O acadêmico britânico Oliver Barclay define ideologia como “um conjunto de doutrinas ou crenças que formam a base da política, da economia ou de qualquer outro sistema”.1 Em geral, as ideologias servem a um projeto de poder e são coletivas, conduzindo parte da sociedade em determinada direção social, econômica e cultural. Elas têm alcançado diversos ambientes, inclusive a igreja cristã.
Vivemos, portanto, tempos desafiadores para o cristianismo. Ideologias que antes se mantinham fora do contexto eclesiástico – como o ateísmo, o marxismo e o darwinismo – agora se infiltram no meio cristão. Conceitos como o progressismo teológico, a ideologia de gênero e a desvalorização da autoridade bíblica tentam moldar a fé conforme padrões humanos, colocando a cultura acima da Palavra de Deus.
Diante desse cenário, surgem duas perguntas essenciais: Como devemos lidar com ideias não bíblicas? E como aqueles que defendem essas ideologias podem ser chamados ao arrependimento e à verdadeira conversão?
O apóstolo Paulo enfrentou desafios ideológicos ao longo de seu ministério. Em sua segunda carta à igreja de Corinto, ele combate um problema ideológico e nos oferece um exemplo de estratégia, inspirada pelo Espírito Santo, para lidar com essa guerra de ideias – um conflito que, há séculos, ameaça a integridade da fé cristã.
O humanismo como “guarda-chuva”
Seria difícil, em pouco espaço, abordar todas as ideologias que hoje atacam o cristianismo. No entanto, é possível agrupá-las sob o “guarda-chuva” do humanismo, pois todas elas se relacionam, em algum grau, com essa cosmovisão.
Segundo o filósofo humanista Paul Kurtz, em seu livro What is Secular Humanism?2, o humanismo remonta aos tempos de Confúcio, na China. Para ele, esse movimento seria tão antigo quanto a própria humanidade e atravessaria toda a história. Kurtz – um humanista declarado e responsável pela redação dos três manifestos humanistas mais influentes dos últimos tempos –,3 lamenta que o humanismo tenha sido eclipsado durante o que ele chama de “Idade das Trevas”, referindo-se à Idade Média, quando o cristianismo católico reduziu a ênfase no pensamento antirreligioso.
Kurtz argumenta que o humanismo secular possui uma longa tradição intelectual que rejeita explicações sobrenaturais e valoriza a razão, a ciência e a dignidade humana.4 Em sua leitura histórica, ele aponta que, no século 20, o humanismo secular enfrentou tanto opositores teológicos (como o papado de João Paulo II e os movimentos islâmicos fundamentalistas), quanto críticas pós-modernas, que questionam a objetividade da razão e a confiança na ciência. Ainda assim, pensadores como Bertrand Russell, John Dewel, Sidney Hook, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre (com suas reservas existenciais) mantiveram vivo o ideal de um humanismo centrado na razão, na ética humanista e na emancipação da condição humana.
No livro Is Man the Measure?,5 o filósofo e teólogo Norman Geisler apresenta uma excelente análise do humanismo sob uma perspectiva cristã. Ele mostra como as diversas vertentes de humanismo convergem em um ponto comum: a tentativa de utilizar a razão humana como único meio para explicar a vida e a realidade.
Diante desse panorama, a teologia cristã – especialmente aquela fundamentada na revelação bíblica – é desafiada a se posicionar frente a um humanismo que recusa o transcendente, rejeita a autoridade das Escrituras e sustenta uma antropologia autônoma. Como destaca o próprio Kurtz, o humanismo secular reivindica ser uma eupraxsophy, ou seja, uma sabedoria prática capaz de fornecer valores, ética e sentido à existência sem recorrer a qualquer divindade. Ao fazer isso, o humanismo disputa com a fé cristã o terreno da moralidade, da dignidade humana e da esperança. Por esse motivo, dentre outros, os cristãos, especialmente os líderes espirituais, precisam estar preparados para lidar com essas questões.
Como mencionado anteriormente, o apóstolo Paulo pode nos ajudar nessa tarefa. A partir de sua experiência no enfrentamento das ideologias de sua época, ele nos fornece um modelo guiado pelo Espírito Santo para resistir a esses desafios com firmeza, sabedoria e fidelidade à verdade revelada.
A luta contra as ideologias e a autoridade das Escrituras
Em 2º Coríntios 10:3 a 5, lemos: “Porque, embora andemos na carne, não lutamos segundo a carne. Porque as armas da nossa luta não são carnais, mas poderosas em Deus, para destruir fortalezas. Destruímos raciocínios falaciosos e toda arrogância que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levamos cativo todo pensamento à obediência de Cristo.”
O apóstolo Paulo deixa claro que nossa luta não é apenas intelectual ou filosófica, mas, sobretudo, espiritual. As ideologias antibíblicas não são meros sistemas de pensamentos humano; elas se apresentam como fortalezas espirituais erguidas contra a verdade revelada de Deus. Por isso, não basta enfrentá-las com argumentos puramente racionais ou retóricos – precisamos de armas espirituais “poderosas em Deus” (v. 3).
Muitos cristãos acreditam que as ideologias podem ser derrotadas apenas com lógica, debates e retórica. No entanto, a Bíblia nos mostra que essas falsas crenças são influenciadas por forças espirituais que obscurecem o entendimento das pessoas (2Co 4:4). A principal forma de combater tais ideologias é, portanto, com o poder de Deus e a proclamação fiel da Sua Palavra.
A Bíblia nos ensina que a verdade não é relativa. O salmista declara: “As Tuas palavras são em tudo verdade desde o princípio, e cada um dos Teus justos juízos dura para sempre” (Sl 119:160). Diante das ideologias do nosso tempo, devemos reafirmar um princípio fundamental: a Bíblia é nossa autoridade
final. Nenhuma ideologia está acima da revelação divina. Todo pensamento deve ser submetido à obediência de Cristo – e é por meio da Escritura e do poder do Espírito Santo que somos capacitados a viver e defender essa verdade.
As fortalezas das ideologias
O apóstolo Paulo utiliza uma metáfora militar para descrever a batalha espiritual contra as ideologias. Cristo não entra em “diálogo” com Platão ou Sartre buscando consenso. O que Paulo descreve não é uma conversa amigável, mas uma guerra espiritual. Ele afirma que nossas armas espirituais são usadas para destruir, não apenas para argumentar:
- Fortalezas (v. 4)
- Raciocínios falaciosos (v. 4)
- Toda arrogância que se levanta contra o conhecimento de Deus (v. 5)
O termo traduzido como “raciocínios falaciosos” vem do grego logismós, que significa “pensamento, razão: tal como aquele que é hostil à fé cristã”.6 Essas fortalezas são estruturas mentais e ideológicas que aprisionam o pensamento humano, tornando-o resistente à verdade revelada por Deus.
Nos dias de Paulo, essa oposição se manifestava na contestação de sua autoridade apostólica. Hoje, muitas dessas fortalezas mentais se expressam por meio de ideologias como:
- A separação artificial entre lei e graça
- O progressismo teológico
- A desvalorização da autoridade bíblica
- O evangelho social e a teologia da libertação
- O marxismo religioso
- A contestação da moral e da ética bíblicas
- O liberalismo teológico
- A ideologia de gênero
Esses conceitos não são apenas equívocos filosófico-teológicos, mas manifestações de um sistema de pensamento hostil à fé cristã. A Bíblia ensina que o diabo é o “pai da mentira” (Jo 8:44) e que ele se vale de enganos sutis para desviar os cristãos da verdade.
As armas espirituais contra as ideologias
Se nossa luta não é meramente intelectual, mas espiritual, quais são as armas que devemos usar para combater as ideologias antibíblicas? O próprio apóstolo Paulo, inspirado por Deus, nos oferece respostas claras e práticas para essa questão.
1. A armadura de Deus: Em Efésios 6:10 a 18, Paulo descreve a armadura espiritual provida por Deus ao cristão:
- Cinto da verdade – contra o relativismo e as distorções da verdade.
- Couraça da justiça – para proteger o coração contra as tentações.
- Evangelho da paz – contra doutrinas que promovem divisão e violência.
- Escudo da fé – para apagar os “dardos inflamados” da dúvida, do engano e da heresia.
- Capacete da salvação – para guardar a mente da confusão ideológica e da falsa segurança.
- Espada do Espírito (a Palavra de Deus) – nossa única arma ofensiva, capaz de confrontar e vencer o erro.
Jamais devemos esquecer que a Palavra de Deus é viva e eficaz (Hb 4:12), capaz de expor e desmascarar
qualquer ideologia que se levante contra o conhecimento de Deus.
2. A humildade de Cristo contra a arrogância das ideologias: Paulo descreve a arrogância intelectual como uma “fortaleza” que impede muitos de se abrirem à verdade. No entanto, Jesus nos ensina que a humildade é o caminho para entrar no Reino de Deus (Mt 18:3).
A arrogância ergue muros no coração humano, tornando-o resistente à correção e à submissão à autoridade divina. Para muitos, aceitar a verdade bíblica exige reconhecer que estavam errados – algo difícil para quem se gloria em sua própria sabedoria.
Por isso, a resposta cristã diante das ideologias não deve ser marcada por soberba, mas pela humildade de Cristo, que, mesmo sendo Deus, esvaziou-Se a Si mesmo (Fp 2:5-8). Essa humildade é, ao mesmo tempo, arma e testemunho diante de um mundo que idolatra a autossuficiência.
3. Levar todo pensamento cativo a Cristo: Paulo nos ensina que a vitória contra as ideologias não está apenas em refutá-las, mas em submeter todo pensamento à obediência de Cristo. Essa atitude nos ajudaria a enfrentar uma das questões centrais levantadas pelos ideólogos e suas ideologias: Quem tem supremacia – a Bíblia ou a cultura? O teólogo Richard Niebuhr, em sua obra Cristo e a Cultura7, descreve três possíveis atitudes:
- Absorção total – submissão completa às ideias culturais, relativizando o evangelho.
- Rejeição total – isolamento completo da cultura, perdendo oportunidades de evangelização.
- Discernimento e submissão a Cristo – análise crítica da cultura à luz da autoridade bíblica.
A postura correta é: Cristo acima da cultura. O cristão não deve se submeter às ideologias, mas usar as Escrituras como critério supremo de avaliação. Como afirma Paulo: “Examinem todas as coisas, retenham o que é bom” (1Ts 5:21).
A Bíblia julga as ideologias, não o contrário
A batalha contra as ideologias antibíblicas não é nova. Desde os tempos apostólicos, o evangelho tem sido atacado por sistemas de pensamento contrários à revelação divina. No entanto, Deus nos concede armas espirituais para resistirmos às mentiras do inimigo e permanecermos firmes na fé.
Em resumo, algumas atitudes essenciais para destruir as “fortalezas ideológicas” são:
- Não permitir que a cultura dite os termos da nossa fé.
- Não ceder à pressão do progressismo e do liberalismo teológico.
- Permanecer firmes na verdade da Palavra de Deus.
Como Paulo conclui em 2 Coríntios 10:17 e 18: “Aquele, porém, que se gloria, glorie-se no Senhor. Porque não é aprovado quem recomenda a si mesmo, e sim aquele que o Senhor recomenda.”
Que possamos nos gloriar somente na verdade de Cristo e permanecer inabaláveis diante dos ataques ideológicos do nosso tempo.
Felippe Amorim, apresentador da Rede Novo Tempo de Comunicação
Referências
1 Oliver Barclay, Mente Cristã (São Paulo: Cultura Cristã, 2010), p. 126.
2 Paul Kurtz, What Is Secular Humanism? (Amherst, NY: Prometheus Books, 2007).
3 Manifesto Humanista I (1933), Manifesto Humanista II (1973) e Declaração Humanista Secular (1983).
4 Paul Kurtz, não apenas na obra analisada, mas também nos Manifestos Humanistas I e II (1933 e 1973) e na Declaração Humanista (1983), tenta impor à religião – especialmente ao cristianismo – a marca de ser antirracional, anticientífica e desrespeitosa quanto à dignidade humana. Contudo, um estudo histórico sério do cristianismo conduz a conclusões exatamente opostas às de Kurtz. O cristianismo é um dos grandes movimentos históricos que mais promoveram a razão, a ciência e a dignidade humana. Para um aprofundamento nesse tema, recomendo a leitura do livro What If Jesus Had Never Been Born?, de Jerry Newcombe e D. James Kennedy.
5 Norman L. Geisler, Is Man the Measure? An Evaluation of Contemporary Humanism (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1988).
6 James Strong, Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong (Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2002).
7 Richard Niebuhr, Cristo e a Cultura (Rio de Janeiro: Paz e Vida, 1967).
