Como Surgiu a Heresia e Foi Tratada em Tempos Históricos

EARL W. HESLOP

(Pastor-evangelista da Associação de Michigan)

FIM de o ministro escolher os devidos métodos para tratar as heresias, é-lhe importante conhecer o seu surgimento bem como a maneira em que foi tratada em anos passados.

Nos Tempos Apostólicos

Quando apresentada pelos apóstolos, tanto a judeus como a pagãos, a religião cristã era religião reformatória.

“Nenhuma reforma em tôda a história da igreja, foi efetuada sem encontrar sérios obstáculos. Assim foi no tempo de São Paulo. Onde quer que o apóstolo fundasse uma igreja, alguns havia que professavam aceitar a fé, mas introduziam heresias que, uma vez aceitas, excluiríam finalmente o amor da verdade.” 1

O conselho de João para enfrentar a heresia, é encontrado em II S. João 7-11:

“Porque já muitos enganadores entraram no mundo, os quais não confessam que Jesus Cristo veio em carne. Êste tal é o enganador e o anticristo. Olhai por vós mesmos, para que não percamos o que temos ganho, antes recebamos o inteiro galardão. Todo aquêle que prevarica, e não persevera na doutrina de Cristo, não tem a Deus; quem persevera na doutrina de Cristo, êsse tem tanto ao Pai como ao Filho. Se alguém vem ter convosco e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem tampouco o saudeis, porque quem o saúda tem parte nas suas más obras.”

O apóstolo descreve aqui o herege como alguém que “não persevera na doutrina de Cristo.” Sua maneira de tratar o herege era de não ser com êle sociável, nem desejar-lhe bom êxito. João não queria que os cristãos mantivessem relações sociais estreitas com os que negam a Cristo. Os membros que negavam a Cristo eram hereges, e os crentes não deveriam com êles mancomunar-se.

Uma indicação da maneira em que os primeiros hereges agiam é vista nesta declaração:

“Os apóstolos e seus coobreiros na igreja cristã primitiva eram constantemente obrigados a enfrentar heresias intriduzidas por falsos mestres existentes no próprio seio da igreja. Êsses mestres são apresentados não como a surgirem abertamente, a introduzirem-se sorrateiramente, com o movimento rastejante da serpente. Seguiam seus próprios caminhos perniciosos, mas não se satisfaziam sem desviar consigo outros. Não possuiam uma corrente concatenada de verdades, mas ensinavam uma mescla desconjuntada de idéias, amparadas por um passo das Escrituras aqui e outro ali.”2

Como indicação de que têrmo heresia era aplicado a qualquer crença não aprovada por outra pessoa, podemos considerai* a perseguição dos primeiros séculos, quando erros e heresias foram introduzidos na igreja.

“Quando a primitiva igreja se corrompeu, afastando-se da simplicidade do evangelho e aceitando ritos e costumes pagãos, perdeu o Espírito e o poder de Deus; e, para que pudes-se governar a consciência do povo procurou o apoio do poder secular. Disso resultou o papado, uma igreja que dirigia o poder do Estado, e o empregava para favorecer seus próprios fins, especialmente na punição da “heresia”. 3

“Foi necessária uma luta desesperada por parte daqueles que desejavam ser fiéis, permanecendo firmes contra os enganos e abominações que se disfarçavam sob as vestes sacerdotais e se introduziam na igreja. A Escritura Sagrada não era aceita como a norma de fé. A doutrina da liberdade religiosa era chamada heresia, sendo odiados e proscritos seus mantenedores.” 4

No Tempo dos Pais da Igreja

A menção mais antiga de heresia nos escritos dos pais da igreja ocorreu cêrca do ano 100 A. D., quando Inácio de Antioquia escreveu a Trallians:

“Exorto-te, pois, a abandonares os pastos estranhos da heresia e te manteres inteiramente com alimento cristão … pois os hereges misturam veneno com Jesus Cristo, assim como os homens poderiam adicionar veneno mortal ao vinho doce, sem dar a menor demonstração de sua malignidade, de forma que, sem o pensa-mento nem temor da doçura mortal, o homem bebe para a sua própria morte. Guarda-te dêsses homens. Isso te será possível se não fôres presunçoso e te apegares a Jesus Cristo, ao bispo e às ordenanças dos apóstolos. Quem estiver dentro do santuário é puro, e quem fora dêle estiver, impuro é, isto é, ninguém que procede independentemente do bispo, dos sacerdotes e diáconos possui consciência esclarecida.” 5

Aos filadelfos, escreveu Inácio:

“Não erreis, irmãos. Ninguém que segue outra pessoa num cisma herda e reino de Deus. Ninguém que segue doutrina herética está ao lado da paixão.” 6 “Havendo, pois, nascido da luz da verdade, desvia-te da divisão e das más doutrinas. Onde está o pastor, tu, como ovelha, deves seguir.” 7 Reza outra versão: “Sois filhos da verdade; abandonai as heresias. Segui, como ovelhas, aonde quer que o pastor guiar.” 8

Onze diversas idéias e doutrinas foram promulgadas durante os primeiros séculos do cristianismo. Foram elas: O arianismo, negação da divindade do Filho; macedonismo, negação da divina personalidade do Espírito Santo; apolinarismo, negação da perfeição da natureza humana de Cristo; nestorianismo, crença de que Cristo tinha duas naturezas e era duas pessoas— Cristo nasceu e a divindade uniu-se, de-pois, à humanidade; eutiquianismo, crença de que Cristo possuia natureza mista de divindade e humanidade; gnosticismo, crença de que de uma divindade suprema fluia uma série de emanações; docetismo, crença de que o corpo do Senhor não era um verdadeiro corpo humano, mas possuia apenas a aparência; montanismo, crença mista de zoroasticismo e cristianismo; sabelianismo, crença de que a Trindade não são três pessoa mas manifestações de uma Pessoa; e fotiniamismo, crença de que Cristo era mero homem atuado pelo Logos. 9

Alguns dos pais da igreja que combateram essas heresias, foram S. Jerônimo, S. Crisóstomo, Sto. Agostinho e S. Basílio. Num de seus sermões, Sto. Agostinho usou S. Lucas 14:22 e 23 como base para estas observações:

“Não esperes que aquêles a quem encontrares escolham vir; compele-os a entrar. Eu preparei um grande banquete, uma casa grande, não posso permitir que haja ali lugares vagos. Os gentios vieram das ruas e vielas: deixai vir os gentios dos muros. Êles aqui encontrarão paz. Os que erguem muros têm por objetivo divisões. Deixai-os afastar-se dos muros; sejam êles arrancados dentre os espinhos. Agarram-se êles aos muros e não se deixam forçar. Deixai-nos entrar, dizem êles, quando nos aprouver. Não é essa a ordem do Senhor. ‘Força-os’ disse Êle, ‘a entrar’. Seja a coação exercida fora, a vontade surgirá dentro.” 10

Durante o tempo de Agostinho, o Primeiro Concilio de Constantinopla, em 381 A. D., no Cânon VI proveu uma definição de heresia, que indica o tratamento dispensado aos hereges. Declara o Cânon VI:

“E por hereges entendemos tanto os que fo-ram anteriormente expulsos e os a quem nós mesmos depois disso excomungamos, como também os que, professando seguir a fé verdadeira, se separaram de nossos bispos canônicos, e es-estabeleceram conciliábulos, em oposição [a êles].” 11

S. Crisóstomo (347-407) advertiu em homílias contra a perseguição. Escreveu êle: “E se orais pelos pagãos, deveis, naturalmente, orar também pelo hereges, pois devemos orar por todos os homens e não perseguir.” 12

Jerônimo lançou as bases para a perseguição em que a Igreja Católica Romana mais tarde se empenhou, pois ao escrever contra os pelagianos, apresenta êle Ático (católico) empenhado num diálogo com Cristóbulo (herege). A opinião de Jerônimo é expressa nesta conversação :

“C. Forçais-me a fazer uma observação odiosa e a perguntar: Mas que pecado cometeram êles para me quererdes apedrejar imediatamente em algum tumulto popular? Não tendes o direito de matar-me, mas certo é que possuis a vontade de fazê-lo.

“A. E mata o herege que lhe permite ser herege. Porém, quando o repreendemos concedemos-lhe vida; podeis morrer para a vossa heresia, e viver para a fé católica.” 13

Reconhece-se que a perseguição movida pela igreja foi um êrro que motivou o castigo dos arrebanhados em nome da religião, e um dos erros mais crassos foi que a heresia devesse ser desarraigada pelo Estado. Logo que o paganismo e o cristianismo se amalgamaram, o Estado foi estimulado a forjar leis contra os hereges. Os imperadores supostos cristãos do tempo de Constantino fizeram leis que no Código Compilado, de Teodósio, estavam agrupadas sob o único título, De Haereticis. As penalidades para os hereges eram a privação de tôdas as funções de dignidade e renda, o comércio com os hereges estava proibido, nenhuma propriedade podia ser por êles adquirida nem vendida, destêrro e castigos corporais. Ao mesmo tempo a igreja excomungava-os, proibia-os de entrar nos templos, ouvir sermões ou a leitura das Escrituras, bem como proibia outras pessoas de a êles se unirem em cultos religiosos, de com êles conversar ou comer, e as testemunhas hereges não podiam ser aceitas em causas eclesiásticas. 14

Durante a Idade Média

Ao generalizar-se a crença de que, por determinação divina, a Igreja Católica era a depositária da verdade salvadora, a significação de heresia tornou-se importantíssima. Qualquer pessoa que não aderisse a essa crença era herege, e os hereges destruiríam a igreja, caso não fôssem primeiramente destruídos. Cria-se que os hereges destruiríam a crença. Disse um porta-voz católico:

“Desfazer a crença equivale a destruir a igreja. A integridade da regra de fé é mais im-portante para a coesão da sociedade religiosa do que a prática estrita dos preceitos morais. A fé, como uma de suas funções comuns, supre meio de corrigir as delinqüências morais, ao passo que a perda da fé, atingindo a raiz da vida espiritual, é geralmente fatal para a alma.” 15

Tal é a opinião católica. Essa opinião conduz à punição do herege com o fito de salvar-lhe a alma.

Os pais da igreja tratavam com severidade todo afastamento da doutrina católica, por crerem fôsse conseqüente de insubordinação à crença católica, e êsse afastamento devesse ser castigado.” 16

“No século treze foi estabelecido o mais terrível de todos os estratagemas do papado — a inquisição.” 17 Castigo cruel e horrível era infligido ao ser ou “herege” forçado pela igreja a renunciar a sua crença. Êsse é o resultado do método empregado pela Igreja Católica para enfrentar a “heresia”. “Morra o herege”, era o brado.

Durante a Reforma e Depois Dela

Um dos mais antigos líderes da Reforma, Martinho Lutero, foi, pela Igreja Católica, acusado de heresia:

“Quando os inimigos apelavam para os costumes e as tradições, ou para as declarações e a autoridade do papa, Lutero enfrentava com a Bíblia, e a Bíblia unicamente. Ali estavam argumentos que não podiam refutar; portanto os escravos do formalismo e superstição clamavam por seu sangue, como o fizeram os judeus pelo sangue de Cristo. ‘Êle é herege’, bradavam os fanáticos romanos. ‘É alta traição à igreja permitir que tão horrível herege viva uma hora mais. Arme-se imediatamente para êle a fôrca!’” 18

Os protestantes deveriam logo seguir as pegadas do papado. As igrejas dissidentes foram perseguidas na Inglaterra. Quakers e puritanos, juntamente com anabatistas sofreram nas mãos do Estado. Moveu-se-lhes perseguição até ao fim do século dezessete. 19 Na advertência aos quakers e sabatistas, é citado o caso duma Sra. Trask, espôsa de herege. Disse êsse autor, de 1635: “Sua espôsa, Trask por motivo de sua opinião acêrca do sábado, foi aprisionada durante cêrca de quinze ou dezesseis anos; em todo êsse tempo, não obstante implorar muito, não lhe foi permitido receber o confôrto de quem quer que fôsse, sob a alegação de que mais bem-aventurada coisa é dar que receber. Nem pôde tomar coisa alguma por empréstimo, porque, semelhantemente, está escrito: Emprestarás a muitas nações, mas não tomarás empréstimos. Assim sendo, considerava ela desonra para si, quer pedir, quer tomar empréstimo. Sua alimentação durante a maior parte do tempo de prisão, isto é, até pouco antes de morrer, consistiu em pão, água, raízes e ervas; nada de carne, nem vinho, nem bebida fermentada. Todo o seu recurso se resumia a uma anuidade de quarenta xelins; o que de mais falta lhe fazia para viver, ganhava-o ela de prisioneiros a quem algumas vêzes prestava algum serviço:isso, porém, unicamente dentro da prisão, porque fora ela nunca ia. Assim, ela ali adoeceu e morreu. Encarregou ela o guarda da prisão de que a não enterrasse na igreja nem no seu pátio, mas em campo aberto, o que cumpriu. Em sua personalidade, vemos expressa, não sòmente uma obstinação estranha e inflexível dum espírito pervertido, mas também, o estado infeliz e miserável de todos os hereges, pior do que o de outros transgressores comuns; pois não apenas se separam da igreja, como fêz, a ponto de não pertencer a igreja nem comunidade cristã alguma; mas excomungam-se a si próprios e condenam-se, de conformidade com o apóstolo Tito 3:10: Ao homem herege, depois de uma e outra admoestação, evita-o. 20

Êsse tratamento infligido à Sra. Trask nada tinha de excepcional.

“Em cada época houve testemunhas de Deus — homens que acalentavam fé em Cristo como único mediador entre Deus e o homem, que mantinham as Escrituras Sagradas como a única regra de vida, e santificavam o verdadeiro sábado. Quanto o mundo deve a êstes homens, a posteridade jamais saberá. Foram estigmatizados como hereges, impugnados os seus motivos, criticados os seus caracteres, e suprimidos, difamados ou mutilados os seus escritos.” 21

Bibliografia

  • (1) Ellen G. White, O Conflito dos Séculos, pág. 396.
  • (2) Ellen G. White, “Erroneous Doctrines Dange-rous,” The Signs of the Times, 27 de março de 1884.
  • (3) Ellen G. White, O Conflito do Séculos, pág. 442.
  • (4) Ibidem, pág. 45.
  • (5) Ignatius, “To the Trallians,” The Apostolic Fathers, trad, de Glimm, Marique and Walsh, na série The Fathers of the Church, (Nova York: Clima Publishing Company, Inc., 1947) vol. I, págs. 103 e 104.
  • (6) Ibidem, pág. 114.
  • (7) The Epistles of St. Clement of Rome and St. Igna-tius of Antioch, trad, de James A. Kleist (Westminster, Maryland: The Newman Bookshop, 1946), págs. 85 e 86.
  • (8) Ignatius, op. cit. pág. 113.
  • (9) Frederick Meyrick “Heresy”, A Protestant Dictionary (Londres: Hodder and Stoughton, 1904), págs. 261-263.
  • (10) St°. Agostinho, “Sermons on Selected Lessons of the New Testament, N°. LXII,” trad, de R. G. MacMullen, The Nicene and Post-Nicene Fathers, Segunda série, ed. de Philip Schaff (Nova York: The Christian Literature Company, 1888), vol. VI, pág. 449.
  • (11) “The Seven Ecumenical Councils”, The Nicene and Post-Nicene Fathers, Segunda série, ed. de Philip Schaff and Henry Wace (Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1900), vol. XIV, pág. 183.
  • (12) S. Crisóstomo, “Homilies on Thimoty”, Homilv VII, The Nicene and Post-Nicene Fathers, Primeira série, ed. de Philip Schaff (Nova York: The Christian Literature Company, 1889), vol. XIII, pág. 430.
  • (13) S. Jerônimo, “Against the Pelagians”, Livro III, 17, The Nicene and Post-Nicene Fathers, Segunda série, ed. de Philip Schaff and Henry Wace (Nova York: The Christian Literature Company, 1893), vol. VI, pág. 481.
  • (14) Cyclopaedia of Biblical Theological and Ecclesias-cal Literature, vol. IV, págs. 200 e 201, art. “Heresy”.
  • (15) J. Wilhelm, “Heresy”, The Catholic Encyclopedia. vol. VII. 259.
  • (16) P. Hinschius, “Heresy”, The New Schaff- Herzog Encyclopedia of Religious Knowledge, vol. V, págs. 234 e 235.
  • (17) Ellen G. White, o O Conflito dos Séculos, pág. 59.
  • (18) Ibidem, pág. 132.
  • (19) Talbot Wilson Chambers, “Heresy”, Concise Dictionary of Religious Knowledge (Nova York: The Christians Literature Company, 1891), pág. 365.
  • (20) Ephraim Paggit, Heresiography (Londres: William Lee, 1662), págs. 196 e 197.
  • (21) Ellen G. White, O Conflito dos Séculos, pág. 61.