Uma análise exegética de Jó 19:25

André Vasconcelos

O livro de Jó é uma verdadeira joia literária. À semelhança de um vaso de oleiro, suas palavras e frases parecem ter sido cuidadosamente modeladas, de modo a impressionar o leitor com sua estética e impactá-lo com a profundidade teológica de seus temas. Em Jó, arte e teologia convergem para transformar versos aparentemente despretensiosos em sublimes declarações de fé.

Esse é o caso de Jó 19:25: “Porque eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra.” Mesmo dilacerado pela perda de seus bens, filhos e da própria saúde, Jó confiava na justiça de seu redentor. Mas em que exatamente consistia essa esperança? Quem era o redentor de Jó? É possível dizer que Jó acreditava na ressurreição? O propósito deste artigo é responder a essas perguntas.

A identidade do resgatador

A primeira questão a ser respondida tem que ver com a identidade do “redentor” de Jó. No hebraico, o termo utilizado nessa passagem é o particípio do verbo ga’al, cujo significado básico é “redimir, “resgatar”.1 No Pentateuco, o go’el era o parente próximo que tinha o dever de resgatar a terra e as posses de seus familiares, caso contraíssem dívidas (Lv 25:25, 26, 30, 33; Jr 32:6-15). Também era seu dever se casar com a viúva de um parente que falecesse sem deixar filhos, a fim de suscitar a descendência dele e manter as propriedades da tribo (Rt 3:12; 4:1-6; cf. Dt 25:5). Além disso, correspondia a ele a obrigação de libertar um familiar que porventura houvesse sido vendido como escravo (Lv 25:47-54) e vingar o sangue de um parente assassinado (Nm 35:12, 19, 21, 24, 25; Dt 19:6, 12; Js 20:3).

Existe um intenso debate sobre a identidade do go’el de Jó. Alguns intérpretes o associam ao “árbitro” de Jó 9:33 e à “testemunha” que está no céu de Jó 16:19. Marvin Pope, por exemplo, afirma que o go’el de Jó poderia se referir a um ser intermediário, semelhantemente ao antigo conceito sumeriano de um deus pessoal que agia “como advogado e defensor na assembleia dos deuses”.2

David Clines, por outro lado, argumenta que a testemunha que advogaria a causa do patriarca deve ser identificada como o clamor dele em Jó 16:18. Partindo do pressuposto que a testemunha no céu se refere ao clamor de Jó e que os capítulos 16 e 19 falam do mesmo personagem, Clines conclui: “Não há um ser pessoal no céu para representá-lo. Somente seu grito, proferido na direção de Deus, é que fala em seu nome.”3 Embora essa tese seja interessante, é preciso levar em consideração o fato de que ela está fundamentada em uma afirmação ambígua, já que a testemunha de Jó 16:19 também poderia se referir a Deus (cf. 20, 21).

Há, porém, outra passagem que oferece um paralelismo mais esclarecedor. Em Jó 31:14, o patriarca se questiona: “Então que faria eu quando Deus Se levantasse no tribunal? E, se Ele me interrogasse, que Lhe responderia eu?” Os dois textos bíblicos, Jó 19:25 e 31:14, empregam o verbo qum (“levantar”) na terceira pessoa masculina singular do qal, na forma yiqtol, e tem como pano de fundo um contexto litigioso. Em ambas as passagens, o verbo qum comunica a imagem de uma corte (cf. Dt 19:15).4 O detalhe é que, no capítulo 31, Deus é o sujeito explícito do verbo. Jó tem em mente que, quando “Deus Se levantar”, será para julgar seu caso. É possível perceber nesse texto uma relação conceitual com Jó 19:26 e 27, em que o patriarca expressa o desejo de ver a Deus face à face e dialogar com Ele.

Esse paralelismo parece favorecer a ideia de que Deus é o go’el do capítulo 19, bem como excluir a possibilidade de haver um empréstimo da teologia sumeriana ou de a testemunha do capítulo 16 estar em paralelo com o clamor de Jó. Assim como o juiz no tribunal do antigo Israel tinha as funções da corte centralizadas nele (cf. Dt 16:18-22; 17:8-13), Deus poderia ser retratado como o “resgatador” e a “testemunha” de Jó ao mesmo tempo em que também é o responsável pelo julgamento dele. Outro fator a ser considerado é que se o autor quisesse usar uma metáfora mais ousada, como argumentado por Clines, ele poderia ter identificado o go’el do capítulo 19, evitando, assim, a associação natural do leitor com Deus.

O tempo do resgate

Quanto ao aspecto temporal da declaração de Jó 19:25, pode-se dizer que o termo ’acharon é um adjetivo/substantivo cujos principais sentidos são “último” e “posterior”.5 Merril Unger sugere que essa expressão seja uma referência aos “últimos dias”.6 No entanto, a construção consagrada na Bíblia Hebraica para retratar os momentos finais da história deste mundo é be’acharit hayyamim, “nos últimos dias” (ver Is 2:2; Jr 30:24; Ez 38:16, Dn 10:14, Os 3:5; Mq 4:1, etc.), e não we’acharon. Na verdade, determinar o sentido morfossintático da expressão we’acharon é uma tarefa desafiadora, pois essa é a única ocorrência na Bíblia Hebraica do termo ’acharon nessa forma, isto é, com a conjunção waw e sem o artigo definido.

Outra possibilidade seria ler a palavra ’acharon adverbialmente, com o sentido de “por fim” ou “depois” (cf. 1 Rs 17:13), como faz a maioria das versões bíblicas. Se a palavra ’acharon for entendida adverbialmente e não como um adjetivo, então poderia se referir a qualquer momento posterior ao enunciado. Também é possível que o termo seja interpretado como um substantivo. Nesse caso, formaria um tipo de epíteto divino, como em Isaías 44:6, verso em que a palavra ’acharon se aplica a Deus e qualifica o termo go’el. Nessa linha de argumentação, Pope, inclusive, relaciona o termo ’acharon com a expressão mishnaica e talmúdica ’achara’y, “fiador”.7

Independentemente da acepção e da morfologia precisa do termo, o mais importante nesta análise é descartar a possibilidade de que Jó estivesse se referindo ao dia escatológico do Senhor. Embora não a exclua totalmente, essa é a possibilidade menos provável, uma vez que diverge do uso consistente da expressão be’acharit hayyamim.

O lugar do resgate

O lugar do resgate é definido pelo termo ‘afar, que significa literalmente “pó”.8 Apesar de essa palavra ser empregada 26 vezes em todo o livro de Jó, em apenas oito dessas ocorrências está conectada à preposição ‘al por um maqqef (ver Jó 17:16; 19:25; 20:11; 21:26; 22:24; 34:15; 41:25 [41:33, NAA]; 42:6). E, dessas oito ocorrências, ao menos quatro se referem inequivocamente ao retorno do ser humano ao pó da terra (17:16; 20:11; 21:26, 34:15).

Em Jó 17:16, a palavra ‘afar é paralela ao termo she’ol, o lugar da habitação dos mortos. Em Jó 40:13, é paralela ao particípio tamun, que significa “esconderijo”, “prisão”,9 um termo adequado para retratar o sepulcro. Em Jó 10:9, a expressão we’el-‘afar teshiveni, “reduzir-me a pó”, ecoa a expressão we’el-‘afar tashuv, “e ao pó voltará”, de Gênesis 3:19, que indica o destino final do ser humano. Outro exemplo de passagem paralela é Jó 34:15: “Toda a humanidade morreria ao mesmo tempo, e o homem voltaria para o pó.” Além de esse verso compartilhar as expressões ‘al-‘afar e basar com Jó 19:25 e 26, a segunda parte da passagem segue a mesma estrutura morfossintática de Jó 19:25: sujeito10 (we’adam / we’acharon), complemento (‘al-‘afar / ‘al-‘afar) e verbo (yashuv / yaqum).

À semelhança da declaração do capítulo 34, Jó 19:25 parece indicar o destino inevitável do patriarca e de todos os seres humanos: o pó da terra. Como observado por Jacques Doukhan, a referência ao “pó” (‘afar) e à “pele” (‘or) em Jó 19:25 e 26 também levam o leitor de volta a Gênesis 3:19 e 21.11 Jó contrastou seu destino, a sepultura, com a esperança de um Resgatador vivo que vindicaria sua causa.

Contudo, Jó aparentava enfrentar um dilema a respeito da morte. Anteriormente, ele havia afirmado: “Como as águas do lago evaporam, e o rio se esgota e seca, assim o ser humano se deita e não se levanta; enquanto existirem os céus, não acordará, nem será despertado do seu sono. Quem dera me escondesses na sepultura e me ocultasses até que a Tua ira passasse! Quem dera me fixasses um prazo e depois Te lembrasses de mim! Quando alguém morre, será que volta a viver? Todos os dias da minha luta esperaria, até que viesse a minha mudança” (Jó 14:11-14).

Se essa passagem fosse lida de maneira isolada, o leitor poderia concluir rapidamente que Jó não concebia nenhuma possibilidade de ressurreição. O patriarca afirmou que o ser humano “não se levanta” (welo’-yaqum) e que ele “não acordará” (lo’ yaqitsu). Jó empregou justamente os dois verbos mais usados para retratar o conceito de ressurreição na Bíblia Hebraica.

No entanto, quando a passagem é analisada dentro de seu contexto, é possível observar que, ao mesmo tempo em que questiona se há uma possibilidade de o ser humano tornar a viver, Jó tinha esperança de que Deus Se lembrasse dele mesmo depois de encoberto pela sepultura. Essa esperança é reafirmada no capítulo 17. Da perspectiva humana, Jó não enxergava nada além da sepultura. Porém, sua esperança permanecia com ele: “Onde está, então, a minha esperança? Sim, a minha esperança, quem a poderá ver? Ela descerá até as portas do mundo dos mortos, quando juntos descansarmos no pó” (Jó 17:15, 16).

A pergunta crucial a ser feita é: Se Jó não conseguia ver nada além da sepultura e não tinha mais esperança de viver (Jó 17:1), em que momento ele esperava ser vindicado por seu go’el e comparecer perante Deus em “carne” (19:26)? Este artigo sugere que o mais natural seja pensar que Jó acreditava em algum tipo de ressurreição.

Resgatado do pó

Conforme vimos até aqui, as evidências sugerem que Jó tinha a esperança de que seu resgatador se levantaria sobre sua sepultura para julgar seu caso. A ideia de que haveria um momento de acerto de contas é indicada não apenas pelo verbo qum, mas também pela referência direta ao juízo (v. 29). Após depositar sua confiança em seu go’el e expressar o desejo de ver a Deus (v. 25-27), Jó encerrou o discurso ratificando sua esperança de que o Senhor defenderia sua inocência diante da acusação de seus amigos (v. 28, 29).

A imagem formada pelo verbo “levantar” e a referência ao “pó”, em um contexto de opressão e juízo, também conecta esse texto a outras duas passagens do Antigo Testamento: Daniel 12:2 e Isaías 26:19. Nesses dois textos, o substantivo ‘afar retrata o lugar da habitação dos mortos. Em Isaías, o verbo “ressuscitar/levantar”, do hebraico qum, é usado paralelamente ao verbo “despertar” (qits). Em Daniel, são empregados os verbos qits e ‘amad, “levantar” (Dn 12:2, 13). No caso de Jó, entretanto, o go’el se levanta sobre o pó e não do pó, como os mortos em Daniel e Isaías. Ele se levanta para vindicar o caráter de Jó, assim como Miguel “Se levanta” (‘amad) para defender Seu povo e ressuscitá-lo do “pó” (Dn 12:1, 2).

A relação entre Jó 19:25, Daniel 12:2 e Isaías 26:19 reforça o argumento de que o texto de Jó apresenta uma imagem de ressurreição. Embora Jó não estivesse se referindo necessariamente a um tipo de ressurreição geral, como a descrita em Daniel, ele acreditava que, após a morte, haveria um momento favorável em que se encontraria com Deus em carne: “Depois, revestido12 este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. Eu O verei por mim mesmo, os meus olhos O verão, e não outros […]. Se vocês disserem: ‘Como o perseguiremos?’ E: ‘A causa deste mal se acha nele mesmo’, então tenham medo da espada, porque tais acusações merecem o seu furor, para que vocês saibam que há um juízo” (Jó 19:26-29).

Conclusão

Digna de ser esculpida na rocha com pena de ferro e com chumbo, a declaração de Jó 19:25 revela a esperança do patriarca em uma ressurreição pessoal. Porém, acima de tudo, expressa sua confiança em Deus. Apesar da dificuldade de se interpretar essa passagem, podemos concluir que Jó tinha esperança de que seu Resgatador Se levantaria como testemunha/juiz para vindicar sua causa e provar sua inocência. Jó acreditava que seria liberto da tirania do pó da terra a fim de se encontrar face a face com Deus no tribunal divino.

Referências

1 William L. Holladay, Léxico Hebraico e Aramaico do Antigo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2010), p. 71.

2 Marvin H. Pope, Job: Introduction, Translation, and Notes, The Anchor Bible (New Haven, Londres: Yale University Press, 2008), p. 146.

3 David J. A Clines, Job 1–20, Word Biblical Commentary (Dallas, TX: Word, Incorporated, 2002), v. 17, p. 459.

4 Robert Alter, The Hebrew Bible: A Translation with Commentary (Nova York, Londres: W. W. Norton & Company, 2019), v. 3, p. 514. Ver C. F. Keil e F. Delitzsch, Biblical Commentary on the Book of Job (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1966), v. 1, p. 354.

5 Holladay, Léxico Hebraico e Aramaico do Antigo Testamento, p. 14.

6 M. F. Unger, Unger’s Commentary on the Old Testament: Genesis – Song of Solomon (Chicago: Moody Press, 1981), v. 1, p. 706.

7 Pope, Job: Introduction, Translation, and Notes, p. 146.

8 Holladay, Léxico Hebraico e Aramaico do Antigo Testamento, p. 396.

9 Holladay, Léxico Hebraico e Aramaico do Antigo Testamento, p. 175.

10 Nesse caso, o termo ’acharon foi considerado um substantivo.

11 Jacques B. Doukhan, “Radioscopy of a Resurrection: The Meaning of niqqepu zo’t in Job 19:26”, em Andrews University Seminary Studies 34, n. 2 (1996), p. 189, 190.

12 Quanto às possibilidades de interpretação do termo niqqfu, ver Doukhan, “Radioscopy of a Resurrection”, p. 191, 192.

André Vasconcelos, editor na Casa Publicadora Brasileira