Segundo o evangelista Marcos, disse Jesus: “Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai do homem é o que o contamina. … E, assim, considerou Ele puros todos os alimentos.” (Mar. 7:15 e 19).
O que Jesus queria dizer com as expressões “contaminar” e “puros”? Estaria porventura referindo-Se aos alimentos puros e impuros?
Segundo os versos 3, 5, 8, 9 e 13 do mesmo capítulo, o assunto em discussão está limitado às “tradições dos anciãos”. Essas “tradições”, de acordo com Jesus, estavam sendo usadas para desprezar os mandamentos de Deus (v. 9). Por exemplo, as “tradições dos anciãos” permitiam uma pessoa ignorar o quinto mandamento, substituindo-o pela doação de uma oferta ao templo. Jesus assinalou que os fariseus tinham muitos escapes da lei de Deus (vs. 10-13). Ao condenar tais práticas, Ele citou os mandamentos, usando passagens de Êxodo, Levítico e Deuteronômio (Mar. 7:10 e II; Êxo. 20:12; 21:17; Deut. 5:16; Lev. 20:9).
O assunto que precipitou a discussão relatada em Marcos 7. tinha a ver com a acusação dos fariseus e escribas de que os discípulos “comiam o pão com as mãos impuras” (v. 2). E isso era uma distinção técnica, específica, não encontrada no Velho Testamento. A ideia de as mãos tornarem-se puras ou impuras foi desenvolvida no período intertestamentário. Devido a que as palavras “contaminar”, “puro” ou “impuro” são usadas em Marcos 7, em conjunção com alimentos, algumas pessoas têm interpretado que o tema em discussão é comida imunda ou limpa.1
É esse o caso?
A Bíblia distingue dois tipos de animais: aqueles que foram declarados limpos e adequados para alimentação, e aqueles que são impuros e impróprios para serem comidos. Uma antiga discussão entre animais limpos e imundos é encontrada no relato do Dilúvio (Gên. 8). Mas não temos como determinar, por essa passagem, quais animais eram limpos e quais não eram, embora obviamente Noé o soubesse.
A mais clara distinção entre animais limpos e imundos, relacionados com a alimentação, é encontrada em Levítico 11. Os “animais que há sobre a Terra”, para alimentação, devem ser ruminantes e ter unhas fendidas (Lev. 11:2). Os animais comestíveis, das águas, devem ter barbatanas e escamas (v. 9). Todos os outros animais são considerados “imundos”.
Marcos 7, como todo o Novo Testamento, foi escrito em grego. Considerando que os seus escritores usaram uma versão grega do Velho Testamento, a Septuaginta, é bastante ajudador compará-la com passagens do Novo Testamento para descobrir algum ponto que acabou ficando obscuro no processo de tradução. No Velho Testamento, quando a palavra “imundo” é associada a animais, o termo hebraico é m. Na Septuaginta, m é regularmente traduzida pela palavra grega akatharton (impuro). Essa palavra é usada muitas vezes no Novo Testamento, incluindo Mar. 7:25. Entretanto, na discussão entre Jesus e os fariseus, ninguém falou da akatharton. A palavra chave no debate é outra, raramente encontrada no Velho Testamento, koinoo, traduzida em algumas versões como “impuro” e “contaminado”.
Quando koinoo é usada no Novo Testamento, o significado é que alguma coisa boa ou santa foi profanada ou dessacralizada. Esse uso é um conceito judaico palestino único, ausente dos escritos gregos seculares. Durante o período intertestamentário, uma mudança cultural significativa ocorreu entre os religiosos judeus tradicionais. Eles se determinaram permanecer separados de toda impureza, incluindo qualquer coisa que tivesse a ver com os gentios. Os judeus foram instruídos por seus líderes religiosos a não comprar alimentos dos gentios.2
Assim, o assunto em Marcos 7 não é as mãos liturgicamente impuras dos discípulos? Nada havia intrinsecamente errado com as mãos dos discípulos, mas a “tradição dos anciãos” estabelecera que as mãos de alguém tornavam-se liturgicamente contaminadas pela trivialidade (koinos) de suas atividades. De acordo com a tradição, se os discípulos tocassem alimentos impuros, também ficariam contaminados e isso os tornaria inaceitáveis a Deus.
Jesus negou ser possível tal coisa. Ele explicou que a contaminação espiritual vem de dentro, não de fora (Mar. 7:20).
Ao colocar a questão dessa maneira, Jesus sublinhou uma verdade significativa: Mesmo ações externas tais como “fornicação, furto, assassinato, adultério” são contaminadoras, não devido a influência exterior, mas porque representam o fruto do mal interiormente existente no homem (Mar. 7:23). É a rebelião interna que contamina o relacionamento de uma pessoa com Deus. A contaminação real vem de dentro, produzindo dessa forma os sinais exteriores dessa rebelião.
Rituais exteriores
Portanto, o assunto de Marcos 7 não é alimentação. Jesus estava argumentando primariamente contra as observâncias exteriores que ostensivamente realçavam o nível de espiritualidade, enquanto minavam a autoridade das Escrituras Sagradas. Lambrecht escreve que, para Jesus, “a hipócrita fidelidade dos fariseus à tradição dos homens, os induzia a negligenciar os mandamentos de Deus”. 4 O novo foco de Jesus sobre o assunto claramente minimizou as “tradições dos anciãos” e todos os rituais exteriormente praticados, ao mesmo tempo em que destacou a posição das Escrituras.5
Essa posição de Jesus contra os fariseus é pertinente porque alguns estudiosos têm sugerido que Ele agiu da mesma maneira pela qual os condenou: isto é, deixou de lado os mandamentos de Deus criando Sua própria nova tradição.6 Em apoio a essa afirmação, eles usam a frase parentética de Marcos 7:19: “E, assim, considerou Ele puros todos os alimentos.” Mesmo alguns adventistas do sétimo dia têm sugerido que Jesus, nessa passagem, desconsidera a distinção de Levítico 11.7 Se isso é o que Ele fez, também era culpado da mesma atitude dos escribas e fariseus: minimizando os mandamentos de Deus para seguir Sua própria recém-introduzida tradição. Mas essa ideia não resiste a um escrutínio teológico.
Levítico 11 reconhece dois tipos de animais imundos. O primeiro inclui os que não servem para alimentação. Nenhuma prescrição é oferecida para torná-los puros, porque a distinção não está baseada em questões litúrgicas. Comer tais animais torna a pessoa detestável diante de Deus; principalmente, parece, porque tais criaturas eram em si mesmas obviamente fontes implausíveis de alimento (Lev. 11:42 e 43).
O segundo tipo de impureza discutido em Levítico 11 é temporária, que resulta de um inadvertido contato com animais imundos. Quem os tocasse deveria lavar suas vestes; permaneceria imundo “até à tarde” (Lev. 11:24-28, 31-40).
Marcos e Levítico
A confusão entre “alimentos imundos” de Marcos 7 e “carnes imundas” de Levítico 11 é fruto de algumas desafortunadas circunstâncias. Primeira, desde o tempo do gnóstico Marcião, muitos cristãos tentam criar uma grande fenda entre os ensinamentos do Velho Testamento e os ensinamentos de Jesus, no Novo Testamento. Há uma predisposição de influentes intérpretes para assumir que Jesus introduziu um novo mandamento em Marcos 7. Eles vêem uma notável brecha entre os dois Testamentos, e Marcos 7 representa, para eles, um marco. Ao fazerem assim, inadvertidamente acusam a Jesus do mesmo erro cometido pelos fariseus.
Segunda, a confusão é um resultado de que alguns querem fazer o cristianismo o mais diferente possível do judaísmo, ignorando assim as antigas e claras raízes cristãs.
Terceira, alguns vêem alguma confusão em Levítico 11. Argumentam que se obedecermos as orientações desse capítulo, deveremos fazê-lo com todo o restante do livro. Embora esse argumento soe lógico, ele é frágil. Levítico é um livro complexo, com muitos ensinamentos, alguns dos quais são princípios universais, e alguns são unicamente israelitas. Entre os princípios universais estão os mandamentos do capítulo 19: “Não vos virareis para os ídolos, nem vos fareis deuses de fundição. Eu sou o Senhor, vosso Deus.” (v. 4); “não furtareis, nem mentireis, nem usareis de falsidade” (v. II); “não oprimirás o teu próximo, nem o roubarás” (v. 13); “… amarás o teu próximo como a ti mesmo” (v. 18).
O livro também possui ensinamentos pertinentes às práticas litúrgicas típicas do judaísmo. É preciso saber distinguir entre os dois aspectos.
A visão de Pedro
Não se pode discutir o assunto tratado em Marcos 7 sem considerar a visão de Pedro relatada em Atos 10. Os dois capítulos estão ligados pelo uso da palavra koinos e o tema que ela introduz. Em Atos 10, Pedro teve uma visão na qual viu animais de dois tipos; aqueles que eram “comuns” e os que eram “impuros” (koinos kai akathartos, Atos 10:14). De acordo com a ideia então corrente entre os judeus, as coisas que tinham se tornado “comuns” (kainos) atingiram tal status através da associação com as coisas que eram “impuras”. Assim, o que Pedro viu no lençol foi animais imundos, e animais limpos que haviam se tornado “comuns” (contaminados) pelo contato com aqueles.
O propósito dessa visão é remover de Pedro e dos primeiros cristãos todo preconceito racial (Atos 10:28, 34 e 35). Mas muitos supõem que esse capítulo também é base para repudiar o ensinamento de Levítico 11. Depois de tudo, não diz o texto que Deus purificou todos os alimentos? Realmente, o que o texto diz é: “Ao que Deus purificou não consideres comum” (Atos 10:15; 11:9). E isso torna claro que a mensagem de Atos 10 é a mesma de Marcos 7. O que Deus purificou? As coisas que foram consideradas contaminadas por associação.8
Enquanto Pedro dizia que nunca havia comido alguma coisa contaminada, ouvia a voz falar-lhe que as coisas “comuns” tinham sido purificadas. Quanto às coisas “impuras” (akathartos) Atos 10 silencia.
Essa interpretação cabe perfeitamente aos relatos de Atos 10 e 11. Pedro recebe a ordem para ir ao lar de Cornélio, um gentio, e sabe “que é proibido a um judeu aproximar-se de alguém de outra raça”. Mas Deus demonstrou-lhe “que a nenhum homem considerasse comum (koinos) ou imundo (akathartos)” (Atos 10:28). De acordo com a “tradição dos anciãos”, Pedro poderia ter-se tornado koinos associando-se a Cornélio (uma pessoa “impura”, isto é, um gentio). Depois da visão, Pedro afirma que “Deus não faz acepção de pessoas … aquele que O teme e faz o que é justo Lhe é aceitável” (Atos 10:34 e 35).
Relativamente a pessoas, não há comuns ou impuros. Tal distinção aplicada a pessoas foi sempre e unicamente devida à “tradição dos anciãos”, extrapolada do Velho Testamento por eles; jamais ensinada pela Bíblia.
Paulo e os impuros
Que essa ideia de contaminação por associação estava fortemente enraizada entre os primeiros cristãos, está claro na sua discussão pelo apóstolo Paulo. Em Romanos 14, ele especificamente estabelece “que nenhuma coisa é de si mesma impura [koinos]” (Rom. 14:14).
A situação na Igreja primitiva era complexa, porque embora ela fosse largamente judaica e enraizada em sua herança, os gentios começaram a aceitar o cristianismo muito rapidamente., Esses gentios cristãos cresceram numa cultura onde alimentos eram oferecidos a ídolos em troca de bênçãos. Para eles, isso era normal. O problema era que, “alguns, por efeito da familiaridade até agora com o ídolo, ainda comem dessas coisas como a ele sacrificadas; e a consciência destes, por ser fraca, vem a contaminar-se” (I Cor. 8:7). Paulo disse aos judeus cristãos: “No tocante à comida sacrificada a ídolos, sabemos que o ídolo, de si mesmo, nada é no mundo e que não há senão um só Deus” (I Cor. 8:4).
Como deveriam os cristãos relacionar-se com coisas que ainda não eram claras para eles? Sendo sensíveis para com os que tinham opiniões diferentes, mas fiéis a suas próprias crenças (Rom. 14:13, 21, 23).
Dessas passagens, ninguém pode concluir que Paulo está dizendo que não se importa com o que o Velho Testamento ensina, e que faz o que quer. Se era essa a sua intenção, ele poderia ter introduzido sua própria nova tradição, mas isso é insustentável, como já vimos. 1 Cor. 8 fala aos que pensam que o ídolo nada é, no sentido de cuidarem para que essa compreensão não afetasse negativamente os que tinham vindo de uma sociedade adoradora de ídolos (1 Cor. 8:10).
Romanos 14 encoraja os membros antigos da igreja a serem compassivos com seus irmãos cristãos. Paulo compreendia que koinos não estava relacionado aos cristãos, mas alguns na Igreja não tinham se libertado da “tradição dos anciãos”. Ele escreveu aos cristãos de Roma para não fazerem qualquer coisa que pudesse enfraquecer a fé dos seus irmãos, porque todos deveriam ser fiéis às suas crenças (Rom. 14:21 e 22). Nem Romanos 14 nem 1 Cor. 8 mencionam a palavra “impuro” (akathartos). Apenas koinos (comum) é o foco de atenção.
Conclusão
Voltemos a Marcos 7. Num estudo desse capítulo, relacionando o assunto de Levítico 11 e o Novo Testamento, podemos ver que Jesus foi radicalmente contrário a qualquer coisa, incluindo as “tradições dos anciãos”, que subestimasse o Velho Testamento. Em Sua discussão com os escribas e fariseus, em Marcos 7, Ele dirigiu a atenção da obediência externa para a necessidade de pureza de coração. Também não estabeleceu Suas próprias tradições. Pelo contrário. Ele exaltou as Escrituras e defendeu-as contra as “tradições dos anciãos”. O uso cuidadoso que fez da expressão koinos tornou claro que Ele estava bem-informado do único significado dessa palavra entre os eruditos romanos judeus do Seu tempo, e que não Se opunha ao debate com eles em seus próprios termos.
Nada nos ensinos de Jesus ou dos apóstolos diminui a autoridade do Velho Testamento ou seus ensinamentos, incluindo a distinção entre alimentos imundos e limpos.
Referências:
1 Por exemplo. Carlston anota que a declaração de Cristo, no sentido de que “nada há fora do homem que. entrando nele, o possa contaminar” (Mar. 7:15) foi “obviamente intencionada para descartar” as leis sobre dieta e “a Lei como um todo”. Charles E. Carlston. “The Things que Defile (Mark VII. 4) and the Law in Matthew and Mark”. New Testament Studies, págs. 15 e 75.
2 T. C. Smith. “Acts”. The Broadman Bible Commentary. Nashville: Broadman. 1970; pág. 67.
3 Frederich Hauck in Gerhard Kittel, ed.. Theological Dictionary of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans. 1984: 3:797.
4 J. Lambrecht. “Jesus and the Law: An Investigation of Mark 7:1:23″. Ephemerides Theologicae Lovanienses 53. 1977; pág. 49.
5 Frederich Hauck. Op. Cit., pág. 797.
6 Carlston escreve que “em comunidades onde circulou essa história. Jesus é visto como tendo descartado não apenas as tradições dos escribas, mas imprimido força à própria lei mosaica”.
7 John Brunt. “Impuro ou insalubre? Uma perspectiva adventista”. Spectrum. n“ 3. 11:17-32.
8 Colin House. “Defilement by association: some Insights from the usage of koino in Acts 10 and 11″. Andrews University Sweminary Studies. nº 2. 21:143-153.