrado no Éden, precisamos viver imersos nessa realidade. Devemos cuidar, pois paira sobre o círculo ministerial a ideia errônea de que “nosso desempenho é mais importante do que nossa pessoa, e de que nossa atuação é mais importante do que nossa condição diante de Deus”.3
De fato, os líderes bem-sucedidos do povo de Israel eram pessoas íntimas de Deus. Por exemplo, em Gênesis 6 o relato sagrado apresenta Noé. Ellen White afirma que o Senhor “enviou anjos a Noé para informar-lhe qual era Seu propósito a respeito dos habitantes do mundo antigo. O fiel filho da justiça declarou aos habitantes a mensagem segundo a qual cento e vinte anos marcariam o fim de seu tempo de graça.”4 Entre a maldade do coração humano e a alarmante extensão da corrupção humana apareceu a figura de um “pastor”. Sobre Noé pesou a responsabilidade de apresentar uma mensagem específica para aquele povo, de ser o líder espiritual de sua família e daquela sociedade imediatamente antes do juízo do Senhor.
A narrativa bíblica referente ao patriarca aponta para a característica principal que se espera dos ministros do Senhor, num tempo que se assemelha aos dias de Noé (cf. Mt 24:37): “Noé andava com Deus” (Gn 6:9).
A Bíblia evidencia ações divinas ativas e pontuais que demonstram o relacionamento próximo que Deus e Noé desenvolveram. Observe as expressões “Disse Deus a Noé” (Gn 6:13), “Disse o Senhor a Noé (Gn 7:1); “Disse também Deus a Noé” (Gn 9:8); “Lembrou-Se Deus de Noé (Gn 8:1) e “Abençoou Deus a Noé e a seus filhos” (Gn 9:1).
Todos os verbos hebraicos (dizer/falar, lembrar, abençoar) estão no incompleto. Dessa maneira, as ações divinas em relação a Noé eram contínuas devido ao relacionamento que eles estabeleceram. A obediência de Noé e o fato de ele ter erigido um altar ao Senhor revelam o perfil de um líder consagrado. A espiritualidade está relacionada com os valores verdadeiros e com as atitudes e os motivos corretos. Isso só é possível quando o pastor terrestre está em plena sintonia com o Pastor Celestial.
O Antigo Testamento apresenta uma galeria repleta de grandes líderes espirituais. Moisés, Josué, Samuel, Daniel, entre outros, só conseguiram desenvolver um ministério bem-sucedido porque se dedicaram a experimentar um relacionamento próximo com o Senhor.
Exemplos do Novo Testamento
Nas páginas do Novo Testamento, encontra-se também uma forte ênfase na vida espiritual dos líderes cristãos, tendo como exemplo supremo a vida do Salvador. O estilo de vida de Cristo atesta Sua espiritualidade. Apesar do vínculo essencial com o Pai (Jo 10:30; 12:45), há uma completa intimidade do Jesus humano com Deus, demonstrada pela prática contínua da oração (Mt 26:39; Mc 1:35; Lc 5:16; 6:12; 9:18, 28; 11:1; Jo 17; Hb 5:17).
No período dos apóstolos é possível observar que as evidências da espiritualidade serviam para demonstrar que eles, a igreja e os fiéis estavam em sintonia com a santidade de Deus. Pedro, Paulo, Tiago, João e os demais pastores da igreja apostólica apresentaram frutos que indicavam um alto nível de espiritualidade em sua vida e seu ministério, de acordo com a comunhão que desenvolveram com o Senhor.
Paulo vinculou o êxito na liderança pastoral à disposição ininterrupta de estar conectado a Deus. Por exemplo, ao falar com líderes, ele não deixou dúvida de que a essência do seu pastorado era servir ao Senhor (At 20:19). O apóstolo tinha a percepção clara de que, como ministro, era um “servo” (doulos, no grego) do Supremo Pastor. Isso fica claro na introdução de várias de suas epístolas (por exemplo, Rm 1:1; Tt 1:1).
Essa compreensão não era exclusivamente paulina. Tiago também evidenciou que seu apostolado se fundamentava na consciência de que ele era um servo de Deus (Tg 1:1). O mesmo aconteceu com
Pedro. Antes de se identificar como líder da igreja, em 2 Pedro 1:1, ele se apresentou como servo de Jesus Cristo.
Por sua vez, João se referiu a Cristo como o modelo de espiritualidade que os ministros devem ter: “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam” (1Jo 1:1). Observe a declaração da manifestação histórica do Verbo, o próprio Cristo, e da certeza da presença Dele na vida de João, o idoso pastor. Os tempos verbais que ele emprega não deixam dúvidas: os verbos ouvir e ver estão no pretérito perfeito e indicam um estado real e presente, resultado de uma ação passada.5
Em 1 João 1:3, o apóstolo insere outro elemento: “o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós” (grifo acrescentado). Além de ter visto e ouvido, João também afirmou que era seu dever anunciar, proclamar, evangelizar e pregar. A proclamação do evangelho se torna realidade somente após uma experiência espiritual, real e genuína com Cristo.
Observe que a espiritualidade bíblica não implica um isolamento ascético nem uma perspectiva sacerdotal que destaca a presença e influência dos clérigos em meio às multidões.
Que lição fantástica as Escrituras deixam como legado para os ministros do Senhor nesses textos! Antes de servirmos à igreja de Deus, precisamos nos tornar servos Dele. Nossos vínculos eclesiásticos se demonstram genuínos quando primeiramente nos encontramos ligados ao Supremo Pastor. A espiritualidade dos líderes diante das igrejas do Novo Testamento se estabeleceu a partir da sujeição do pastor-servo ao Pastor-Líder. O êxito do ministro ocorrerá somente se ele estiver ligado à videira verdadeira (Jo 15:1-5).
Conclusão
Espiritualidade é uma qualidade de caráter que Deus requer de Seus ministros, uma necessidade do pastor e uma demanda da igreja. Não é possível envolver-se em questões espirituais vivendo de modo carnal (1Co 2:12-14). Também não é possível tornar o reino celestial uma realidade em nossas igrejas se vivermos com os olhos voltados para as coisas terrenas.
Para desenvolver uma espiritualidade sadia é necessário romper com a alterreferência (tomar o outro como referência ou buscar atender as expectativas dos outros) e também com a egorreferência (tomar a si próprio como referência ou buscar atender suas próprias expectativas). A necessidade do ministério pastoral é o que se conhece como teorreferência (ser o que Deus deseja que sejamos). Em outras palavras, o Senhor é a única referência que pode reconduzir o ser humano à via da autenticidade.6 Somente um pastorado marcado pela teorreferência, sob os parâmetros da espiritualidade, poderá produzir os frutos esperados por Deus.
Por fim, presumo que diante das dificuldades da sociedade contemporânea e dos desafios inerentes ao ministério, precisemos de menos profissionalismo e mais espiritualidade, menos pastores profissionais e mais pastores vocacionados.
As conveniências, a impessoalidade e a autoconfiança que se revela nos sermões, nas famílias pastorais colapsadas e nas relações pastorais conflituosas devem nos despertar para a realidade da vinculação urgente do ministério pastoral com o ministério sacerdotal de Cristo. Creio que é chegado o momento de nos tornarmos ovelhas do Bom Pastor, a fim de que sejamos vistos como bons pastores pelas ovelhas de nossas igrejas.
Referências
1 John MacArthur, Pense Biblicamente (São Paulo: Hagnos, 2005), p. 55, 56.
2 Ibid.
3 Donald E. Price, Autenticidade ou Hipocrisia?
A integridade e os desafios do ministério (São Paulo: Vida Nova, 2001), p. 38.
4 Ellen G. White, Manuscrito 86, 1886.
5 Maximilian Zerwick e Joseph Smith, Biblical Greek (Roma: G & BP, 2011), p. 96.
6 Jonas Madureira, Inteligência Humilhada (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 194, 195.
Clodoaldo Tavares dos Santos, mestre em Teologia, é professor da Faculdade Adventista da Amazônia