Uma abordagem equilibrada sobre intertextualidade

Recentemente, a intertextualidade tem sido objeto de muita atenção e acumulou uma variedade surpreendente de usos e definições.1 De acordo com o professor Robert Carroll, o termo “intertextualidade” apareceu pela primeira vez no ensaio seminal de Julia Kristeva (1966), no qual apresentou as ideias centrais do crítico literário russo Mikhail Bakhtin.2 A partir de então, essa palavra e seus conceitos correlatos foram aplicados a diferentes composições literárias, incluindo a Bíblia.

Em literatura, o termo define um objeto literário (palavra, evento) que vem a ser como uma “interseção de horizontes literários”, um “mosaico de citações”, ou, assim como Derrida o define, “o entrelaçado de diferentes textos em um ato crítico que se recusa a pensar em ‘influência’ ou ‘inter-relação’ como um simples fenômeno histórico”.3 A ideia de intertextualidade tem uma implicação evidente: nenhum sujeito pode produzir um texto autônomo. Ao dizer “autônomo”, refere-se a um texto que não possui vínculos com outros textos, algo que surge límpido, puro, da mente do sujeito que o produziu. Isso implica que os sujeitos elaboram seus textos desde uma necessária e obrigatória vinculação com outras peças literárias. O texto, na realidade, não seria uma entidade autônoma, mas um cruzamento, uma interseção discursiva, um “diálogo”, em última instância.

Enquanto isso, em relação à Bíblia, o teólogo John Barton apresenta uma definição simples de intertextualidade que pode nos dar uma ideia inicial do conceito: “Qualquer texto, dentro da Escritura, que possa iluminar algum outro texto.”4 Em um nível hermenêutico, intertextualidade seria a exegese intrabíblica do texto.5 Se é certo que o termo encerra conceitos muito mais amplos, ao que parece, uma definição exata de “intertextualidade” não existe, pois compreende uma multiplicidade de aspectos e conceitos que são apresentados como “afinidades linguísticas”, “alusões literárias”, um “sistema de comunicação fora do texto”, “citações textuais”, “ecos”, “ligações literárias”, entre outros.6 A complexidade do assunto produziu muitos estudos e propostas que tentam explicar esse fenômeno que, embora se dê na literatura secular, observa-se de maneira muito precisa na literatura bíblica.

Alguns estudiosos tentaram estabelecer certos parâmetros para definir a intertextualidade. Entre as diferentes propostas, escolhemos a de Gary E. Schnittjer, professor de Antigo Testamento na Universidade Cairn, na Pensilvânia, EUA.7 Após analisar e discutir a proposta de Schnittjer, este artigo proporá uma teoria que permite equilibrar as diferentes abordagens, sem perder de vista a qualidade do texto inspirado.

Ecos literários, limites e contexto

Schnittjer apresenta uma proposta para abordar a “intertextualidade” dentro do universo da Bíblia. Para ele há duas questões básicas que devem ser respondidas: (1) Os limites de um livro bíblico definem o contexto de interpretação no que se refere ao significado da narrativa? (2) Como os ecos literários afetam o contexto? De acordo com a perspectiva de Schnittjer, as narrativas bíblicas contêm ecos que parecem convidar a ler simultaneamente dentro dos limites do livro e, ao mesmo tempo, convidam a ultrapassar suas fronteiras para ler a narrativa em relação a outros escritos bíblicos que podem “ser ouvidos” nele.8

A hipótese com a qual trabalha é que “o leitor bíblico pode apreciar corretamente os multifacetados contextos narrativos bíblicos somente a partir do universo das Escrituras”.9 De acordo com essa hipótese, o contexto bíblico tem alguns limites que não podem ser atravessados e outros que devem ser cruzados. Saber onde e como cruzar os limites é o segredo de uma boa interpretação.

A proposta de Schnittjer se baseia em três aspectos básicos: (1) a natureza da narrativa bíblica (que é fundamentalmente de caráter alusivo); (2) a relação entre contexto e significado (que mantém uma pressão direta sobre os assuntos relacionados ao eco narrativo); e (3) a natureza da coleção canônica dos Escritos (uma espécie de fronteira que legitima um universo referencial).

Com base nesses três aspectos, Schnittjer declara que “quando as narrativas bíblicas estão ligadas inerentemente a outros contextos bíblicos, mediante um ‘eco literário’, aqueles outros contextos chegam a formar parte e parcela do contexto dentro do qual o ‘eco’ está integrado”.10 Assim, a “intertextualidade”, no sentido amplo da palavra, contempla a totalidade da Bíblia, a cuja primeira narrativa foram acrescentadas as narrativas posteriores, formando assim a coleção completa das Escrituras. O contexto para uma narrativa secundária é, portanto, mais do que ela mesma, já que os “ecos” forçam o leitor a adotar um contexto de leitura além dos limites do próprio livro a fim de apreender o significado da história dentro dela.

De acordo com esse resumo, queremos fazer uma crítica à teoria intertextual de Schnittjer, tendo em conta os três aspectos apresentados na sua proposta.

Crítica à proposta de Schnittjer

Em primeiro lugar, podemos dizer a favor de Schnittjer que sua perspectiva geral é notavelmente ampla e abrangente, permitindo ver a Bíblia como um corpo de escritos sagrados unidos por um universo de interpretação que se autossustenta, se complementa e se constitui em um contexto autoritativo para a exegese intrabíblica. Essa perspectiva pode ser comparada com aquele grande princípio de hermenêutica postulado pelos reformadores: “A Bíblia interpreta a si mesma.”11

Por outro lado, uma perspectiva dinâmica dessa mesma abordagem pode levar a extremos perigosos, dada a ênfase nos ecos literários, cujas alusões podem se estender de tal maneira que a totalidade dos escritos seja envolvida em alusões imaginárias que possivelmente não estavam na mente do autor. Além disso, dado o problema de definir isoladamente os termos que se usam dentro do universo cada vez mais amplo da intertextualidade, isso mesmo acrescenta uma dificuldade maior à questão.

Por outro lado, alguns estudiosos diferem no uso e no significado dos termos “alusão” e “eco”. Por exemplo, G. K. Beale classifica de maneira simples as alusões em: “alusões claras”, “alusões prováveis” e “alusões possíveis ou ecos”.12 Ao contrário, o teólogo adventista Jon Paulien faz distinção apenas entre “alusões diretas” e “ecos”.13

De acordo com Paulien, a diferenciação entre “eco” e “alusão” depende inteiramente de a ocorrência do paralelo verbal ser ou não considerada intencional por parte do autor.14 De fato, muitas das alusões citadas pela maioria dos comentaristas são na verdade “ecos”, e não podem ser listados como pensamentos que o autor tinha em mente.

Sendo assim, é possível reconhecer que Schnittjer fica aquém de sua proposta de ecos literários, dada a imprecisão de sua definição e a amplitude de noções mencionadas no conceito de “alusão”. Aparentemente, os estudiosos preferem diferenciar entre uma alusão direta e um “eco”, ficando este último em uma situação de menor significado, em um plano quase subjetivo.

Quanto à relação entre contexto e significado, considero que a afirmação de Schnittjer – de que “aqueles contextos que estão vinculados mediante um ‘eco literário’ chegam a formar parte e parcela do contexto dentro do qual o ‘eco’ está integrado” – é muito ampla para um trabalho exegético. Ou seja, complicaria demais o trabalho hermenêutico se tivéssemos que considerar todos os “ecos” presentes nas Escrituras. A avaliação de um “eco” ou uma “alusão” precisa ser mais objetiva e deve partir menos da perspectiva do leitor e mais da perspectiva do autor do texto.

Concordo com Schnittjer em que a natureza da coleção canônica legitima o universo referencial da Bíblia, mas é evidente que, se tivéssemos que elucidar todos os “ecos” ou “alusões” ao longo da Bíblia para definir um contexto em particular, essa tarefa se tornaria um elefante branco maior que a própria coleção canônica. Em outras palavras, a inclusão de contextos deve seguir alguns critérios objetivos que partem do próprio texto.

A questão dos “ecos literários” permanece, a meu ver, como uma nebulosa cujos limites não podem ser determinados. Em todo caso, o “eco” aparece como um termo subordinado que depende mais da percepção da audiência do que da própria intenção do autor.

Apesar da persistente confusão sobre a terminologia relacionada à intertextualidade, é necessário atingir um nível de entendimento que permita abordar um estudo da intertextualidade na Bíblia, especialmente das citações ou alusões diretas (e outras não tão diretas) do Antigo Testamento no Novo Testamento.

Proposta para uma abordagem equilibrada

Em primeiro lugar, devemos estabelecer que qualquer afinidade linguística presente entre dois textos não deve ser assumida como “intertextualidade”. É legítimo perguntar se um aparente paralelo é resultado de outras causas, tais como uma tradição idiomática comum, passagens temática ou genericamente relacionadas, ou ainda, coincidência. Concordo com o teólogo Ronald Bergey quando afirma que “os paralelos linguísticos são o guia mais seguro em termos de determinar se as correlações textuais foram feitas de forma consciente ou deliberada, especificamente, se elas são corroboradas por outras linhas de evidência”.15

É evidente que a intertextualidade está relacionada a textos; portanto, considero que o início básico para determinar a “intertextualidade” tem que ver com traços literários diretos e identificáveis, que nada mais são do que citações diretas ou referências explícitas a outros textos. Dessa forma, o ponto inicial para trabalhar com textos inter-relacionados é o nível lexicográfico. Os paralelos verbais podem ser muito úteis para determinar o grau de afinidade entre os dois textos.16

Essas semelhanças verbais permitem iniciar o trabalho para determinar se ambos os textos têm entendimentos semelhantes da terminologia análoga utilizada. Naturalmente, as características mais complexas da linguagem compartilhada (pares de palavras, frases e expressões), mais do que simples palavras soltas, podem indicar melhor a existência de apropriação textual intra-bíblica.

O próximo passo seria a comprovação da prevalência de uma correlação temática entre as duas passagens. Esse nível poderia indicar se ambos os contextos estão relacionados, e se essa relação é direta ou indireta. Os conteúdos temáticos permitiriam determinar o nível de influência exercido pelo contexto anterior em referência ao contexto mais recente, ou se houve uma variação na compreensão temática do novo, com referência ao anterior.

Em geral, os quatro evangelhos mostram esse tipo de intertextualidade, que reflete uma variação (contextualização) da compreensão de uma determinada passagem do Antigo Testamento.17 Nesse caso, e no caso de todo o Novo Testamento, esse uso é validado pela inspiração; já que, por meio da inspiração, novos contextos são encontrados para os escritos veterotestamentários.18 Moyise chama esse nível de Intertextualidade Dialógica, que é entendida como uma interação entre o texto e o subtexto, operando em ambas as direções (respeitando o sentido original ou alterando-o).19 Nota-se que, nesse nível, ainda é apropriado considerar o contexto original ao interpretá-lo dentro do novo contexto, pois isso ajudaria a manter um equilíbrio entre intenção (contexto original [AT]) e significado (novo contexto [NT]).

Finalmente, ao definir o nível de variação ou permanência do primeiro significado em relação ao segundo, pode-se alcançar melhor compreensão da troca mútua de informações e o reconhecimento de que esses diversos componentes fazem parte de uma mesma entidade literária e ideológica.20 Acredito que não é apenas possível, mas absolutamente necessário, manter em mente que a Escritura é essencialmente complementar em natureza e caráter; e que o mundo narrativo da Bíblia compartilha em todos os seus níveis, seções e contextos uma característica distintiva: a singularidade da inspiração. 

HEBER PINHEIRO professor de Teologia na Universidade Adventista do Chile

Referências

1 Ver Richard L. Schultz, “The Ties that Bind: Intertextuality, the Identification of Verbal Parallels, and Reading Strategies in the Book of Twelve”, Society of Biblical Literature 2001 Seminar Papers (2001), p. 40, 41.

2 Robert P. Carroll, The New Literary Criticism and the Hebrew Bible (Valley Forge, PA: Trinity Press International, 1994), p. 57.

3 David Penchansky, Reading Between Texts. Intertextuality and the Hebrew Bible (Louisville, KY: Westminster John Knox, 1992), p. 77.

4 John Barton, “Intertextuality and the ‘Final Form’ of the Text”, Congress Volume Oslo 80 (1998), p. 35.

5 Martin G. Klingbeil, “Contextualizaciones de Isaías en San Marcos”, DavarLogos 2.2 (2003), p. 141.

6 Para referências, ver Heber Pinheiro, “Intertextualidad: Hacia un Abordaje Equilibrado”, Advenimiento 10 (2022), p. 18-25.

7 Gary E. Schnittjer, “The Narrative Multiverse Within the Universe of the Bible: The Question of ‘Borderlines’ and ‘Intertextuality’”, Westminster Theological Journal 64 (2002), p. 231-252.

8 Schnittjer, “The Narrative Multiverse Within the Universe of the Bible: The Question of ‘Borderlines’ and ‘Intertextuality’”, p. 231.

9 Schnittjer, “The Narrative Multiverse Within the Universe of the Bible: The Question of ‘Borderlines’ and ‘Intertextuality’”, p. 232.

10 Schnittjer, “The Narrative Multiverse Within the Universe of the Bible: The Question of ‘Borderlines’ and ‘Intertextuality’”, p. 239, 240.

11 John Reumann, “Selecciones de Leccionarios en la Tradición Luterana”, Concilium 102 (1975), p. 36.

12 Gregory K. Beale, The Use of Daniel in Jewish Apocalyptic Literatura and in the Revelation of
St John (Lanham, MD: University Press of America, 1984), p. 43.

13 Jon Paulien, “Elusive Allusions: The Problematic Use of the Old Testament in Revelation”, BR 37 (1988), p. 40-48.

14 Paulien, “Elusive Allusions: The Problematic Use of the Old Testament in Revelation”, p. 48.

15 Ronald Bergey, “The Song of Moses (Deuteronomy 32.1-43) and Isaianic Prophecies: a Case of Early Intertextuality?”, Journal for the Study of the Old Testament 28 (2003), p. 47.

16 Jacques van Ruiten, “The Intertextual Relationship Between Isaiah 65:17-20 and Revelation 21:1-5b”, Estudios Bíblicos 51 (1993), p. 477.

17 Martin G. Klingbeil, “Contextualizaciones de Isaías en San Marcos”, DavarLogos 2.2 (2003), p. 142.

18 Ver “O Papel de Israel nas Profecias do Antigo Testamento”, Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, 7 v., ed. Francis D. Nichol (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010), v. 4, p. 12-25.

19 Steve Moyise, The Old Testament in the New Testament (Sheffield: Sheffield Academic Press, 2000), v. 26, p. 17.

20 Robert W. Wall, “The Intertextuality of Scripture: The Example of Rahab (James 2:25)”, em Studies in the Dead Sea Scrolls and Related Literature, ed. Peter W. Flint (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2001), p. 218.