Já examinamos as palavras “gerado,” “unigênito” e “primogênito,” da maneira como foram traduzidas dos vocábulos gregos monogenes e prototokos, e vimos que, devidamente compreendidas e relacionadas com Cristo nosso Senhor, elas não se referem necessàriamente ao nascimento por geração humana.

O verbo grego gennao deve ser considerado. O pretérito perfeito do indicativo, gegenneka, literalmente — “Eu tenho gerado” — é encontrado três vêzes no Nôvo Testamento: Atos 13: 33; Heb. 1:5; 5:5. Cada um dêstes versículos cita o Salmo 2:7, e em tôdas essas referências a aplicação mais ampla diz respeito a Cristo nosso Senhor.

Antes de examinar cuidadosamente a expressão: “Eu hoje Te gerei,” será bom observar o contexto e ver se havia uma aplicação original para esta frase. A propósito disto, a expressão “Constituí o Meu Rei sôbre o Meu santo monte,” exige comentário (ver o Salmo 2:6). A tradução e aplicação dêste verso em várias versões é significativa. Notai:

“Mas tenho sido feito rei por Êle sôbre Sião, Seu santo monte, declarando a ordenação do Senhor: o Senhor disse para Mim: Tu és Meu Filho, Eu hoje Te gerei” (LXX [Brenton]).

“Eu, porém, sou designado rei por Êle sôbre Sião, Sua santa montanha, pregando Seu mandamento” (Douay).

‘“Investi Meu rei sôbre Sião, sôbre Meu sagrado outeiro.’ Declare eu a mensagem do Eterno” (Moffatt).

Oséias escreve a respeito do “dia do nosso rei” (Oséias 7:5), e o verso parece referir-se a uma festa ou celebração.

Diz a nova tradução inglêsa de Tiago Moffatt: — “No aniversário de ‘nosso rei’.” *

Goodspeed: — “Desde o dia em que êle se tornou rei.” **

Leeser: “No dia em que nosso rei tomar posse de seu domínio.”

Um comentário judaico declara o seguinte sôbre o Salmo 2:7:

“Eu hoje Te gerei.” Isto quer dizer “neste dia foste ungido Rei.” 1

Afirma outro comentarista judeu:

“Eu hoje Te gerei deve ser interpretado em sentido figurado. No dia de Sua entronização, o Rei foi gerado por Deus como Seu servo para dirigir os destinos de Seu povo. Quando o trono foi prometido a Salomão, Deus fêz a asseveração: ‘Eu lhe serei por Pai, e êle Me será por filho” (II Sam. 7:14). 2

Parece que a alusão original do Salmo 2 diz respeito a Davi ou Salomão, e à sua investidura como rei, sendo estabelecidos ou entronizados sôbre o santo monte de Sião. Esta interpretação significaria que o rei tinha dois aniversários: um, referente a seu nascimento físico, e o outro, indicado no texto, alusivo a seu nascimento simbólico, quando assumiu suas responsabilidades reais.

Consideremos agora a expressão “Gerei-Te,” e vejamos como ela tem sido explicada pelos comentaristas através dos séculos.

Se a interpretação já mencionada fôr correta, então gegenneka, de gennao, certamente é usado num sentido simbólico. Há muitos testemunhos sôbre êste ponto, como mostram as seguintes citações:

“Em vez do costumeiro ‘aniversário’ matinal, alguns comentaristas interpretam-no como significando a comemoração anual de sua ascensão ao trono.

“No Talmude babilònico (Bab. Aboda sara 10ª) há uma metódica argumentação sôbre o significado da frase, em que são apresentadas razões em favor da acepção ‘aniversário,’ mas em conclusão é dada preferência à interpretação: ‘o dia em que o rei ascendeu ao trono’.” 3

Que antigamente, em certas ocasiões, os reis consideravam os dias de sua elevação ao trono como um aniversário, pode-se perceber pelo seguinte :

“Tu és Meu filho, Eu hoje te gerei. A primeira parte do oráculo era uma expressão usada na adoção legal duma criança (cf. Código de Hammurabi 170-71). Do mesmo modo, tanto no Egito como em Babilônia, era expressada a idéia da especial relação entre um rei e o seu deus; dizia-se que o rei havia sido adotado por seu deus. … Eu hoje te gerei . . . denota o dia em que o rei ascendeu ao trono.” 4

“Êste é realmente o decreto do Céu, que proclamo aqui a todo o mundo: pois, de uma condição humilde e pobre, o Senhor me elevou à mais alta dignidade. Neste mesmo dia, por Sua ordem, começo a reinar, e posso chamá-lo o aniversário de meu reino; o que é apenas uma pálida figura duma muito mais surpreendente e notável exaltação de Seu Filho Cristo, ao qual determinou voltar novamente à vida depois de ser morto e sepultado. (Atos XIII:33, Rom. 1:4) e para ser então coroado com glória e honra, nos Céus.” 5

Aplicação de “Eu Hoje Te Gerei,” a Nosso Senhor

Como já foi mencionado, a expressão “Eu hoje Te gerei” é empregada quatro vêzes na Bíblia.

Naturalmente, surge a pergunta: A que acontecimento ou experiência se refere a palavra “hoje”? Com facilidade pode-se distinguir a primitiva aplicação a Davi ou Salomão, por ocasião de sua investidura como rei. Mas em sua aplicação mais ampla ao Senhor de Davi — o Messias, essa palavra tem sido debatida através dos séculos. Alguns insistiram em que ela se referia à encarnação de Cristo, outros, à Sua ressurreição, e ainda outros, à Sua entronização como nosso Sacerdote e Rei, após ascender ao Céu.

A aplicação dessa frase ao Messias nosso Senhor, evidentemente é múltipla, e bem pode referir-se a vários eventos distintos na vida de Cristo. Observemos os seguintes:

1. Aplicação a Sua Encarnação. “Tu és Meu Filho, Eu hoje Te gerei” (Heb. 1:5).

Isto está intimamente relacionado com o verso que segue: “Ao introduzir o Primogênito no mundo” (Heb. 1:6).

Estas duas passagens estão aí tão relacionadas que não deixam margem a dúvidas quanto à intenção do escritor da Epístola aos Hebreus. A aplicação dos primeiros versos dêste capítulo à encarnação, também é salientada pelos escritos do Espírito de Profecia. Ver Testimonies, Volume 2, pág. 426.

2. Aplicação a Seu Batismo. É verdade que em S. Lucas 3:22 a voz do Céu que proclamou a filiação divina do Messias, disse: “Tu és o Meu Filho amado, em Ti Me comprazo.” Mas na R. S. V. (Revised Standard Version, inglêsa), conquanto esta expressão apareça no texto, a nota ao pé da página dá outra tradução: “Eu hoje Te gerei,” a mesma forma que aparece no Salmo 2:7.

Evidentemente, há boas razões para esta nota na R. S. V., pois aquela expressão se encontra num dos manuscritos gregos, o Codex Bezae, e é citada por Justino Mártir, em seus Dialogues with Trypho (Diálogos com Trifo), capítulo CIII, e por Clemente de Alexandria, em sua obra lnstructor, capítulo VI.

A seguinte citação de S. C. Carpenter e apropriada nesse sentido:

“O . . . texto . . . ocidental, isto e, D (Codex Bezae), a antiga Versão Latina, Justino (C. Trypho., 89 e 103), Agostinho (De Cons. Evv., ii. 14), e algumas outras citações, declaram: “Tu es Meu Filho; Eu hoje Te gerei. O evangelho ebionita, citado em Epiph., Haer., XXX., 13, combina a versão “Ocidental” e a comum: Tu és o Meu Filho amado; em Ti Me comprazo. E mais uma vez: Eu hoje Te gerei . . . e novamente lhe veio [a João] uma voz do Céu: Êste é o Meu Filho amado, em quem Me comprazo.

“O texto “Ocidental” parece-se com a versão primitiva, e acredita-se (Harnack, Sayings, pág. 314; Oxford Studies, pág. 187) que ela deve ter-se encontrado em Q. . . . A versão “Ocidental” é uma citação (Sal. 2:7), e haveria a tendência natural de assemelhar as palavras do evangelho à linguagem conhecida do Velho Testamento.” 6

3. Aplicação a Sua Ressurreição. A ressurreição ocupa um lugar relevante na mente dos escritores do Nôvo Testamento, pois a referência no Salmo 2:7 constituía para êles vigorosa profecia da ressurreição de Cristo. Pode-se ver isto no discurso de Paulo, relatado em Atos 13, onde lemos: “Nós vos anunciamos o evangelho da promessa feita a nossos pais, como Deus a cumpriu plenamente a nós, seus filhos, ressuscitando a Jesus, como também está escrito no Salmo segundo: Tu és Meu Filho, Eu hoje Te gerei.

E novamente em Romanos 1:3 e 4: “Com respeito a Seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi, e foi poderosamente demonstrado Filho de Deus, segundo o espírito de santidade, pela ressurreição dos mortos.”

“A confirmação do Espírito de Profecia a esta aplicação é vista em Atos dos Apóstolos, pág. 172 e no O Desejado de Tôdas as Nações (3ª ed.), págs. 580 e 581.7

O seguinte excerto sôbre êste aspecto da questão deve ser observado com cuidado:

“Esta expressão, … só pode significar: neste dia declarei e manifestei-Te como Meu Filho, investindo-Te na Tua dignidade real, e colocando-Te no Teu trono. São Paulo ensina-nos a ver o cumprimento destas palavras na ressurreição de Cristo dentre os mortos. Foi por meio disso que Êle foi declarado ser (assinalado como, num sentido peculiar e distinto), … o Filho de Deus.” 8

4. Aplicação a Sua Investidura. É evidente que nosso Senhor foi “exaltado” (Atos 2:33) quando ascendeu ao Céu, após Sua gloriosa ressurreição; “Deus O exaltou sobremaneira” (Filip. 2:9); foi exaltado “acima de todo principado, e potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que se possa referir não só no presente século, mas também no vindouro” (Efé. 1:21); com efeito, foi “coroado de glória e de honra” (Heb. 2:9).

Isto também é salientado por Ellen G. White. Lemos:

“Com inexprimível alegria, governadores, principados e potestades reconhecem a supremacia do Príncipe da Vida. A hoste dos anjos prostra-se perante Êle, ao passo que enche tôda as Côrtes celestiais a alegre aclamação: ‘Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riquezas, e sabedoria, e fôrça, e honra e glória, e ações de graças’! … O Céu ressoa com altissonantes vozes que proclamam: ‘Ao que está assentado sôbre o trono, e ao Cordeiro, sejam dadas ações de graças, e honra, e glória, e poder para todo o sempre’.” 9

Há, porém, outro aspecto de Sua investidura que faremos bem em recordar. Isto inclui o tornar-se Êle nosso sumo Sacerdote bem como nosso Rei. Lemos:

Cristo a Si mesmo não Se glorificou para Se tornar sumo Sacerdote, mas Aquêle que Lhe disse: Tu és Meu Filho, Eu hoje Te gerei; como em outro lugar também diz: Tu és Sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque.” Heb. 5:5 e 6.

Esta aplicação do Salmo 2:7, mencionada acima, é uma clara referência a Seu sacerdócio. Citamos de Ellen G. White:

A ascensão de Cristo ao Céu foi, para Seus seguidores, um sinal de que estavam para receber a bênção prometida. Por ela deviam esperar antes de iniciarem a obra que lhes fôra ordenada. Ao transpor as portas celestiais, foi Jesus entronizado em meio a adoração dos anjos. Tão logo foi esta cerimônia concluída, o Espírito Santo desceu em ricas torrentes sôbre os discípulos, e Cristo foi de fato glorificado com aquela glória que tinha com o Pai desde tôda a eternidade. O derramamento pentecostal foi uma comunicação do Céu de que a confirmação do Redentor havia sido feita. De conformidade com Sua promessa, Jesus enviara do Céu o Espírito Santo sôbre Seus seguidores, em sinal de que Êle, como Sacerdote e Rei, recebera todo o poder no Céu e na Terra, tornando-Se o Ungido sôbre Seu povo.” 10

Outra pessoa expressou-se assim:

“Cumpre observar que em nosso Salmo o dia da confirmação própria do Rei é o dia de estar Êle sendo ‘gerado.’ O pormenor de tempo mencionado não é o comêço da existência pessoal, mas de ser investido de realeza. Por meio da correta compreensão do significado dessas palavras, o Nôvo Testamento considera-as cumpridas na Ressurreição (Atos 13:33; Rom. 1:4). Nela, como o primeiro passo no processo que foi completado na Ascensão, a natureza humana de Jesus foi elevada acima das limitações e debilidades da Terra, e começou a ser promovida ao trono. O dia de Sua ressurreição, de certo modo, foi o dia do ingresso de Sua humanidade em majestosa glória.” 11

5. Aplicação a Seu Segundo Advento. Alguns dedicados estudantes da Bíblia têm achado que a palavra “novamente” — palin em grego — de Hebreus 1:6, aplica-se também ao segundo advento. “E, novamente, ao introduzir o Primogênito no mundo.”

Diz uma melhor tradução do texto acima: “Mas quando quer que Êle introduzir novamente o Primogênito na Terra habitável” (Rotherham). “Mas falando do tempo em que Êle mais uma vez manifestar Seu Primogênito ao mundo” (Weymouth).

Se a palavra grega palin — novamente — fôr usada em relação a eisagage — introduzir, a referência aplica-se ao Segundo Advento.

“Que a declaração de Heb. 1:5 se refere ao Nascimento, é confirmado pelo contraste no verso 6. A palavra “novamente” é colocada corretamente na R. V. (Revised Version, inglêsa): ‘Quando Êle novamente introduzir o Primogênito no mundo.’ Isto aponta para Seu Segundo Advento, que é pôsto em contraste com o Seu Primeiro Advento, quando Deus manifestou Seu Primogênito ao mundo pela primeira vez.” 12

Referências

* De The Bible: A New Translation, por Tiago Moffatt. Copyright de Tiago Moffatt, 1954. Usado com permissão de Harper & Row, Publicadores.

** Smith e Goodspeed, The Complete Bible: An American Translation. Copyright 1939, pela Universidade de Chicago.

  • 1. Salomão B. Freehof, Commentary on the Psalms (Cincinate: União das Congregações Hebraico-Americanas, 1938), pág. 4.
  • 2. A. Cohen, The Psalms (Londres: Soucino Press, 1945).
  • 3. Emílio Schurer, History of the Jewish People in the Time of Christ, Vol. 2, div. 1, pág. 27.
  • 4. The Interpreter’s Bible, sôbre o Salmo 2:7 (Nova York: Abingdon Press, 1955).
  • 5. Patrício Lowth, Commentary on the Holy Scripture (Londres: Ricardo Priestly, 1822), Vol. 3, pág. 66.
  • 6. S. C. Carpenter, Christianity According to Luke (Londres: S. P. C. K., 1919, pág. 173.
  • 7. Ellen G. White, Atos dos Apóstolos, pág. 172; O Desejado de Tôdas as Nações (3ª ed.), págs. 580 e 581.
  • 8. J. Perowne, The Book of Psalms, sôbre o Salmo 2:7 (Londres: 1884), pág. 17.
  • 9. Ellen G. White, O Desejado de Tôdas as Nações (3ª ed.), pág. 621.
  • 10. Ellen G. White, Atos dos Apóstolos, págs. 38 e 39.
  • 11. Alexandre Maclaren, The Expositor’s Bible, sôbre o Salmo 2:7 (Grand Rapids: W. B. Eerdman, 1940).
  • 12. W. E. Vine, Expository Dictionary of New Testament Words (Londres: Oliphants Ltdª, 1941), Vol. 4, págs. 48 e 49.