Tôdas as palavras usadas no hebraico e no grego, que foram traduzidas por “gerado”, “primogênito” e “unigênito”, referiam-se principalmente ao nascimento natural. Às vêzes, como já foi declarado, foram empregadas num sentido simbólico. Neste artigo ocupar-nos-emos particularmente da palavra grega monogenes, que a Edição Revista e Atualizada no Brasil traduz por “único” (S. Luc. 7:12; 9:38); “unigênito” (S. João 3: 16; Heb. 11:17). Na Versão dos Setenta encontra-se esta mesma palavra, monogenes, que em português aparece como:

“predileta” (Sal. 22:20; 35:17). “filha única” (Juí. 11:34).

Na literatura apócrifa também se notam os seguintes exemplos:

“filha única” (Tobias 6:10).1

“único” (Livro da Sabedoria 7:22). 2

Como observação preliminar, pode-se concluir que monogenes realça a idéia de único, sempar,’ alguém que é estimado ou honrado acima dos demais na família. Entretanto, depois consideraremos esta parte mais diretamente.

Enquanto isso, notemos o seguinte:

1. Sentido e Significado de Monogenes

a. Que a idéia de filho “amado” faz parte do significado de monogenes, vê-se no caso de Abraão e Isaque.

Lemos em Hebreus 11:17:

“Pela fé Abraão, quando pôsto à prova, ofereceu Isaque; estava mesmo para sacrificar o seu unigênito (monogenes) aquêle que acolheu alegremente as promessas.”

Mas a Versão dos Setenta diz assim: “Toma teu filho querido (agapeton), a quem amas (egapesas) — Isaque.” Gên. 22:2.

b. Além disso, por ocasião desta experiência Isaque não era o único filho de Abraão; havia Ismael, que também era seu filho (Gên. 16:15; 17:23, 25, 26 etc.). Êste estava com catorze anos de idade ao tempo da grande prova de fé de Abraão. Alguns têm argumentado que havia uma diferença entre êles, pois Isaque era filho da espôsa de Abraão, bem como o filho da promessa. Isso é verdade, mas tanto Ismael como Isaque eram realmente filhos de Abraão; destarte Isaque não era o “unigênito” de seu pai, no sentido físico da palavra.

Josefo refere-se a êste ponto. No livro Antiquities, Vol. 20, capítulo 2, seção 1, há uma nota ao pé da página, feita pelo compilador, que declara:

“Josefo emprega aqui a palavra monogenes (filho unigênito), para descrever aquêle que é mais amado, como fazem tanto o Velho como o Nôvo Testamento, nos casos em que há um ou mais filhos além dêsse um (Gên. 22:2; Heb. 11:17).”

Isto é realçado pelo fato de que embora Jesus seja chamado “Filho unigênito”, também se faz menção dÊle como “o Meu Filho amado” (S. Mat. 3:17) e “Seu Filho amado” (S. Mar. 12: 6). Em S. Luc. 3:22 aparece a expressão “Filho amado”, mas num manuscrito grego, o Codex Bezae, é empregada a palavra “unigênito” em vez de “amado”. Esta versão foi adotada por Justino Mártir em seu “Diálogo com Trifo”, cap. CIII, e por Clemente de Alexandria, em sua obra lnstructor. 3

Quão mais significativo, pois, dar a “unigênito” (monogenes) o sentido de “mais ou muito amado”!

c. Até o verbo grego gennao, a palavra mais freqüentemente usada para gerar, nascer etc., é às vêzes empregada simbolicamente. Há diversos exemplos disto, mas destacaremos os seguintes:

  • (1) Produzir ou engendrar contenda e discórdia — “Repele as questões insensatas e absurdas, pois sabes que só engendram contendas.” II Tim. 2:23.
  • (2) Descrever a conversão, ou o ato de passar das trevas para a luz — “Todo aquêle que crê .. . é nascido de Deus.” I S. João 5:1 e 18.
  • (3) Indicar o princípio da sabedoria — “Antes de haver outeiros, eu nasci.” Prov. 8:25.
  • (4) Descrever a origem de Jerusalém — “A tua origem e o teu nascimento procedem da terra dos cananeus.” Ezeq. 16:3.
  • (5) Descrever o ato de forjar más ações — “Concebem o mal?’ Isa. 59:4.
  • (6) Expressar o nascimento duma nação (Isa. 66:8).
  • (7) Expressar a investidura do Rei Messias — “Eu Te gerei das entranhas da manhã.” Sal. 110:3, segundo a Versão dos Setenta.
  • (8) Descrever a aceitação de Cristo como Senhor — “Pelo evangelho vos gerei em Cristo Jesus.” I Cor. 4:15. Em vista dêstes exemplos e do fato de que gennao é usado simbolicamente, caso êste verbo aparecesse em S. João 3:16 em lugar do vocábulo monogenes, não precisaria causar dificuldades aos crentes. Em seus antigos escritos os judeus também admitiam que “o indivíduo que se tornou um prosélito é semelhante a uma criança recém-nascida.” 4

d. O significado de monogenes é revelado ainda em sua aplicação a Cristo nosso Senhor, em S. João 3:16, 18 etc. Mas como já mencionamos no presente artigo, êste têrmo foi usado com referência a Isaque, tendo mais o sentido de “muito amado”. Portanto, em relação a Jesus, a ênfase não pode ser dada apenas do ponto de vista de único; consiste mais no pensamento de que Cristo é supremamente amado, sem igual e incomparável, o “dom inefável” do amor de Deus para com a humanidade.

Outro ponto importante e decisivo é a própria palavra monogenes. Compõe-se ela de duas outras — monos, significando “único” ou “um só”, e genos. Esta última é uma palavra interessante, e muitos pensam que provém do verbo gennao, cujo significado principal e literal dá a idéia de nascimento, nascer, ser gerado etc. No entanto, cumpre observar que em genos há um n, ao passo que em gennao há dois. Segundo consta, sucede assim pràticamente tôdas as vêzes que êste vocábulo é empregado e em qualquer forma que apareça.

e. À luz das considerações anteriores, podemos compreender melhor o verdadeiro significado de monogenes, princípalmente ao ser aplicado a Jesus, o Messias.

Monogenes, proveniente de monos (um só, único) e genos (de ginomai), não se refere a nascer ou ser gerado, mas indica a qualidade inigualável da pessoa a quem se aplica.

Consideremos agora a palavra monogenes na literatura secular. Citaremos apenas alguns exemplos.

Nos escritos de Platão:

Em sua obra Timaeus 31 B, lemos que o céu é “único (monogenes) em sua espécie.” Nesta mesma obra 92 C, referindo-se novamente ao céu, menciona êle a “exclusividade de sua espécie.” A tradução encontra-se na Loeb Classical Library. 5

No livro Sabedoria de Salomão:

Falando da sabedoria, o autor declara haver nela um “espírito de inteligência, santo, único (monogenes) etc. (7:22). Tanto a Bíblia católica de Figueiredo como a de Matos Soares, traduzem esta palavra para “único”. 6

Na Epístola de Clemente:

Faz êle alusão a “certa ave chamada Fênix. Esta é a única (monogenes) de sua espécie.” 7

Mencionemos agora algumas referências bíblicas, segundo aparecem em várias traduções. Devido à controvérsia acêrca do vocábulo “unigênito”, ocorrida através dos séculos, alguns tradutores favorecem êste têrmo, mesmo em versões modernas. Alguns porém assumem o ponto de vista expresso acima, como pode ser notado a seguir:

f. Destaquemos quatro textos da Versão dos Setenta sôbre o emprêgo de monogenes – Juí. 11:34 (“filha única”) e Sal. 25:16 (“filho único”); Sal. 22:20 e 35:17 (“unigênita”). No último versículo a Edição Revista e Atualizada no Brasil traz a palavra “predileta”. Em 14 versões da Bíblia na língua inglêsa, monogenes é traduzido 7 vêzes por “unigênito”, 16 por “filho ou filha única”, 12 por “único”, 8 por “predileto” e cêrca de 20 vêzes por outras palavras, como “vida”, “solitário” etc.

No Nôvo Testamento, veja-se êstes quatro textos — S. João 1:14; 3:16 e 18; I S. João 4:9. Em 30 traduções diferentes monogenes é mais freqüentemente traduzido por “unigênito”, mas em grande número de versões aparece como “filho único”, “primogênito” etc.

Nas traduções francesas, princípalmente nas versões de Osterward e Segnod, encontra-se a palavra “único” em vez de “unigênito”. O mesmo sucede vom a Vulgata, que consigna unicus.

Em sua excelente obra, Moulton e Milligan dão a seguinte explicação de monogenes:

“Monogenes significa literalmente ‘único no gênero’, ‘singular’, ‘único’, . . . não ‘unigênito’, que seria monogennetos. … É . . . usado no Nôvo Testamento em referência a filhos ‘únicos’ . . ., sendo aplicado desta maneira em sentido especial a Cristo . . ., onde se dá ênfase ao pensamento de que Êle, como o ‘único’ Filho de Deus, é sem igual e capaz de revelar plenamente o Pai.” 8

Isto realça um ponto importante. Como já foi mencionado, monogenes provém de monos — “único”; e genos de ginomai. Se a idéia fôsse realmente “unigênito”, no sentido da descendência física, a palavra usada provàvelmente seria monogennetos, em que gennetos derivaria de gennao.

g.  Em vista da importância desta conclusão, apreciaremos o seguinte trecho sôbre esta vital palavra monogenes usada em S. João 3:16.

Tomás Scott:

“A segunda pessoa da sagrada Trindade pode ser mencionada como “o Filho unigênito”; porquanto nos conselhos eternos foi designada para ser a Imagem, o Representante e Revelador do Deus invisível, ao homem, em tôda época e dispensação. E nossa compreensão dÊle, como Filho, indubitavelmente deveria restringir-se à Sua participação na natureza divina, e o ato de representá-la ao homem; de modo que ‘quem viu o Filho, viu também o Pai’.” 9

Não parece haver dúvida de que ao ser aplicada a Jesus, esta palavra significa Alguém fora do comum e sem igual. Note-se os seguintes testemunhos de duas bem conhecidas autoridades na língua grega.

“Único (no gênero) de algo que é o exclusivo exemplo de sua categoria. … Na literatura joanina, monogenes é usado apenas com referência a Jesus. A significação de único pode ser perfeitamente adequada para tôdas as vêzes que aparece ali.” 10

“Não há dúvida de que a expressão ‘unigênito’ indica uma nuança da palavra grega monogenes, que raramente é salientada. . . . Quando Cristo é denominado monogenes huios, não se dá ênfase ao fato de que Êle como Filho ‘nasceu’ ou foi ‘gerado’ . . ., mas sim ao fato de que Êle é o ‘único’ Filho, de que como Filho de Deus é sem igual. Os tradutores latinos estavam certos ao traduzirem essa expressão por … Filius unicus (filho único), não por Filius unigentus (filho unigênito).” 11

Na verdade, como algumas traduções expressam o pensamento, Jesus de Nazaré, nosso Senhor e Salvador, foi realmente único. Era diferente de qualquer outro ser no universo. Permanece sem igual, como o Único que na qualidade de Deus Se tornou homem, sendo, enquanto estava na carne, tanto Deus como homem. Êle era “Emanuel . . . Deus conosco” (S. Mat. 1:23). Era único na Sua relação para com o Pai em Sua natureza divina; no fato de que revelou o Pai; no fato de que é nosso único Salvador e Redentor; no fato de que era sem pecado, não só em Sua natureza divina, mas também em Sua natureza humana.

H. R. Reynolds, no The Pulpit Commentary, realça êste pensamento da imparidade de Jesus, lembrando-nos de que no transcurso dos séculos jamais houve alguém como Êle.

“A afirmação dêste verso, no entanto, é inteira e absolutamente inigualável. O pensamento é completamente nôvo. Strauss declara-nos que a concepção apostólica de Jesus não tem valor histórico, devido a representar um estado de coisas que não ocorre em nenhuma outra parte da História. Ê exatamente isto que os cristãos sustentam.Êle, no mais profundo sentido, é incomparável na história da humanidade.” 12

Em virtude do que foi mencionado atrás, quão mais significativa se torna a palavra monogenes! Pensamos nela, não como indicando nascimento ou geração humana, mas sim como acentuando a natureza e a elevada dignidade de Cristo nosso Senhor. Assim, podemos parafrasear S. João 3:16 dêste modo:

Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o Seu Filho, Aquêle que é incomparável e tão maravilhoso que ninguém O pode descrever, para que todo o que nÊle crê não pereça, mas tenha a vida eterna.

Rerefências

  • 1. Livro de Tobias, na The R. S. V. apocrypha (Nova York; Thos. Nelson & Sons, 1957).
  • 2. Livro da Sabedoria, tradução de Matos Soares.
  • 3. Justino Mártir, Dialogue With Trypho, cap. 103; e Clemente de Alexandria, The lnstructor, Vol. 1, cap. 6, 1o. parágrafo, em The Ante-Nicene Fathers, Vol. 1.
  • 4. Talmude Yebamoth 21a, ed. Soncino.
  • 5. Platão, Timaeus, 31b e 92c, em Loeb Classical Library.
  • 6. Livro da Sabedoria de Salomão, tradução de Matos Soares.
  • 7. Clemente, First Epistle to Corinthians, em ANF, Vol. 1, cap. 25. Ver também Constitutions of the Holy Apostles, Vol. 5, 1ª seção, cap. 7, em ANF, Vol. 7.
  • 8. Moulton e Milligan, Vocabulary of the Greek New Testament, pág. 416.
  • 9. Tomás Scott, sôbre S. João 1:18, Commentary on the New Testament, Vol. 1, pág. 482.
  • 10. W. F. Arndt e F. W. Gingrich, Greek-English Lexicon of the New Testament, artigo “Monogenes”.
  • 11. Fernando Kattensbusch, Dictionary of Christ and the Gospels, artigo “Only Begotten”.
  • 12. H. R. Reynolds, sôbre S. João 1:14, em Pulpit Commentary.