Por que adotar o sétimo dia da semana, acima de qualquer outro, como um dia de repouso e culto? Por que atribuir uma importância tão grande a esse dia, ao contrário do que acontece com os demais? À luz da primeira vinda de Cristo e o repouso que Ele proveu, ou seja, o refrigério que Ele mesmo representa, através da fé para o crente, por que algumas pessoas continuam honrando o sétimo dia? Por que persistir celebrando o chamado dia de culto do velho concerto? Não é o sétimo dia um tipo ou prefiguração do repouso evangélico somente experimentado com a vinda do Messias? Por que não honrar todos os dias como “sábados”, desfrutando a entrada no repouso e santidade encontrados pela fé em Jesus Cristo?
Em todo o caso, qual é o significado desse dia tão peculiar?
Atualmente muitos cristãos e ministros evangélicos têm feito semelhantes perguntas com renovado interesse. Alguns adventistas do sétimo dia, que andavam ceifando no árido campo da tradição religiosa, esbarraram na maravilha do evangelho e, na alegria da sua descoberta, venderam tudo o que possuíam para tomar posse desse tesouro (Mat. 13:44). E também fazem, com agudeza inédita, as mesmas perguntas.
Uma concentrada produção de literatura sobre o tema tem causado impacto sobre alguns atuais e ex-adventistas; especialmente os que se uniram a congregações independentes. Alguns deles parecem estar bem na maneira como se levantam contra o sábado. Outros, cientes dessas questões, estão reconsiderando seus próprios sentimentos e opiniões.
Vamos estabelecer a questão central deste artigo de uma forma um pouco diferente: Por que o sétimo dia ainda é uma parte integrante do culto e da fé pós-messiânicos ou cristãos? Uma outra questão relacionada com essa, e que é mais fundamental, também deve ser levantada: Que impacto a vinda de Jesus, no primeiro século, realmente exerceu sobre a Lei e, Conseqüentemente, sobre o sétimo dia?
Tendo em mente tais questões, vamos fazer uma abordagem bíblica e teológica, tratando primeiramente, com as evidências do Antigo Testamento. Em seguida, examinaremos o impacto da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo sobre a Lei e o sétimo dia, e, então, refletiremos sobre algumas passagens do Novo Testamento que iluminam a posição tomada sobre o assunto por comunidades cristãs do primeiro século.
Embora a abordagem deste estudo não seja a tradicional, suas suposições e conclusões estão em total consonância com o pensamento e a crença adventistas do sétimo dia. A abordagem tradicional adventista para questões tais como a perpetuidade da lei simplesmente não é suficiente, por si mesma, para responder às inquietantes perguntas feitas pela iniciativa anti-sabática contemporânea. O que tentaremos fazer aqui é discutir a questão do sábado, não apenas na perspectiva de seu lugar na permanência do Decálogo, mas analisá-lo à luz de Cristo e do impacto que Seu primeiro advento causou sobre a lei e o próprio sábado. Assim, o artigo tem como objetivo projetar a autêntica alma cristã do sétimo dia, seu significado cristocêntrico, e seu destacado lugar escriturístico no novo concerto.
Vamos expor a natureza cósmica, pré-lapsariana, pré-hebraica, evangélica, moral e permanente do sétimo dia, tal como apresentada em passagens dos livros de Gênesis e Êxodo.
Três passagens bíblicas
“Assim, pois, foram acabados os céus e a Terra, e todo o seu exército. E, havendo Deus terminado no dia sétimo a Sua obra, que fizera, descansou nesse dia de toda a Sua obra que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo, e o santificou; porque nele descansou de toda a obra que, como Criador, fizera’’ (Gên. 2:1-3).
Essa passagem nos dá uma descrição histórica da origem e realidade do sétimo dia, como uma parte sagrada de tempo, divinamente especificada. É sugestiva de algumas realidades significativas para nossa discussão, as quais admitem a historicidade do relato de Gênesis.
O autor do Gênesis conecta inextricável e intimamente o sétimo dia com o relato histórico da criação. Dessa maneira, o sábado está ligado a essa imutável ocorrência, que é crucial para a natureza e identidade humanas. Quando o sétimo dia é ligado ou incluído à atividade criadora de Deus, recebe um claro significado cósmico, que transcende limitações temporais, locais ou litúrgicas. A instituição do sétimo dia antecede a promulgação de todas as leis, isto é, as leis cerimoniais mosaicas e, mais especialmente, o próprio Decálogo.
Em Gênesis 2, o sétimo dia não apenas está associado ao evento da criação, mas é santificado, abençoado e feito um dia de repouso, por Deus (v. 3). Na verdade, é a bênção divina que traz o sábado à existência. Desde seu início, e, portanto, por sua natureza essencial, ele tem pouco a ver com nossa usual compreensão dos concertos, tal como a mera estrutura do velho concerto.
O fato de que a santificação do sétimo dia precede em muito a entrega da Lei, no Sinai, também é inegavelmente crucial à sua natureza e significado. Portanto, também é crítico para a sua permanência e importância entre a família de Deus em todos os tempos, passado, presente ou futuro, da História. Devido a que o sétimo dia antecede a entrega de qualquer lei, não pode ser simplesmente ligado ao velho concerto de modo que, com o novo concerto, se torne obsoleto. Na realidade, em virtude da natureza e origem do sábado, ele pode muito bem ser encaixado acima ou dentro de todas as estruturas e conteúdos pactuais.
Possivelmente a mais significativa realidade implícita em Gênesis 2, no relato da origem do sábado, é o fato de que sua criação ou inauguração precede não apenas a nação hebraica e o advento formal da lei, mas também a entrada do pecado. O sétimo dia é distintamente pré-lapsariano. Por isso ele não pode meramente ser visto como algo cuja viabilidade depende da estrutura do velho concerto. Esse fato necessita ser mais amplamente explicado. Seu impacto negativo sobre a teoria de que o sétimo dia caducou, por ter sido incluído como parte do velho concerto cuja intenção inicial era, entre outras coisas, tratar da existência do pecado na vida de Israel, é mais que óbvio. Essa existência pré-lapsariana do sábado deve ser admitida pelo menos para questionar uma teologia que o rejeita por causa de suas ligações com o velho concerto.
É constrangedor ler ou ouvir a respeito de tentativas para eliminar ou dar ao sábado um reduzido significado na presente dispensação. Além disso, as únicas explicações que eu tenho encontrado envolvem pressuposições que, no seu âmago, questionam a validade dos relatos do Gênesis e do Êxodo. Isso é algo simplesmente inaceitável entre estudiosos da Bíblia. São raciocínios desconfortáveis, forçados, inconsistentes e inadequados. Devemos ser honestos para reunir todas as evidências bíblicas, sem nos posicionarmos de tal maneira que sejamos forçados a lançar mão de estratégias casuísticas.
Êxodo 16:1-30
Essa passagem relata a dádiva do maná, de Deus para os israelitas durante a peregrinação destes no deserto. O referido episódio, entre outros, evidencia o fato de que o conceito de sábado existia entre os israelitas antes de eles receberem o Decálogo no Sinai (Êxo. 20).
O envio do maná e as instruções sabáticas relacionadas com ele precederam a entrega das tábuas da Lei e, particularmente, o quarto mandamento.
Independente da questão se a nação israelita guardava ou não o sábado antes do Sinai, as instruções de Deus a Moisés sobre o modo distinto de colher o maná enquanto o sábado se aproximava, pressupõe uma certa compreensão da sua natureza antes do mencionado evento. É possível que enquanto Israel estava no Egito esquecera-se do sábado; e, antes da entrega formal da Lei, no Sinai, o Senhor usou a experiência do maná como preparo da nação para a expressão do Seu concerto naquele monte.
Se as evidências desta conscientização sabática pré-sinaítica, presentes no episódio relatado em Êxodo 16, forem contestados, também deve ser questionada a existência de uma herança moral na vida israelita, antes do Sinai, envolvendo princípios além dos que estão contidos nos Dez Mandamentos. É interessante notar que quase nenhuma tentativa é feita para argumentar contra a existência do sábado no culto e na tradição israelitas.
É muito pobre o argumento de que existem poucas, ou não existem, evidências da guarda do sábado ou de sua conscientização antes do Sinai. Embora seja verdade que não há grande volume de material bíblico nesse sentido, nenhuma pessoa bem-intencionada pode ignorar as evidências existentes e suas claras implicações. Historicamente, Gênesis 2 e Êxodo 16 precedem Êxodo 20. Considerando a natureza dessas passagens, é seriamente questionável ignorar ou rejeitar seus respectivos conteúdos.
Outra evidência textual é encontrada em Êxodo 5:1-9 e 15:25 e 26. O primeiro texto alude e pressupõe algum tipo de atividade cerimonial ou litúrgica que deveria ser celebrada no deserto. No capítulo 15, existe a menção dos “decretos” e “mandamentos” de Deus, que deveriam ser obedecidos. As duas referências implicam, no mínimo, a existência de algum hábito ou material cúltico, antes do Sinai.
Os capítulos 19 e 20 do livro de Êxodo contêm o relato da entrega das tábuas da Lei, no monte Sinai. Também incluem um quadro verbal do quarto mandamento (Êxo. 20:8-11). O modo como esse fato aparece no livro revela algumas coisas essenciais.
O Decálogo é definitivamente distinto de outras instruções ou informações civis ou cerimoniais, dadas por Deus através de Moisés. Isso porque o Decálogo foi dado de uma forma extraordinária, quando comparado com a maneira pela qual foram dadas as leis cerimoniais e os requerimentos civis para o culto e governo israelita; isto é, foram escritos por Moisés. Os Dez Mandamentos claramente aparecem no topo quando comparados a outras revelações mosaicas. Embora a obediência a leis, de qualquer tipo, seja inútil para salvar o homem, ninguém pode negar a primazia e o excepcional status verificados tanto no modo como os Dez Mandamentos foram dados, como em sua extraordinária substância e seu conteúdo universais.
O Decálogo foi entregue por Deus entre magníficas manifestações de luzes, trovões, relâmpagos, terremoto, fogo e fumaça, precedidas por advertências divinas e instruções para específico preparo. O próprio Moisés teve de subir ao monte. Esses fatos, além do ato de o próprio Deus esboçar com Seu dedo a essência de Sua vontade em tábuas de pedra, definitivamente o distinguem das leis cerimoniais e instruções civis, dadas por Deus a Moisés sob as circunstâncias mais tranqüilas.
Em tudo isso, é crucial notar ainda que o mandamento do sétimo dia é colocado junto de outros nove princípios morais no coração da Lei. Tal distinção claramente lhe atribui certa natureza moral e prestígio, superiores a qualquer significado local, temporário ou cerimonial. É altamente questionável fazer algum tipo de exceção do quarto mandamento, designando-lhe uma natureza transitória, cerimonial, ligada ao velho concerto judaico.
Tudo isso é fortemente confirmado pela redação do quarto mandamento. Ele começa com a palavra “Lembra-te”. Entre outras coisas, isso novamente sugere ou refere-se à existência do sábado antes do Sinai. A mesma redação, especialmente no verso 8, também é reminiscente das palavras de Gênesis 2. É óbvio que os seis O sétimo dia é parte e parcela das primeiras coisas. O fluir da ordem divina coloca o sábado no interior do círculo da origem de tudo.
dias de trabalho e o sábado, sétimo dia, refletem a atividade de Deus durante a semana da criação (v. 9), o que revela a inextricável ligação do sétimo dia ao significado cósmico do evento da criação. O sétimo dia é parte e parcela das primeiras coisas. O fluir da ordem divina coloca o sábado no interior do círculo da origem de todas as coisas, pois o verso II liga a santidade do sétimo dia com a obra criadora de Deus.
Em suma, a própria redação do quarto mandamento dá uma razão definitiva para sua colocação onde ele se encontra: “pois em seis dias, fez o Senhor o céu e a Terra…” Nessa importante afirmação, o sétimo dia não é designado como uma conexão cerimonial, cultural ou nacional, mas com um significado e origem cósmicos. Nenhuma conexão particular com a nação hebraica e suas cerimônias está incluída na redação do mandamento. De fato, Moisés requereu sua observância pelo povo hebreu, mas apenas porque isso foi estabelecido por Deus na Criação e, como os outros nove mandamentos, tem escopo e significado globais.
Nenhuma dessas evidências nega que o sétimo dia tenha conferido um especial significado cerimonial e litúrgico na vida e culto hebreus. O ponto principal, entretanto, é notar o fato que o sábado significa algo mais do que esses limitados padrões, tanto na vida de Israel como na Bíblia inteira.
Em suma, os relatos de Gênesis e Êxodo a respeito da origem do sétimo dia estabelecem sua natureza universal no tempo e no espaço. Esses relatos o confirmam como um algo mais que temporário, cerimonial e litúrgico, próprio dos judeus. Atribuir-lhe qualquer outra natureza ou limitar essa dimensão universal significa rejeitar a historicidade do relato bíblico, ou adaptar a única crônica confiável que temos sobre nossas origens aos conceitos humanos.
Neste ponto, a questão fundamental deste estudo começa a apresentar-se com renovada gravidade. Algumas pessoas argumentam que, embora tudo o que foi mencionado até aqui pareça ser verdade, porventura não introduziu Cristo uma mudança de paradigmas histórico e teológico que transformou ou reinterpretou o significado e a natureza da Lei e do sábado, inaugurando um “novo concerto”? Por que continuar observando o sábado como um dia sagrado de adoração, se, com o advento de Jesus Cristo, foi estabelecida uma nova ordem?
Se Jesus trouxe consigo, ou em Si, o principal repouso do evangelho, por que há necessidade de se observar qualquer dia particular de culto e louvor? Não é o sétimo dia simplesmente uma instituição do velho concerto, prefigurativa do repouso de fé inaugurado pelo Messias? Por que continuar em sombras, quando a realidade já apareceu?
Há, na verdade, numerosas passagens do Novo Testamento que podem ser usadas para fundamentar a discussão e responder a essas perguntas. Mas, em virtude da limitação do espaço, não podemos nos referir a todas elas.
Ao escrever aos cristãos da Galácia, Paulo enfrenta diretamente o problema do impacto causado pelo primeiro advento de Cristo sobre o papel da lei e o do evangelho na vida do crente. A tensão nessa epístola, bem como em outros escritos de Paulo, é entre a lei e Cristo como meios de salvação, mais do que entre lei e graça.
No coração do problema estavam os judaizantes, ou “alguns da seita dos fariseus” (Atos 15:5). Eles eram insistentes em sua crença de que a emergente comunidade cristã deveria adotar obrigações cerimoniais ou mosaicas, tais como a circuncisão e a observância de dias santos. Mantinham firme a idéia de que os cristãos gentios eram obrigados a continuar guardando toda a lei (como Paulo mostra em Gál. 5:1-6), a fim de conseguir o favor de Deus. É bom lembrar que isso envolvia observâncias tais como a circuncisão, além de todo o sistema mosaico que incluía o Decálogo.
É com isso em mente que Paulo escreveu às igrejas gálatas, buscando desanuviar suas mentes de tais ensinamentos. Em toda essa questão, é possível verificar não apenas que Paulo era contra os ensinos judaizantes, mas qual era, realmente, o seu ensino. Qual era o seu evangelho, e como ele se relaciona com a lei?
Na carta aos gálatas, Paulo apaixonadamente lembra aos crentes o evangelho que ele lhes ensinou, ou seja, o evangelho de Cristo, o qual essencialmente proclama que a lei representa maturidade e completo crescimento em Jesus Cristo. Ele fez isso mostrando como Cristo, através da fé, os tinha libertado da “tutela da lei” (Gál. 3:23) a fim de que pudessem ser “batizados em Cristo” e dEle revestidos (v. 27), tornando-se de Cristo (v. 29).
Paulo e a lei
Mas, que significado tem isso, especialmente em relação à nossa visão de lei, fé, Cristo, e sétimo dia? À qual lei estava Paulo se referindo quando falou aos gálatas que ela os tutelava? Qual era a tutela da qual, desde a vinda de Cristo, (ou da fé), os gálatas foram libertos (Gál. 3:23-26)? Para responder a essa interrogação crucial, é fundamental que nos reportemos a um importante capítulo da história adventista do sétimo dia.
Gálatas 3:19-25 foi o ponto focal da famosa controvérsia que agitou a Igreja Adventista, em 1888, durante a assembléia mundial realizada em Minneapolis. Até então, muitos afirmavam que a lei mencionada por Paulo, em Gál. 3, era simplesmente a lei cerimonial ou lei de Moisés, essencialmente os estatutos que governavam a vida litúrgica de Israel, tal como vemos nos livros de Êxodo, Levítico e Números. Por exemplo, eles corretamente criam que todo o sistema sacrificial encontrara seu cumprimento no sacrifício de Cristo na cruz, e por causa disso, os cristãos estavam desobrigados de observar os aspectos cerimoniais da lei hebraica. Mas, erroneamente criam que os dez mandamentos estavam excluídos do uso que Paulo faz da palavra “lei” nessa passagem. Na verdade, o apóstolo abrange o Decálogo, quando fala da lei em Gálatas 3.
Os adventistas, em Minneapolis, estavam comprometidos com a manutenção da autoridade e validade de todos os dez mandamentos. Nisso, estavam corretos; embora não vissem os aspectos cruciais do ensinamento de Paulo. Do contrário, teriam lançado importante luz sobre sua interpretação. Costumavam defender a perpetuidade da lei, diante de outros protestantes, à qual se referiam como o Decálogo ou “lei moral”. Aninhados firmemente em sua motivação de manter a autoridade dos dez mandamentos, era também seu grande desejo manter a validade do sétimo dia. como o dia de adoração.
A controvérsia de Minneapolis não ficou restrita a 1888. Em 1900, uma altamente significativa, ainda que raramente reconhecida, interpretação de Gál. 3:19-25 foi publicada. Em essência, a posição foi expressa como segue: “Perguntam-me acerca da lei em Gálatas. Que lei é o aio que nos deve levar a Cristo? Respondo; Tanto o código cerimonial como o moral, dos Dez Mandamentos.” – Mensagens Escolhidas, vol. I, pág. 233. Poucos anos depois a mesma interpretação foi repetida, com maior ênfase: “’A lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos justificados.’ Gál. 3:24-Nesta passagem, o Espírito Santo, pelo apóstolo, refere-Se especialmente à lei moral.” – Idem, pág. 234.
As implicações disso para a interpretação da mensagem aos gálatas e, particularmente, de Gál. 3:19-25, são profundas e de longo alcance. Têm importância fundamental, tanto para os adventistas que ainda trabalham com uma série de interpretações pós-Minneapolis, como para outros cristãos, que lutam com alguma incerteza sobre o que Paulo estava argumentando nessa passagem.
É interessante notar que Paulo inclui os dez mandamentos em seus ensinos, no terceiro capítulo de Gálatas, e a ilustração que ele usa, no capítulo 4. a respeito de Sara e Hagar. O verso 24 aponta claramente que Hagar representa o velho concerto, o qual, diz Paulo, procedeu do “monte Sinai, que gera escravidão”. A referência ao Sinai mostra inequivocamente que o apóstolo tem em mente a lei moral, e não a lei cerimonial como muitos pensam.
Isso está mais claramente expresso em Romanos 7. No verso 4, Paulo fala aos crentes romanos que pela morte de Jesus eles morreram para a lei. Qual lei? Em Rom. 7:7, o apóstolo definitivamente inclui o Decálogo em seus ensinamentos. Nesse verso ele cita o décimo mandamento como ilustrativo de seus argumentos sobre o papel da lei e Cristo: “pois eu não teria conhecido a cobiça, se a lei não dissera: ‘não cobiçarás’.”
Entretanto, é ainda mais crítico o efeito que essa morte para a lei tem sobre a natureza do comportamento ou viver cristão. Através de Cristo nós morremos para a lei a fim de pertencermos “a outro, a saber, Aquele que ressuscitou dentre os mortos”, de modo que possamos frutificar para Deus (Rom. 7:4). Essa afirmação está de acordo com o que Paulo diz aos gálatas: a lei “foi adicionada por causa das transgressões, até que viesse o descendente” (Gál. 3:19).
A mensagem decisiva, tanto em Gálatas 3 como em Romanos 7, não é meramente que o papel da lei, incluindo os dez mandamentos, foi alterado pela vinda de Cristo, o descendente; mas que um novo centro de definição ética ou moral foi introduzido: não como um código escrito, mas pelo viver no próprio Cristo. O ponto focal de Paulo não é a montagem de um cenário à parte da lei moral ou de qualquer porção dela, mas através de Cristo, uma interpretação mais completa, definitiva e efetiva de tudo o que é verdadeiro e justo (evangelho e lei) na pessoa de Cristo Jesus.
A meu ver, historicamente, os adventistas não captaram essa realidade divisória. Por isso, eles têm sofrido um certo temor de que se os dez mandamentos forem removidos, nada restará para governar o comportamento humano, incluindo as questões de adoração no sétimo dia. Enquanto isso, o que Paulo está dizendo é que desde a vinda do Messias, a disciplina e orientação estão estabelecidas sobre um fundamento melhor que os dez mandamentos, e que esse fundamento é nada menos que a pessoa do próprio doador da lei, Cristo Jesus. Aliás, esse é o tema do livro escrito aos hebreus.
Por outro lado, muitos evangélicos guardadores do domingo também têm estado inconscientes dessa realidade, como um princípio teológico e prático essencial. Em seu grande esforço para negar qualquer virtude salvífica da lei, eles talvez não têm reconhecido ou aplicado o próprio Cristo como a personificação de tudo o que é verdadeiro e santo, inclusive Seu exemplo e ensinamento quanto ao sétimo dia. Dessa maneira eles consideram o sábado muito vagamente, como um aspecto do Decálogo que pode ser revogado ou invalidado à luz da vinda do Messias.
O ponto crucial é que sob o “velho concerto”, a ênfase moral ou ética residia sobre a validade do código escrito, da lei. Desde a vinda do Messias, essa ênfase mudou para a divina pessoa de Cristo, o doador da lei em primeiro lugar. Há uma diferença significativa entre orientação teológica e prática resultante; entre obediência a um mero código escrito e o amoroso discipulado desenvolvido quando alguém encontra o perdão dos seus pecados, nasce de novo e experimenta o poder do evangelho de Jesus Cristo. Nesse caso, a pessoa segue o Cristo vivo, o único que é o justificador do crente.
Na realidade, os cristãos falam muito sobre discipulado, Romanos e Gálatas, mas não é fácil encontrar uma compreensão geral sobre como a questão de pertencer a Alguém em lugar da lei se encaixa perfeitamente na moldura elaborada por Paulo nos capítulos sete e três, respectivamente de Romanos e Gálatas.
Em Romanos 3, Paulo fala de uma justiça que se manifestou “sem lei” (v. 21), que de fato vem pela fé em Cristo (v. 22). Ao lado disso, no capítulo sete, ele não somente fala de morte para a lei. para que possamos pertencer a Cristo, mas de morte em e com Cristo, “de modo que servimos em novidade de espírito e não na caducidade da letra” (Rom. 7:6). Muitas pessoas temem as implicações negativas que essa morte para a lei pode produzir, e se tornam incapacitadas para ver três fabulosos princípios resultantes:
- 1. Quando nós morremos para a lei, o caminho é aberto para pertencermos a alguém que é muitíssimo mais capaz que a lei de levar-nos a produzir frutos para Deus (Rom. 7:6).
- 2. Morrendo para a lei, somos libertos para o específico propósito de servir “em novidade de espírito, e não na caducidade da letra” (Rom. 7:6).
- 3. A lei, especificamente os dez mandamentos, foi perfeitamente cumprida na pessoa de Jesus Cristo, de modo que nesse sentido o crente também pode, através do Espírito Santo, “andar assim como Ele andou” (I João 2:6), e isso não para se ver livre do compromisso com o Decálogo mas para estabelecê-lo mais firmemente (Rom. 3:31: 7:12: Mat. 5:17-48).
A morte para a lei inclui todos os dez mandamentos da maneira como foram dados originalmente. Não existe uma razão forte para separar o quarto mandamento como uma exceção dos outros nove, especialmente à luz das realidades apresentadas até aqui. Nenhum cristão sério questiona a validade de qualquer dos outros
nove mandamentos como parte central da moralidade humana, residente não apenas em alguma expressão legal, mas na própria pessoa de Deus. Eles são, por sua natureza, cruciais para a qualidade de vida e de qualquer relacionamento no planeta. Pela mesma razão, não podemos descartar o quarto mandamento.
Devemos dizer inequivocamente que da mesma forma como o viver em Cristo ou a personificação de qualquer desses mandamentos não tira nem um “j” ou um “til” da lei, a maneira como Ele tratou o sétimo dia também não altera a sua validade.x
No Cristo vivo “a palavra” foi encarnada, a lei foi encarnada, o sétimo dia foi encarnado; e a encarnação do que apenas tinha sido falado e escrito tornou-se a mais completa expressão da verdade.
Jesus Cristo é Ele mesmo essa verdade. Ele é o caminho e a vida (João 14:6). O autor da lei veio a este mundo e à Sua criação, viveu entre nós tudo o que o código escrito requeria. Um quadro vale mais que mil palavras.
A exaltação de lei
Jesus não negou a lei. Em Sua vida Ele simplesmente deu-lhe a mais completa expressão, confirmando-a e afirmando-a. Ao mesmo tempo colocou seus princípios sobre o mais elevado plano em que foram colocados desde o Sinai. A pessoa de Jesus é uma revelação maior e melhor do que aquela que Seus próprios dedos poderiam pintar nas tábuas de pedra. E tal expressão messiânica é válida para todos os mandamentos.
Até a vinda de Cristo, nós apenas tínhamos um livro para ler. Podíamos ver a verdade, o evangelho e a lei, apenas em tipos obscuros e proclamações proféticas. Por melhor que isso fosse, não poderia dar-nos senão um quadro limitado do que o Autor da lei e do evangelho desejava de nós. Quando Ele veio, nós vimos e ouvimos nEle a realidade completa. Pudemos então olhar Seu viver e ouvir Seus ensinamentos, de Seus próprios lábios; e, através do Espírito Santo, isso tem continuidade (João 14:14 e 16). Esse papel messiânico está profundamente estabelecido em passagens como Hebreus 1:1-4, bem como na carta magna de Jesus, que é o sermão do Monte (Mat. 5).
O sétimo dia recriado
Há quem diga que embora todos os outros nove mandamentos tenham sido confirmados ou reafirmados no Novo Testamento ou sob o novo concerto, o quarto é o único que não aparece nessa condição. Isso não é verdade. Se alguém aceita a universal e altamente respeitada idéia que os relatos evangélicos não são meramente expressões primitivas, anedóticas das memórias cristãs, mas elucidações amadurecidas de pensamentos ou verdades teológicas, todas as ações de Jesus, ali relatadas, tomarão um novo significado. Os evangelistas selecionaram cuidadosamente, sob inspiração, ocorrências ilustrativas da vida de Cristo para mostrar o que ela significou.
Existem, ao longo do Novo Testamento, relatos de milagres de Cristo realizados no sábado. Alguns dos Seus mais sublimes ensinamentos ou pensamentos sobre esse dia são extraídos da maneira como Ele realizou tais milagres. Na história do homem com a mão mirrada, que estava na sinagoga no sábado (Luc. 6:6-10), nada é dito concernente a qualquer abolição desse dia. Ali Jesus agiu para mostrar o significado do sétimo dia. Por Suas palavras e ações, na sinagoga, Ele associou o sábado à restauração, saúde, recriação e liberação, características universais do Messias e do evangelho do reino.
Aparentemente, a intenção de Cristo era revelar o novo concerto, o significado evangélico do sábado, incluindo um significado todo abrangente que envolve não apenas a criação, mas a recriação também. Ao modelar esse tipo de sábado, Cristo eliminou dele o opressivo legalismo incrustado que alguns líderes religiosos tradicionais de Seus dias lhe haviam atribuído. Uma cuidadosa releitura de todos os relatos de milagres realizados no sábado, e outras ocorrências sabáticas, revelam o mesmo tipo de tratamento dispensado a esse dia, por Jesus, em todos os casos.
É difícil entender como a vinda de Cristo podia ter sido calculada para remover o sábado, quando o seu significado no Antigo Testamento é fortemente associado com o imutável evento da criação (Gên. 2:1 e 2; Êxo. 20:8-11). Em outras palavras, ninguém pode encontrar qualquer aspecto da primeira vinda de Cristo que possa justificar logicamente ou encorajar uma negação da criação e, dessa forma, o significado do papel do sábado, instituído na própria criação e no Sinai. É verdade que, em muitos assuntos, o tipo encontrou o antítipo em Jesus Cristo, mas ninguém pode dizer que a criação do mundo foi um tipo de qualquer coisa cujo significado e celebração pudesse cessar quando a realidade aparecesse.
A criação não é um evento cúltico ou simbólico. A Bíblia e o senso comum a vêem como um fato, um acontecimento. O palavreado do quarto mandamento também a vê como um fato imutável; portanto, a santidade do sétimo dia não pode mudar. Muito mais poderia ser dito, enquanto reconhecemos a natureza evangélica do sétimo dia. Por exemplo, é significativo que uma vez que Jesus completou Sua obra, morrendo com as palavras “está consumado” em Seus lábios, tenha repousado na tumba durante o sétimo dia, aparentemente confirmando com isso o significado que esse dia deveria ter à luz da Sua primeira vinda. Com isso, Ele conectou o repouso do sétimo dia não apenas com a criação, mas também com a redenção.
Outra questão que poderia ser levantada diz respeito aos “dias santos” encontrados em Romanos 14 e Colossenses 2. É suficiente dizer que Paulo, nessas passagens, não está se referindo ao significado cósmico, fundamentado na criação, do sábado semanal. De tudo o que acontecia na comunidade cristã primitiva, é muito claro que os dias aí mencionados não foram por ela compreendidos como o sábado semanal do Decálogo, mas, como a linguagem paulina sugere, os dias de festas, ou sábados cerimoniais.
É vital que juntemos em nosso pensamento todas as realidades sobre o sábado expressas no Antigo Testamento e as integremos cuidadosamente com o que diz o Novo Testamento. Sempre que essa aproximação global for empregada em nosso estudo das Escrituras, especialmente sobre assuntos como lei, Cristo e o sétimo dia, tudo isso será colocado numa moldura cristocêntrica, inteiramente de acordo com as realidades do novo concerto, incluindo a maravilhosa verdade que o próprio Jesus é o repouso do crente e a personificação de toda verdade. ☆
WILLMORE D. EVA, editor da revista Ministry
Ligado ou incluído à atividade criadora de Deus, o sábado recebe um significado cósmico, além dos limites temporais, locais ou litúrgicos.