O significado de obras da lei em Gálatas 2:16

A expressão “obras da lei” aparece nas cartas de Gálatas e Romanos escritas por Paulo e descreve um sistema por meio do qual alguns cristãos tentavam obter a justificação.1 Mas o que são as obras da lei? Paulo não explica. Hoje, há um consenso quase universal de que essa expressão se refere à obediência à Lei de Deus e/ou um compromisso para com outras boas obras que visem obter a salvação. Na Nova Versão Internacional, de 1984, isso é descrito como “prática da lei” (Gl 2:16).

Mas, como surgiu essa compreensão?

A Reforma

A Reforma Protestante começou no ano de 1517 com Martinho Lutero. Nos doze anos que se antecederam, ele foi um monge agostiniano que se devotava ao jejum, a muitas horas em oração, a peregrinações e a confissões frequentes.2 A sua ordem tinha indicações de como se devia andar, de qual deveria ser a postura correta do corpo e de como se devia viajar. Além disso, a ordem impunha que os monges não olhassem para pessoas do sexo oposto e também tinha imposições sobre o que deviam vestir e como deviam cuidar das roupas. Ademais, decretava o cuidado com os doentes e exigia a obediência aos superiores.3

Lutero se esforçava para fazer tudo isso, a fim de obter o favor de Deus e a salvação, mas, em vez disso, sentia-se espiritualmente miserável e longe de Cristo.4

Quando ele entendeu que a salvação era um dom gratuito de Deus oferecido por intermédio de Jesus, ele justapôs seu novo entendimento com sua vida anterior de obediência rígida e regrada. Portanto, por haver compreendido a doutrina da justificação pela fé como fé versus obediência, ele projetou esse modelo em Paulo, em que as “obras da lei” faziam um paralelo com a obediência rigorosa da lei, enquanto a justificação pela fé refletia a salvação como uma dádiva. Ao fazer isso, ele deixou um legado para as futuras gerações de protestantes.

Há uma certa legitimidade no que Lutero compreendeu. Não é possível obter a salvação pela obediência, não importa quão rigorosa ela seja. Contudo, será que era isso que Paulo tinha em mente quando contrastou as obras da lei com a graça de Cristo? Acredito que não.

Neste breve estudo, iremos nos focar em dois tipos de obras: “as obras do Senhor” e “as obras da lei.” As duas expressões soam similarmente e há um paralelo conceitual, semântico e também teológico entre elas. No entanto, as duas são bem diferentes e essa diferença precisa ser compreendida.

A obra do Senhor

Era cerca de 1445 a.C. O povo de Israel havia saído do Egito e estava acampado aos pés do monte Sinai. Deus o convidou a entrar em uma relação de aliança com Ele (Êx 19:1-6).

A aliança tinha dois elementos. Primeiro, Israel tinha sido chamado a obedecer o que o Senhor dissesse, obedecer os Dez Mandamentos (Êx 20:1-7) e aplicar os princípios dos mandamentos na vida cotidiana (Êx 21–23). O povo prometeu três vezes que faria isso (Êx 19:8; 24:3, 7).

Segundo, porque Israel era composto de seres humanos pecadores e Deus era santo e sem pecado, eram oferecidos sacrifícios de animais e Moisés aspergia o sangue sobre o povo (Êx 24:4-7). Esse sangue era chamado de “sangue da aliança” (v. 8). Os sacrifícios faziam parte da maioria das alianças do Antigo Oriente e indicavam a penalidade que seria aplicada a quem violasse a aliança.

A promessa de obediência e o sangue da aliança colocavam o povo de Israel em uma relação de aliança com Deus. Contudo, mal havia passado 40 dias e o povo já tinha quebrado a aliança ao fabricar e adorar um bezerro de ouro, engajando-se até em imoralidade sexual (Êx 32).

Então Deus declarou que a aliança estava quebrada e que Israel não mais era o Seu povo (Êx 32:7, 10; 33:1). Merecia a pena de morte, em consonância com a pena prevista no sacrifício de bois (Êx 32:10, 27, 33, 34, 35; 33:5). Em vez disso, Ele disse que faria uma nação a partir de Moisés, que, do mesmo modo, quebrou as tábuas da lei, indicando que a aliança já não estava em vigor (Êx 32:19). Seria esse o fim de Israel como povo de Deus?

Porém Moisés interveio em favor do povo de Israel, suplicando que Deus o perdoasse. Deus concordou. Era como se Ele estivesse esperando que Moisés suplicasse pelo povo. Deus declarou que Ele é “compassivo e bondoso, tardio em irar-Se e grande em misericórdia e fidelidade, que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a maldade, a transgressão e o pecado” (Êx 34:6, 7).

Depois, fez uma promessa maravilhosa: “Eis que Eu faço uma aliança. Diante de todo o seu povo farei maravilhas que nunca foram feitas em toda a terra, nem entre nação alguma, de maneira que todo este povo, em cujo meio você está, veja a obra do Senhor; porque coisa terrível é o que faço com você” (v. 10). Aqui, Deus prometeu fazer uma grande “obra,” algo que todo o povo veria.

A que obra Deus estava Se referindo? Ao sacrifício de Jesus na cruz – a maior manifestação do Seu caráter misericordioso e a resposta para as constantes falhas de Israel e da humanidade.

Paulo compreendeu a “obra do Senhor” da seguinte maneira. Quando pregou em uma sinagoga na Galácia, ele disse que o perdão dos pecados era oferecido por meio de Jesus (At 13:38, 39) e advertiu o povo a não negligenciar essa obra: “Vejam, ó desprezadores! Fiquem maravilhados e desapareçam, porque, no tempo de vocês, eu realizo obra tal que vocês não acreditarão se alguém lhes contar” (v. 41).

Sim, a grande obra do Senhor é o sacrifício de Cristo na cruz, a maior obra que o mundo já presenciou.

As obras da lei

Mas o que são as “obras da lei” que Paulo menciona?

São obras. Vamos começar pela palavra obras. Ela implica algo que se faz. Os rigorosos requisitos da ordem agostiniana podem ter parecido a Lutero se encaixar na descrição de “obras da lei,” mas os Dez Mandamentos não. Por quê? Bem, oito dos dez mandamentos são proibitivos, ou seja, não lhe dizem o que fazer, mas sim o que não se deve fazer. Isso significava que as obras da lei não podiam estar se referindo à obediência aos Dez Mandamentos. Isso seria um equívoco.

São algo no Pentateuco. Quando o leitor moderno ouve a palavra lei, ele é remetido a um código judicial. Da perspectiva cristã, a escolha lógica seria os Dez Mandamentos, que são o maior código legal descrito na Bíblia. No entanto, essa compreensão está errada, pois estamos usando uma interpretação atual de uma palavra para entender um texto antigo. Para os judeus e cristãos do primeiro século, a lei era a Torá, o Pentateuco, isto é, os primeiros cinco livros da Bíblia, de Gênesis a Deuteronômio. Isso é senso comum nos círculos teológicos.

Leiamos novamente Gálatas 2:16 com essa percepção simples em mente: “Sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras do Pentateuco, e sim mediante a fé em Jesus Cristo, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras do Pentateuco, pois por obras do Pentateuco ninguém será justificado” (Gl 2:16; os itálicos indicam ajuste de tradução).

Soa bem diferente, não é? A minha tradução é um reflexo bem mais exato do que os leitores de Paulo devem ter entendido, diferentemente das traduções atuais.

Eram uma tentativa de justificação. Vamos ler Gálatas 2:16 novamente. Paulo usa a palavra “justificado” três vezes. Mas o que essa palavra significa? É melhor deixarmos o próprio Paulo responder: “Portanto, meus irmãos, saibam que é por meio de Jesus que a remissão dos pecados é anunciada a vocês; e, por meio Dele, todo o que crê é justificado de todas as coisas das quais vocês não puderam ser justificados pela lei de Moisés” (At 13:38, 39).

Perceba que nesse verso há uma conexão entre as palavras remissão (perdão) e justificado. Perdão é um termo teológico que implica que o pecado de alguém foi perdoado. Justificação é um termo jurídico e implica que alguém acusado judicialmente foi absolvido. Por quê? Porque a sentença foi cancelada. Assim, o perdão e a justificação descrevem a mesma coisa, mas de perspectivas diferentes: uma teológica e a outra jurídica.

Então como o perdão era ofertado no tempo do Pentateuco? Bem, não era por meio da obediência aos Dez Mandamentos ou a qualquer outro documento legislativo, mas sim por meio de um sacrifício.

Mishna, a expressão culpado, culpável (hayabh) ou livre (patur) é usada, sendo que o significado da primeira (culpado)é que o transgressor que agia sem intenção devia trazer a oferta pelo pecado que estava prescrita na lei [Pentateuco].”

E depois disse: “A penalidade para a primeira classe de infrações era simplesmente o sacrifício de uma oferta pelo pecado, que, no entanto, envolvia muitas dificuldades, pois o culpado tinha que levar pessoalmente a oferta pelo pecado ao templo em Jerusalém e era frequentemente obrigado a percorrer uma grande distância para isso, além de sofrer a perda do valor da oferta.”5

Os judeus do primeiro século sabiam que se alguém quisesse ser perdoado/justificado não tinha que tentar com mais afinco ou ser mais severo na obediência à lei, como fazia Martinho Lutero, em vez disso, um sacrifício era oferecido pelo pecado. Será então, que as “obras do Pentateuco”, que tinham por objetivo perdoar/justificar, eram os sacrifícios que o Pentateuco prescrevia? Parece que sim. Elas eram prescritas no Pentateuco e envolviam a realização de obras para perdão dos pecados.

Analisemos mais uma evidência.

A palavra obras no Pentateuco. Quando se tenta encontrar o significado de alguma coisa, o senso comum sugere que se comece pelo óbvio. Quando ouvimos a expressão “obras do Pentateuco”, o lugar mais óbvio para se procurar seu significado seria no próprio Pentateuco. Infelizmente, a maioria dos teólogos não se preocupa em buscar o significado nele. Caso o tivessem feito, o mal entendido que envolve essa questão provavelmente jamais teria surgido!

A palavra obra/obras, do grego ergon/erga, aparece 149 vezes na Torá. Cerca de metade delas faz referência a obras seculares de homens ou aos atos poderosos de Deus que não têm relação com perdão/justificação. Além do mais, a palavra nunca aparece relacionada à guarda dos Dez Mandamentos ou a qualquer outro código judicial.

O mais interessante é que 70 vezes a palavra está relacionada com o tabernáculo e seus serviços, incluindo os sacrifícios. Na verdade, todo o serviço realizado no tabernáculo é chamado de “serviço [obra] do tabernáculo” (Nm 3:7; NVI). A expiação pelos pecados era realizada no tabernáculo. Portanto, as obras do Pentateuco, que tinham por objetivo o perdão/justificação e contra as quais Paulo adverte, referem-se aos sacrifícios e às outras obras realizadas no templo/tabernáculo e não à obediência aos Dez Mandamentos ou a qualquer outro código judiciário da Bíblia.

Conclusão

Com base nas afirmações acima, podemos retraduzir ou parafrasear Gálatas 2:16 da seguinte forma: “Sabendo, contudo, que o homem não pode ser justificado por obras prescritas no Pentateuco, nomeadamente os serviços do santuário, e sim mediante a fé [no sacrifício de] Jesus Cristo, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos perdoados/justificados pela fé em Cristo e não por obras prescritas no Pentateuco, pois por obras do Pentateuco ninguém será perdoado/justificado” (Gl 2:16; ajuste de tradução).6

Lutero tinha razão. A obediência humana não pode apagar os pecados do passado e não pode salvar. Ele estava certo quanto a isso. Contudo, ele estava errado ao usar as suas circunstâncias pessoais como um prisma para interpretar as palavras de Paulo. Ao fazer isso, ele deixou um legado hermenêutico que se transformou eventualmente em variações diferentes do antinomianismo cristão, que ensina graça versus obediência.

Paulo não estava dizendo aos gálatas cristãos que parassem de guardar os mandamentos, ou de se esforçar tanto para fazê-lo, ou ainda que parassem de fazer coisas boas. Afinal, a mensagem de Paulo não se refere aos mandamentos ou a fazer o bem. Ele estava dizendo que o templo e seus serviços – o sistema sacrifical –, já não tinham efeito no plano da salvação.

As ineficazes “obras da lei” que não podem purificar o pecado humano foram substituídas pela incrível e totalmente eficaz “obra do Senhor”. Aleluia! 

Referências

1 Romanos 3:20, 27, 28; Gálatas 2:16; 3:2, 5, 10.

2 Roland Bainton, Here I Stand: A Life of Martin Luther (Nova York: Editora Penguin, 1995), p. 40-42.

3 “Rule of St. Augustine,” Midwest Augustinians, disponível em <midwestaugustinians.org/roots-of-augustinian-spirituality>, acesso em 5/6/23.

4 James Kittelson, Luther the Reformer (Mineápolis: Augsburg Fortress, 1986), p. 79.

5 Michael L. Rodkinson, The Babylonian Talmud (Boston: Talmud Publications, 1903), p. xxii, xxvi.

6 Uma nota sobre Gálatas 3:10, que parece fazer uma conexão entre “obras da lei” com a obediência: “Pois todos os que são das obras da lei estão debaixo de maldição, porque está escrito: ‘Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no Livro da Lei, para praticá-las.’” Nesse texto, Paulo enfatiza a impossibilidade da salvação sem Cristo Jesus. Uma pessoa que não tem Cristo só pode ter um dos dois status seguintes. Primeiro, ela pode “permanecer em todas as coisas escritas no Livro da Lei”, ou seja, não pecar. Ou, se ela falhar em “permanecer em todas as coisas”, ela infringirá a lei. Então, ela é uma pecadora debaixo de uma maldição. Já que os sacrifícios das “obras da lei” não podem perdoar os pecados, a maldição permanece. Logo, os únicos dois status possíveis para uma pessoa sem Cristo são: não pecar ou ser amaldiçoada. E como nenhuma pessoa é sem pecado a não ser Jesus
(Rm 3:23), a maldição do pecado continua sobre todos os que rejeitam a Cristo. A única coisa que pode retirar a maldição do pecado é o sacrifício de Jesus, a maravilhosa “obra do Senhor”.


KIM PAPAIOANNOU
pastor no Chipre