A confiabilidade da hermenêutica dos autores do Novo Testamento

O Novo Testamento é frequentemente acusado de distorcer textos do Antigo Testamento.1 Um dos casos mais conhecidos é a citação de uma frase de Oseias 11:1 em Mateus 2:15: “para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor, por intermédio do profeta: Do Egito chamei o Meu filho”. O problema é que, aparentemente, Oseias estava falando apenas do Êxodo histórico e não de um futuro evento messiânico. Será que Mateus distorceu o sentido desse texto?

O assunto é importante, pois a hermenêutica adventista procede “implícita ou explicitamente da própria Escritura”, deduzindo normas e seguindo exemplos bíblicos de interpretação das Escrituras.2 Se a Bíblia guia a hermenêutica adventista fornecendo princípios interpretativos e exemplos ilustrativos, devemos extrair lições do exemplo de Mateus.

O texto em Oseias

Começamos examinando o contexto imediato3 de Oseias 11:1: a referência ao Êxodo, à posterior infidelidade de Israel (11:2-7) e sua restauração escatológica (11:10, 11). Os últimos versículos do capítulo 11 contrapõem a obediência final de Israel à sua desobediência inicial. O Egito aparece no começo e no fim, evidenciando um contraste entre o Êxodo inicial e a restauração final, que muitos intérpretes chamam de “novo Êxodo”.4

O contexto mais amplo do livro de Oseias revela que, para Israel voltar a Deus novamente, um novo Êxodo teria que ocorrer.5 Nesse caso, o Êxodo, portanto, é um evento tipológico, em vez de um mero acontecimento histórico.6 Assim, a expectativa de um novo Êxodo é acompanhada
da figura de um líder-Rei messiânico. O profeta faz referências separadas a um futuro retorno de Israel ao Egito (8:13; 9:3, 6; 11:5 [NVI]) e a um novo Êxodo escatológico com uma figura real à frente (“Davi, seu rei; […] nos últimos dias”; 3:5).

Aprofundando a compreensão acerca do texto, muitos estudiosos identificam alusões a Números 23 e 24 em Oseias 11:1.7 Oseias e Números apresentam a imagem do leão conectada à saída do Egito (11:10, 11;
Nm 23:22, 24; 24:8, 9) e aplicada tanto ao libertador (Os 11:10; Nm 24:7-9 [ACF]) quanto aos libertados: Deus, o futuro Rei,8 e o povo de Israel são comparados ao leão. Ao aplicar a mesma linguagem ao Messias e a Israel, a Bíblia indica que há uma identificação entre ambos.

Por sua vez, a imagem do leão de Números 24 é uma alusão à profecia messiânica de Gênesis 49:9 (“Judá é leãozinho; […] deita-se como leão e como leoa; quem o despertará?”),9 e é provável que Números 24:7 a 9 esteja descrevendo o futuro rei que sairá do Egito, o mesmo rei escatológico de Números 24:17 a 19. Isso significa que Oseias tinha em mente Números 23:22 e 24 e 24:7 a 9 que, por sua vez, aludem ao Messias prometido em Gênesis 49:9. Assim, foi com essa bagagem hermenêutica que ele escreveu “do Egito chamei o Meu filho”.

O Messias e Israel

O novo Êxodo é aplicado a Israel e ao Messias – ao coletivo e a um indivíduo. Um rei de Israel sai do Egito em Números 24 (que parece ser aludido em Oseias 11:10, 11) e a mesma imagem do “leão” descreve o povo (Nm 23:24) e o rei (Nm 24:9). Em Oseias 3:5, ambos, Israel e o Messias-rei, aparecem no novo Êxodo escatológico, quando os israelitas “nos últimos dias, tremendo, se aproximarão do Senhor” e de seu rei. A mesma imagem de “tremor” de Oseias 3:5 é usada para descrever o retorno de Israel em 11:10 e 11, em que eles também “tremendo, virão do Ocidente” e “tremendo, virão […] do Egito”.

Um intercâmbio entre Israel e o Messias também é evidente na profecia de Balaão (Nm 23, 24), em que o Êxodo histórico é vinculado ao êxodo do Messias, em um sutil jogo de palavras: “Deus os tirou do Egito [plural, referindo-se a Israel]” (Nm 23:22 [ACF]). Em Números 24:8, Balaão repetiu a mesma frase, aplicando-a ao futuro rei, apenas mudando o singular10 em plural: “Deus o [singular] tirou do Egito” (Nm 24:8 [ACF]).

Esse êxodo messiânico ocorre nos “últimos dias” tanto em Números quanto em Oseias (Nm 24:14, 17; Os 3:5). Assim, Números descreve um rei individual de forma intercambiável com o próprio Israel, o que explica a razão de Mateus ter aplicado a linguagem nacional corporativa de Oseias 11:1 a um rei individual, Jesus.

De fato, a identificação do Messias com Israel é um padrão encontrado no Antigo Testamento. Em Isaías 42 e 49 a 57, Israel e o Messias são chamados de servos de Deus, sendo o Messias um servo fiel
(Is 42:1-7), e Israel o servo cego, surdo e mudo (Is 42:19), que falha em sua missão (Is 42:18-22). O Messias é o servo que fará tudo o que Israel não conseguiu (Is 49:1-7) e, finalmente, restaurará Israel (Is 49:5, 6). Assim, há no Antigo Testamento a expectativa de um novo Filho, um novo Servo, um novo Israel, que teria sucesso onde o antigo Israel havia fracassado. Mateus não inventou nenhuma nova teologia nesse aspecto.

O texto em Mateus

É fato reconhecido que os escritores do Novo Testamento frequentemente citam uma passagem do Antigo Testamento como um indicador para que o leitor considere o contexto mais amplo daquela passagem citada.11 Em outras palavras, muitos textos do Novo Testamento trazem citações que resumem os argumentos do contexto maior.12 É como se, ao citar aquela única passagem, o escritor apenas começasse a puxar o fio do novelo, trazendo à mente dos leitores todo o contexto que a acompanhava. Mateus citou “do Egito chamei o Meu filho” puxando o fio, e esperava que um leitor judeu conhecesse seu contexto mais amplo.13

Ciente da identificação de Israel com a pessoa do Messias no Antigo Testamento, Mateus adotou a mesma abordagem corporativa de Oseias, assumindo que há um novo Êxodo em que o Messias representa corporativamente Israel.14

Desse modo, o evangelista apresentou uma correspondência entre a história de Jesus e a história de Israel,15 apresentando Cristo como o novo Israel e como o novo Moisés, liderando um novo Êxodo.16 O próprio Moisés havia predito a vinda de um profeta que lhe seria semelhante (Dt 18:15-18).
No monte da transfiguração, ele conversou com Jesus (o novo Moisés) sobre o iminente sacrifício de Cristo. Curiosamente, Lucas 9:31 emprega exatamente o termo grego êxodos para designar a “partida” de Jesus.17

Como foi com Israel, Cristo saiu do Egito após um decreto de morte (Mt 2:15), passou pelas águas do batismo como antítipo da travessia do mar Vermelho (Mt 3; a travessia do mar é chamada de “batismo” em 1Co 10:1, 2) e foi ao deserto (Mt 4:1). Contudo, Jesus venceu onde Israel fracassou.18

Essa correspondência entre Israel e o Messias está em toda a Bíblia, sendo Cristo o ápice da trajetória de Israel.19 Israel e Cristo são chamados de “filho de Deus” nas Escrituras.20 Usando uma expressão mais específica, Oseias descreve Israel como “filhos do Deus vivo” (Os 1:10), mesmo título aplicado a Jesus: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16:16).21

Se considerarmos que o Messias é chamado de Israel (Is 49:3), essa designação fica ainda mais clara, e evidencia que, ao identificar o Messias com Israel, Mateus estava apenas seguindo uma trilha aberta no Antigo Testamento.

Conclusão

À luz de tudo isso, podemos afirmar que Mateus não deu nenhum significado estranho ao texto de Oseias, mas expôs seu significado maior, respeitando seu contexto original mais amplo. Como há tipologia em Oseias, Mateus aplicou princípios tipológicos a Oseias 11:1. Há continuidade e homogeneidade entre ambos os autores.

Há teólogos que interpretam Mateus 2:15 como tipologia,22 abordagem “tipológico-profética”,23 “correspondência analógica”24 ou ainda sensus plenior.25 Seja qual for o nome da abordagem usada, nossa hermenêutica deve refletir coerentemente nossa visão das Escrituras, como Palavra de Deus.

Apesar de os autores inspirados nem sempre terem compreendido plenamente o que escreveram (1Pe 1:11, 12),26 Ellen White alertou contra os falsos mestres que “ensinam que as Escrituras têm um sentido místico, secreto, espiritual, que não transparece na linguagem empregada”.27

Se temos a mesma visão das Escrituras que os escritores da Bíblia tiveram, também devemos ter os mesmos parâmetros hermenêuticos. Se nossos métodos de interpretação devem ser deduzidos da própria Bíblia, se cremos que as Escrituras são sua própria intérprete, devemos ter a hermenêutica dos autores inspirados na mais alta conta, em vez de rebaixá-los a praticantes “inspirados” do “método texto-prova”.

A interpretação proposta neste artigo não pretende esgotar a questão. Muito mais pode ser escrito sobre o assunto, e cada passo pode ser discutido. Entretanto, creio que seja suficiente o que apresentamos para demonstrar que os autores do Novo Testamento praticaram uma hermenêutica refinada, e que temos muito trabalho exegético a fazer, o que demanda mais do que uma leitura apressada e superficial das Escrituras.

Segundo Ellen White: “Cumpre-nos exercer todas as faculdades da mente no estudo das Escrituras, e aplicar o intelecto em compreender as profundas coisas de Deus, tanto quanto possam fazer os mortais.”28 

Referências

1 E. Earl Ellis, “How the New Testament uses the Old”, em New Testament Interpretation (Grand Rapids: Eerdmans, 1977), p. 209.

2 Richard Davidson, “Interpretação bíblica”, em Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 78.

3 O documento “Métodos de Estudo da Bíblia”, votado pela Igreja Adventista do Sétimo Dia em 1986, estabelece que o intérprete das Escrituras deve estudar “o contexto da passagem sob consideração relacionando-o com as sentenças e parágrafos imediatamente precedentes e os que se seguem”, e “relacionar as ideias das passagens com a linha de pensamento do livro bíblico em sua totalidade”.

4 Richard Davidson, “New Testament use of the Old Testament”, Journal of the Adventist Theological Society, 5/1, (1994), p. 14-39.

5 Oseias fez diversas referências ao Êxodo histórico (2:14, 15; 12:9, 13; 13:4, 5), a um futuro retorno de Israel ao Egito (8:13; 9:3, 6; 11:5 [NVI]) e a um novo Êxodo escatológico com uma figura real à frente (“Davi, seu rei; […] nos últimos dias”; 3:5).

6 Yair Hoffman, “A north Israelite typological myth and a Judean historical tradition: The exodus in Hosea and Amos”, Vetus Testamentum, v. 39, n. 2 (1989), p. 170-173.

7 A 28ª edição do texto grego de Nestlé-Aland cita Oseias 11:1 e Números 23:22 e 24:8 como alusões em Mateus 2:15. E muitos pesquisadores identificam alusões a Números em Oseias 11. Ver Duane Garrett, Hosea (Nashville: Broadman and Holman, 1997), p. 229.

8 O texto hebraico de Números 24:7-9 traz uma referência no singular ao rei, como trazem as versões King James, ACF e NAS, e não uma referência plural ao povo, como na ARA.

9 Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2005), p. 34, 52, 205.

10 O que é dito sobre o passado de Israel em Números 23 é repetido em Números 24 como obra de um futuro rei. Infelizmente, essa estrutura paralela se perde na maioria das traduções em português, que colocam as formas singulares no capítulo 24 como plurais.

11 C. H. Dodd, According to the Scriptures (Londres: Collins, 1952), p. 74-133. Para uma discussão e bibliografia apoiando a conclusão de Dodd, ver G. K. Beale, Manual do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento: Exegese e interpretação (São Paulo: Vida Nova, 2013), p. 25-28 (especialmente 26, nota 11, p. 133).

12 Darrell Bock, “Use of the Old Testament in the New”, em Foundations for Biblical Interpretation (Nashville: Broadman & Holman, 1994), p. 101.

13 W. F. Albright e C. S. Mann, “Matthew”, The Anchor Bible (Garden City: Doubleday, 1971), p. lxii.

14 Não podemos afirmar que o “filho” de Oseias 11 seja um termo messiânico, mas Oseias 11:1 faz parte de uma matriz messiânica e, nessa matriz, a história de Israel aguarda a pessoa que a resume e recapitula. Nesse sentido, Oseias 11:1 espera tipologicamente o Messias. Ver D. A. Carson, “Matthew”, em Expositor’s Bible Commentary (Grand Rapids: Zondervan, 1984), v. 8, p. 92.

15 M. Eugene Boring, The New Interpreter’s Bible (Nashville: Abingdon Press, 1995), v. 8, p. 175.

16 W. D. Davies, The Sermon on the Mount (Cambridge: University Press, 1966), p. 16.

17 Outra expectativa do novo Êxodo seria o “novo Maná”, que Jesus cumpriu ao declarar-Se o “pão do Céu” (Jo 6:31-35, 48-58).

18 Israel foi desobediente (Os 11:2-5), Cristo não (Mt 4:1-11); Israel se rebelou após o batismo do mar Vermelho (Êx 15:22-26), enquanto Cristo foi elogiado pelo Pai após o batismo (Mt 3:17); Israel quebrou a lei logo após recebê-la (Êx 32), enquanto Cristo disse: “não vim para revogar [a Lei], vim para cumprir” (Mt 5:17); Israel caiu na idolatria (Os 11:1-5), mas Cristo defendeu a adoração só a Deus (Mt 4:1).

19 N. T. Wright, “Christian origin’s and the question of God”, em Engaging the Doctrine of God: Contemporary Protestant perspectives (Grand Rapids: Baker Academic, 2008), p. 21-36.

20 Êx 4:22, 23; Mt 2:15; 3:17; 4:3, 6; 8:29; 11:27; 14:33; 16:16; 17:5; 26:63; 27:40, 43, 54.

21 Há estudiosos que afirmam que Mateus 16:16 seja uma alusão a Oseias 1:10, e não uma coincidência. Ver, por exemplo, Mark J. Goodwin, “Hosea and ‘the Son of the Living God’ in Matthew 16:16b”, Catholic Biblical Quarterly, v. 67, n. 2 (2005), p. 265-283.

22 G. K. Beale e D. A. Carson, Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2014), p. 9.

23 Bock, p. 111, 112.

24 Andy Woods, “The use of Hosea 11:1 in Matthew 2:15”, <https://goo.gl/K76SVY>.

25 Walter Dunnett, The Interpretation of Holy Scripture (Nova York: Thomas Nelson, 1984), p. 61, 62.

26 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2004), p. 344.

27 Ibid., p. 598.

28 Ibid., p. 299.

Mateus não deu nenhum significado estranho ao texto de Oseias, mas expôs seu significado maior, respeitando seu contexto original mais amplo.

Isaac Malheiros, doutorando em Teologia, é pastor do Instituto Adventista Paranaense