Em artigo anterior (Ministério, Jul./Ago. 98), apresentamos uma síntese da história e desenvolvimento da doutrina da transubstanciação, da qual depende toda a estrutura da Igreja Católica. É compreensível a importância que seus líderes dão ao projeto eucarístico, pois é propósito fazer dele o projeto do mundo, a direção da História.’

Esta segunda abordagem do tema tem como objetivo apresentar três implicações relacionadas com a sua adoção.

Implicação hermenêutica

Os teólogos da Patrística e da Idade Média geralmente olhavam para a filosofia e literatura gregas como precursoras da teologia cristã, e até como um caminho que conduzia a ela. As opiniões de Platão (427-347 a.C.) e de Aristóteles (384-322 a.C) eram altamente consideradas. Foi em Alexandria, no Egito, que a filosofia grega influenciou de modo marcante o cristianismo. “Clemente de Alexandria foi o primeiro a aplicar o método alegórico na interpretação do Velho Testamento. Propôs o princípio de que toda Escritura deveria ser entendida alegoricamente.”2 Orígenes, seu discípulo, foi além dele, propondo que o Espírito Santo orientara a mensagem da Escritura em dois níveis: um para os que são realmente capazes de entender, e outro para as multidões que não a podem entender.3 Agostinho engendrou o sentido quádruplo da Escritura: literal, tropológico, alegórico e analógico. Segundo ele, “a letra mostra o que Deus faz; a alegoria mostra onde está oculta a nossa fé. O significado moral dá-nos regras da vida e a analogia mostra-nos onde terminamos nossa luta”.4 Esse quádruplo sentido, combatido pelos reformadores no século XVI, foi finalmente abandonado.

Para a Reforma, a Bíblia só tem um sentido. Enquanto que Sola Scriptura era uma frase predileta de Lutero, Calvino garantia que “a Escritura interpreta a Escritura”, ressaltando a importância de se estudar o contexto, a gramática, as palavras e passagens paralelas. Numa sentença que se tornou famosa, ele afirmou: “A primeira tare-fa do intérprete é deixar que o autor diga o que ele de fato diz, em vez de atribuir-lhe o que pensa que ele deveria dizer.”5

Alguns aspectos hermenêuticos deveriam pôr em guarda qualquer pessoa sin-cera quanto à doutrina da transubstanciação: as Escrituras interpretam a si mesmas (Luc. 24:27 e 44: João 5:39). Não se formam doutrinas bíblicas amparadas em apenas um ou dois textos. Como afirmou o apóstolo, “toda Escritura é inspirada por Deus … para a educação na justiça.” (II Tim. 3:15). É necessário, portanto, consultar o santo Livro e examinar tudo o que ele tem a dizer sobre determinado assunto ou doutrina.

O ensino da transubstanciação não é bíblico e ampara-se em textos fora do contexto. Nada existe nem no Velho nem no Novo Testamento que favoreça consistentemente a idéia da transubstanciação. No ritual típico do santuário terrestre, o cordeiro sacrificado representava Cristo (Isa. 53:7; João 1:29; I Ped. 1:19; Apoc. 5:8-12). Era, porém, um símbolo do Salvador, não Ele mesmo. Evidentemente, as palavras de Cristo – “Isto é o Meu corpo”, “Isto é o Meu sangue” (Mat. 26:26 e 28) – referindo-Se ao pão e ao vinho, durante a instituição da Ceia, são simbólicas.

No capítulo seis do Evangelho de João encontra-se um dos textos considerados fundamentais para os defensores da transubstanciação: “Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o Seu sangue, não tendes vida em vós mesmos” (João 6:53). De imediato, parece que o Senhor Jesus Cristo está recomendando o canibalismo aos Seus seguidores. Essa tese, porém, cai por terra ao ser observado todo o capítulo. Jesus alimentara miraculosa-mente a multidão, e o povo gostara da idéia de um multiplicador de pães e riquezas. Em linguagem forte, no entanto, o Mestre mostrou que o verdadeiro alimento, prioritário à vida, é o celestial. Ele é “o pão vivo que desceu do Céu” (João 6:51). Todavia não deve nem pode ser comido literalmente. Ele falava a respeito de Sua Pa-lavra e doutrina. “O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que Eu vos tenho dito são espírito e são vi-da” (João 6:63).

Implicação teológica

Se a transubstanciação é na verdade o chamado sacrifício sobre o altar romano, sendo com o sacrifício realizado sobre a cruz uma e a mesma coisa, podemos tirar algumas conclusões: O segundo não faz uma anamnesis, ou memória (I Cor. 11:24) do primeiro, mas uma repetição desnecessária. Conforme o concilio de Trento, “neste sacrifício divino que se celebra na missa, esse mesmo Cristo, que uma vez Se ofereceu a Si mesmo em forma cruenta sobre o altar da cruz, está contido e é sacrificado em forma incruenta… este sacrifício é verdadeiramente propiciatório”.6 Essa afirmação coloca a doutrina da transubstanciação em contraposição ao ensinamento da justificação pela fé em Cristo. Aliás, esse foi o principal motivo da acirrada oposição de Lutero à idéia da transubstanciação.

Por que precisaria Cristo morrer repetidamente no altar romano, se Deus considerou suficiente Seu único sacrifício na cruz (Heb. 9:24-28; 10:10-14)? A transubstanciação nega a unicidade e minimiza a eficiência do sacrifício do Filho de Deus, ao propor a sua repetição em cada missa. Algo que somente se explica pela profecia segundo a qual um poder se levantaria contra a validade contínua do eterno sacrifício realizado por Cristo na cruz, e Sua intercessão no Santuário celestial: “Sim, engrandeceu-se até ao príncipe do exército; dEle tirou o sacrifício contínuo, e o lugar do Seu santuário foi deitado abaixo” (Dan. 8:11). A expressão “contínuo” refere-se à validade contínua do perfeito e único sacrifício de Cristo, bem como à apresentação contínua do realizado sacrifício, que Cristo faz por meio de sua intercessão junto ao Pai, no Santuário celestial.

Enquanto os evangelhos apresentam o ministério do Filho de Deus na Terra, o livro aos Hebreus apresenta Seu ministério no Céu. Cristo é o perfeito e suficiente sacerdote de Seu povo, intercedendo junto ao Pai (Heb. 7:21-28; 8:1-7; 9:1-28). Um ministério sacerdotal terrestre e uma repetição do sacrifício de Cristo, na Terra, só tenderíam a obscurecer a validade de Sua Obra efetuada na cruz e Sua intercessão no Céu. Na linguagem do apóstolo, seria pretender a autoridade de “assentar-se no santuário de Deus” (II Tess. 2:3 e 4).

O exercício da transubstanciação exige a presença de sacerdotes, os quais, segundo o ensino do Novo Testamento, apenas eram tipos do Sumo Sacerdote celestial, Cristo Jesus (Mat. 7:51; Efés. 4:11 e 12; Heb. 8:1,

  • 2. 6 e 7; 10:1-12). A manutenção do modelo tipológico representa uma volta aos tempos do Velho Testamento, confundindo assim o adorador quanto aos aspectos da teologia no tempo presente.

A doutrina da transubstanciação acaba desviando os olhos do crente das claras etapas do plano da redenção: promessa, ritual do Santuário, morte de Cristo, intercessão no Santuário celestial.

A transubstanciação nega a unicidade e minimiza a eficiência do sacrifício do Filho de Deus, ao propor a sua repetição em cada missa. juízo pré-advento, purificação do Santuário celestial, segunda vinda de Cristo. É uma doutrina que basicamente ensina a justificação pelas próprias obras, pois Cristo Se torna monopólio do sacerdote. O povo tende a colocar mais confiança no suposto sacrifício da missa, que no único e perfeito sacrifício realizado uma vez por todas na cruz.

A 22a sessão de Trento definiu a realidade sacrificial da missa como um sacrifício oferecido pelos vivos e pelos mortos.7 Por isso, alguns vêem no sacrifício da missa, uma forma de ocultismo, reminiscência dos antigos cultos pagãos.

A síntese da doutrina católica com a filosofia grega na transubstanciação aconteceu quando Tomás de Aquino procurou explicar como o pão e o vinho se transformam no corpo e no sangue de Cristo sem alterar as aparências. Para ele, este seria um mistério que pertence à esfera da metafísica.8 O mesmo Tomás de Aquino afirmou que o corpo de Jesus estaria presente na eucaristia apenas substancialmente, mas não localmente. Isto é, o corpo de Cristo estaria em um local no Céu, mas estaria presente em substância, alma e natureza divina na eucaristia. Esse conceito, porém, abala a Cristologia, pois como poderia Jesus estar localmente no Céu e, substancialmente, com a alma e natureza divinas em cada ceia? Além disso, abala também a pneumatologia; afinal, qual a razão pela qual Jesus teria enviado o Espírito Santo, que é Deus não embaraçado com a natureza humana, para representá-Lo na Terra?

Implicação evangelística

A cruz do Calvário, e o que nela ocorreu, tornou-se o centro da teologia e da pregação apostólica. Paulo escreveu aos Coríntios: “Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado.” (I Cor. 2:2). A pregação de Paulo e dos apóstolos era suficiente, porque apresentava o poder da cruz. “Pois a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus.” (I Cor. 1:18). A glória dos cristãos estava na cruz do Calvário “Mas longe esteja de mim gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu, para o mundo.” (Gál. 6:14).

É evidente que o centro da pregação apostólica não foi o projeto eucarístico, mas o projeto do calvário. Comprometer a unicidade e suficiência do sacrifício de Je-sus na cruz torna confuso o caminho para o Céu. O apelo evangelístico enfraquece ao trocar Cristo uma única vez morto na cruz pelo Cristo morto e transubstanciado milhões de vezes nos altares romanos. Troca-se qualidade por quantidade, confundindo a memória da morte de Cristo com Sua morte real. “É pois deixar de anunciar a mor-te de Cristo de qualquer maneira no interior desta morte, mas ao lado dela. Toma-se então a cria por uma repetição do sacrifício de Cristo de propiciação por Si mesmo e em S+i mesmo.”’ A seguinte declaração poderia ser sufi-ciente para alertar o adorador sincero: “O serviço religioso da Igreja romana é um cerimonial assaz impressionante. O brilho de sua ostentação e a solenidade dos ritos fascinam os sentidos do povo, fazendo silenciar a voz da razão e da consciência. Os olhos ficam encantados. Igrejas magnificentes, imponentes procissões, altares de ouro, relicários com pedras preciosas, quadros finos e artísticas esculturas apelam para o amor do belo. O ouvido também é cativado. A música é inexcedível. As belas e graves notas do órgão, misturando-se à melodia de muitas vozes a ressoarem pelas elevadas abóbadas e naves ornamentadas de colunas, das grandiosas catedrais, não podem deixar de impressionar a mente com profundo respeito e reverência. Este esplendor, pompa e cerimônias exteriores, que apenas zombam dos anelos da alma ferida pelo pecado, são evidência da corrupção interna.”10

Concluímos que a transubstanciação surgiu e se desenvolveu em ambiente influenciado por alegorismo, neoplatonismo, aristotelismo e pouco conhecimento das Escrituras Sagradas. O Senhor Jesus Cristo instituiu a ceia do Senhor, e não o sacrifício da missa ou a transubstanciação. Suas palavras são simbólicas. O pão é um símbolo do Seu corpo, o vinho, um símbolo do Seu sangue. A Igreja faz memória, não sacrifício.

O contexto da ceia é de salvação (Luc. 22:20) e não de um sacrifício local. Repetindo o sacrifício de Cristo, a transubstanciação torna-se uma anomalia teológica que, por supervalorizar a eucaristia, separa o adorador do Calvário e da segunda vinda de Jesus. A Ceia do Senhor é uma cerimônia de grande importância. Os que, no devido espírito, dela participam olham para Cristo em Seu infinito sacrifício na cruz, e pela fé O contemplam retornando em glória e majestade. Renovam o vigor espiritual bem como seus votos de amor e fidelidade Àquele que por eles morreu, ressuscitou, intercede e há de vir buscá-los para Seu eterno reino. Por ocasião da Ceia do Senhor, Ele é representado pelo Espírito Santo (Mat. 28:20; João 14:16 e 26). O comer do pão e o beber do cálice demonstram a fé do participante no que os símbolos representam. Por isso, o apóstolo declarou: “Pois todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor até que Ele venha.” (II Cor. 11:26).

Referências:

  • 1. Arturo Paoli, Fraternidade no Mundo, Exigência da Eucaristia. São Paulo, Edições Paulinas, 1980, pág. 80.
  • 2. Louis Berkhof, Princípios de Interpretação Bí-blica. Rio de Janeiro, JUERP, 1985, pág. 22.
  • 3. E. E. Zinke, Abordagens da Teologia e dos Estudos Bíblicos, Brasília, DF, DAS, 1979, pág. 7.
  • 4. Henry A. Virkler, Hermenêutica, Miami, Editora Vida Nova, 1987, pág. 46.
  • 5. Ibidem, pág. 49.
  • 6. Theodore G. Tapppert, La Cena del Señor, Porto Rico, Editorial La Reforma, s/d, pág. 18.
  • 7. Ruet, A Missa na História, São Paulo, Edi-ções Paulinas, 1981, pág. 115.
  • 8. Tomás de Aquino, Exposição Sobre o Credo. Rio de Janeiro, Presença Edições, 1975, pág. 98.
  • 9. Jean-Jacques von Allmen, Estudo Sobre a Ceia do Senhor, Duas Cidades. 1968, pág. 125.
  • 10. Ellen G. White, O Grande Conflito, 30* ed., Casa Publicadora Brasileira, Santo André, SP. 1985, pág. 566.