Casamento e sexualidade no Gênesis
Stephen Bauer
Será que a Bíblia ainda é relevante para orientar a visão moral com relação ao comportamento sexual e casamento no século 21? O assunto é importante, pois a questão, por si mesma, evoca algo crítico sobre as Escrituras. As pessoas não andam por aí fazendo perguntas se a visão de Platão sobre o amor é relevante, nem se as fábulas de Esopo são significativas hoje. Tais questões são irrelevantes, porque não consideramos Platão nem Esopo autoridades morais ou espirituais. Eles são meramente autores humanistas a quem podemos aceitar ou não, sem consequências.
A Palavra de Deus é diferente de Platão ou Esopo. Aceitamos que os relatos bíblicos são revelação divina e, portanto, autoridade moral e espiritual. Acreditamos que a Bíblia é a palavra inspirada de Deus, única autoridade para a fé e a prática da vida. Mas como pode um Livro, que afirmamos ser autoridade espiritual e moral suprema, ser significativo ainda hoje, se ele foi escrito há milhares de anos? Seria a Bíblia um guia moral, porém ultrapassado, adequado somente para as épocas pré-científicas?
Há duas razões pelas quais considero que a Bíblia ainda é relevante para os nossos dias. A primeira, porque acredito que a natureza humana não mudou desde que as Escrituras foram escritas. Tecnologia, sociedade, ideologias políticas, nações e religiões vêm e vão, mas a natureza humana permanece essencialmente inalterada. Temos as mesmas ambições, desejos e medos que as gerações passadas. Por isso, questões sobre amor, casamento e sexualidade sempre serão relevantes.
A segunda é porque creio que “toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça” (1Tm 3:16). A inspiração das Escrituras significa uma reivindicação de autoridade moral e espiritual atemporal. Jesus e os apóstolos consideravam as Escrituras normativas para o cristão. A inspiração e a imutabilidade divinas exigem que o seguidor de Cristo veja as Escrituras como a palavra atemporal para a humanidade. A Bíblia não é simplesmente um produto das comunidades religiosas judaica e cristã e, portanto, não inspirada. Ela é a mensagem autoritativa de Deus para todas as épocas.
A resistência à Sua autoridade decorre, em parte, das tensões entre as crenças, anseios sociais e reivindicações sobre ela. Assim como a visão bíblica das origens contrasta com algumas crenças e teorias da evolução materialista, as normas bíblicas para o comportamento sexual e matrimônio também contrastam fortemente com valores e práticas da sociedade moderna. Esse contraste é especialmente evidenciado quando se acredita que Deus instituiu o casamento, e a expressão sexual que o acompanha, somente para propósitos sagrados e específicos. Esse choque entre os valores contemporâneos e bíblicos tem levado a humanidade a concluir que a sabedoria inspirada da antiguidade sobre os relacionamentos amorosos e conjugais não é mais relevante na era científica.
Considerando esses fatores, posso afirmar que a revelação e a abordagem bíblica sobre relacionamento e comportamento sexual é fundamentalmente relevante. A seguir, vamos examinar essas questões à luz do livro de Gênesis.
Fundamentos
O livro de Gênesis funciona como introdução teológica e filosófica à Bíblia. Os capítulos 1 a 4 apresentam as definições filosóficas para Deus, o ser humano e a natureza da realidade utilizadas no restante das Escrituras. Além disso, pessoas e temas que desempenham papel vital na teologia bíblica também são encontrados ao longo do livro. Por exemplo, Paulo desenvolve sua doutrina da justificação pela fé em Romanos e parte de Gálatas com base na história de Abraão. “Abrão creu no Senhor, e isso lhe foi creditado como justiça” (Gn 15:6, NVI). Gênesis, portanto, fornece a base primária e fundamental para o argumento paulino. A descrição do apóstolo a respeito do pecado como poder dominador e escravizador (Rm 3:9; 5:12, etc.) parece estar enraizada no primeiro uso bíblico do termo “pecado” em Gênesis 4. Aqui, o pecado fica à espreita como um predador perseguindo Caim para agarrá-lo e dominá-lo. Com base nesses exemplos, podemos esperar que o livro do Gênesis também forneça um fundamento moral e teológico para temas que envolvam romance, casamento e sexualidade.
Não é de surpreender que Jesus e Paulo tenham utilizado a história da criação para fundamentar os padrões morais sobre matrimônio e comportamento sexual (Mt 19; 1Co 6; Ef 5). Gênesis 1 e 2 diz que não era bom para os seres humanos viverem sozinhos; por isso, Deus criou um parceiro correspondente de um gênero diferente para que, no casamento, um homem e uma mulher se tornassem “uma só carne”. Moisés trata a criação de Eva como um exemplo protótipo para a humanidade: “Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne” (Gn 2:24, NVI). Curiosamente, Jesus e Paulo citam a versão da Septuaginta (LXX)1 de Gênesis 2:24, “tornando-se os dois uma só carne”2 (Mt 19:5; Ef 5:31). Ao adicionar a palavra “dois”, os tradutores da LXX especificaram o contexto do capítulo para descrever mais claramente o ideal de um homem mais uma mulher, duas pessoas no total, constituindo o casamento ideal.
Na história da queda, em Gênesis 3, o ideal para o casamento começa a se degradar, quando Adão e Eva perdem sua unidade ao cair em um jogo de culpa disfuncional. Nenhum deles queria assumir a responsabilidade por suas ações e contribuições para o desequilíbrio que se desenvolveu após a queda. A autopreservação e os desejos egoístas corroem a unidade e a santidade do vínculo, fragmentando o relacionamento. Hoje, essa dinâmica é incrivelmente semelhante à disfunção conjugal. Mas essas disfunções edênicas causadas pela queda foram somente o início do afastamento do desígnio divino.
Poligamia
A história rapidamente se encaminhou para uma nova direção em Gênesis 4. Lameque, um dos descendentes de Caim, tomou duas esposas para si (v. 19). Aqui temos o primeiro desvio registrado do ideal divino para a sexualidade e o casamento, a poligamia.3 No registro bíblico, a poligamia precede a promiscuidade e outros desvios do plano original de Deus. Isso sugere que os primeiros passos ocorreram em um contexto de ostensividade à preservação do ideal divino para o matrimônio, redefinindo-o para incluir múltiplos parceiros. A poligamia parece ter sido o ponto de inflexão que abriu caminho para desvios mais ousados no futuro.
A poligamia é certamente um assunto relevante hoje. Com o casamento sob redefinição radical na cultura ocidental, a poligamia está sendo reintroduzida nas discussões políticas e morais como opção legítima para aprovação legal e moral. Além disso, em muitas partes do mundo em que as culturas não são fortemente influenciadas pela moralidade judaico-cristã, a poligamia é permitida ou incentivada. Nas culturas poligâmicas, as esposas são vistas, até certo ponto, mais como propriedade do homem do que como pessoas plenas e independentes, criadas à imagem de Deus.
Em Gênesis 16 e 21, a poligamia novamente adentrou ao cenário com Hagar. O que parecia ser a solução para Abraão conseguir o filho prometido se transformou em pesadelo no relacionamento entre Sara e Hagar. Sara exigiu que Abraão abandonasse Hagar e a mandasse embora com Ismael. A dinâmica da disfunção familiar, rejeição, divórcio e abandono ressoam em muitos lares atualmente. O drama continua em Gênesis 29, com os casamentos plurais de Jacó com quatro mulheres. A disfunção produzida na família do patriarca e a resultante intriga, decepção, alienação, sequestro e escravidão, jamais poderia eleger seu clã como ideal divino para a vida familiar. Pelo contrário, ela introduz um registro negativo da poligamia e de seus efeitos.
Voyeurismo
Tendo começado a queda do ideal divino com a poligamia (Gn 4), descemos ao voyeurismo, a violação da privacidade, em Gênesis 9. Aqui encontramos uma história estranha sobre Cam e Noé, seu pai. O relato menciona que Cam viu a nudez do pai enquanto Noé estava bêbado e dormindo nu em seus aposentos. Logo após deixarem a arca, Deus havia reiterado as bênçãos e ordens edênicas para que Noé e seus três filhos fossem frutíferos, multiplicassem e enchessem a Terra (Gn 9:1, 18).
O texto hebraico diz: “Noé estava descoberto em sua tenda.” Nesse contexto, parece que Cam estava fazendo o papel de voyeur. A forte reação de Noé ao voyeurismo de Cam, combinada com a extrema reverência dos outros dois irmãos em não olhar, reforça a suspeita de que o problema de Cam foi mais do que apenas ver seu pai sem roupa. A reação de Noé aponta para algo muito sério. Certamente, essa história parece irrelevante em uma era de pornografia e prazer voyeurista, reforçando a santidade da sexualidade e o desígnio de Deus para que seja um ato privado entre marido e mulher, e não um espetáculo público.
Nesse ponto da narrativa de Gênesis, a trajetória de desvio do ideal divino mudou da poligamia para o voyeurismo, que reforçou a separação entre sexualidade e casamento, transformando-o meramente em um meio para alcançar o prazer pessoal. Com a história de Ló e suas filhas em Sodoma (Gn 19), descemos ainda mais em três novas formas de desvio.
Homoerotismo
A nova manifestação de desvio aparece quando os homens de Sodoma queriam obrigar Ló a colocar para fora dois hóspedes que estavam em sua casa para que eles os “conhecessem”. A sexualidade em Sodoma parece ter mudado do ideal edênico de casamento heterossexual para promiscuidade entre pessoas do mesmo sexo. Ló declarou que a ação homoerótica proposta era perversa (Gn 19:7). O fato de Ló oferecer a virgindade de suas duas filhas como substituta sugere que ele entendia o “estupro” das filhas como um mal menor do que as relações homossexuais.4 Certamente, a reação de Ló abominando a homossexualidade é relevante para a discussão dos direitos que gays e lésbicas querem defender na cultura contemporânea.
Estupro
Gênesis 34 registra a história de Diná. Um relato endossado por sua semelhança com a história do estupro de Tamar pelo seu meio-irmão Amnon.5 Muito provavelmente Diná tenha sido violentada. Consequentemente, a violenta reação de seus irmãos contra todos os homens de Siquém, e não somente contra Siquém, filho de Hamor, indica que eles viam o estupro dela como um ato profano e de humilhação, justificando, assim, a vingança mortal desencadeada por Levi e Simeão.
Alguns poderiam argumentar que o envolvimento de Diná foi consensual. Teríamos então a questão do sexo antes do casamento. Qualquer que seja a maneira pela qual interpretamos essa história, não podemos deixar de tratar o caso como um ato vil que faz eco aos comportamentos sexuais contrários ao ideal edênico.
Prostituição
Gênesis 37 apresenta o início da história de José. Depois que ele foi vendido a Potifar, o autor interrompe o relato e insere a história de Judá e Tamar, sua nora (Gn 38). Depois, volta a narrativa sobre José (Gn 39:1). Se descartássemos Gênesis 38, poucos sentiriam falta desse episódio. Além disso, o fato desse capítulo se concentrar nos comportamentos sexuais sórdidos dos filhos de Judá, e do próprio Judá, faz com que ele pareça não estar relacionado à história de José. No entanto, eu imagino que o autor usou Gênesis 38 para revelar ainda mais o caráter de Judá como um vilão e, assim, enfatizar o contraste com o virtuoso José.
Inicialmente, encontramos Tamar como viúva do primeiro marido, o primogênito de Judá, morto por Deus por um mal não especificado. Depois, Onã é convocado pelo pai para gerar um filho para seu irmão falecido, contraindo matrimônio permitido pela lei levítica com Tamar, sua cunhada. Porém, ele se negou a procriar, praticando o coito interrompido para impedir que Tamar engravidasse. Por isso, Onã também desagradou ao Senhor e acabou morrendo, deixando Tamar sem filhos.
Tamar esperou que Judá lhe desse seu outro filho, mas quando ele não o fez, ela se disfarçou de prostituta e enganou seu sogro, tendo relações sexuais com ele. Tal ato resultou em sua gravidez. É importante observar com que facilidade Judá se envolveu com uma suposta prostituta. Parece que casos assim eram normais naqueles tempos. A prostituição também é um tema relevante em nossa sociedade. Pessoas vendem seus corpos para obter dinheiro, outras compram sexo para ter prazer. Essa distorção da sexualidade não tem mudado ao longo dos séculos.
Adultério
Voltando a Gênesis 39, encontramos a esposa de Potifar. Ela parecia ver no sexo uma expressão de poder sobre os outros e se recusou a respeitar o “não” de José. Quantas violações ocorrem nos relacionamentos conjugais porque um dos cônjuges não respeita as recusas do outro? Certamente as questões envolvidas nessa história são temas que vivenciamos na sociedade atual.
A atitude de José contrasta fortemente com o comportamento do seu irmão e da esposa de Potifar. O que impressiona no relato é que José era solteiro; no entanto, revelou incrível discernimento moral. Primeiro, ele se esquivou das investidas sensuais e atitudes inapropriadas de sua patroa, a ponto de sair correndo da sala. Segundo, sua lógica moral é impressionante. “Ele, porém, recusou e disse à mulher do seu senhor: ‘Tem-me por mordomo o meu senhor e não sabe do que há em casa, pois tudo o que tem me passou ele às minhas mãos. Ele não é maior do que eu nesta casa e nenhuma coisa me vedou, senão a ti, porque és sua mulher; como, pois, cometeria eu tamanha maldade e pecaria contra Deus?’”(Gn 39:8, 9).
O argumento de José teve como base o dever de não trair a confiança de Potifar. Ele também apelou para o senso de lealdade da esposa do seu senhor. Isso foi de uma simplicidade brilhante e um poderoso apelo à razão. Contudo, o mais importante foi sua convicção de que se cedesse à tentação estaria pecando contra Deus.
O conceito moral principal estava na exceção. José disse: “Ele não é maior do que eu nesta casa e nenhuma coisa me vedou, senão a ti.” José argumentou que naquela casa não havia diferença alguma na representatividade entre Potifar e ele, exceto a esposa do seu senhor. Ou seja, seu argumento indicava que o único ponto que os diferenciava era que Potifar podia tê-la sexualmente, mas José, não. Na concepção do jovem, minar a exclusividade conjugal era infidelidade não apenas para com Potifar, mas contra Deus. Tal atitude violaria o desígnio divino estabelecido no Éden.
Os relatos do Gênesis revelam que o principal objetivo de Deus para a expressão sexual não é o prazer pessoal ou a procriação. O sexo não deve ser uma ferramenta para manipular as pessoas nem um meio para exercer poder sobre outros. Seu objetivo é promover o senso de singularidade e exclusividade entre marido e mulher dentro do matrimônio. Gênesis, portanto, relata o drama da disfunção que resulta do afastamento e da rejeição do ideal divino.
Conclusão
A fidelidade ao longo da vida conjugal é o plano de Deus para as famílias. Essa união deve promover e manter o senso de singularidade, exclusividade e peculiaridade. Em um mundo em que a infidelidade e o divórcio somam números alarmantes, as Escrituras promovem a fidelidade entre os cônjuges por toda a vida. O livro do Gênesis fornece os princípios divinos para essa dinâmica relacional.
Referências
1 Septuaginta é a tradução da Bíblia Hebraica para o grego.
2 Paulo usa Efésios 5:31 para união matrimonial e a expressão “uma só carne” (1Co 6:16) como um eufemismo para as relações sexuais.
3 Poligamia, do grego poly (muitas) e gynē (mulheres), significa ter múltiplas esposas.
4 John D. Barry, Faithlife Study Bible (Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2012), Gênesis 19:8.
5 Ambas as narrativas usam o verbo “forçar” (‘ānâ) em relação a humilhar.
Nota: Texto publicado originalmente no site do Biblical Research Institute. Usado com permissão.
A fidelidade ao longo da vida conjugal é o plano de Deus para as famílias. Essa união deve promover e manter o senso de singularidade, exclusividade e peculiaridade.
Stephen Bauer, professor de Teologia e Ética na Universidade Adventista do Sul, Estados Unidos