A terceira carta de João é o menor documento do Novo Testamento. Embora contenha mais versículos (15) do que a segunda carta de João (13), possui menos palavras no original grego: 219 contra 245. Ainda assim, esse pequeno texto sagrado aborda uma das questões mais profundas e desafiadoras enfrentadas pela igreja ao longo da história: o orgulho de membros e líderes que agem como se fossem os donos da igreja.
Refletindo sobre esse tema, o comentarista Warren Wiersbe escreveu: “Ao que parece, muitas igrejas têm membros que insistem em ser os ‘mandachuvas’ e em fazer tudo do seu modo”.1 Comparando esse tipo de comportamento ao de ditadores, Wiersbe acrescenta que, quando “a igreja tem um ditador de plantão, os conflitos são inevitáveis”.2
Ditador? Em uma igreja? À primeira vista, parece um exagero. Mas, infelizmente, é algo mais comum do que se imagina. Sempre que o “cetro do poder” é empunhado no lugar da toalha do serviço – como aquela que Jesus usou no cenáculo –, a liderança cristã se desfigura e dá lugar a disputas, divisão e dor.
Nesse cenário, a terceira carta de João apresenta dois perfis de liderança radicalmente opostos, representados nas atitudes e decisões de duas personalidades: Gaio e Diótrefes. É o que veremos neste artigo.
O modelo Gaio
O primeiro modelo de liderança apresentado na carta é o de Gaio, o destinatário principal das orientações do apóstolo João. Antes de analisarmos suas qualidades, é importante observar que esse nome aparece em outros contextos no Novo Testamento. Ao que tudo indica, “o nome Gaio era muito comum entre os romanos. O Novo Testamento faz referência a três homens que possuíam esse nome: Gaio, de Corinto (1Co 1:14; Rm 16:23), Gaio, da Macedônia (At 19:29), e Gaio, de Derbe (At 20:4)”.3
Embora não haja evidência de que o Gaio mencionado em 3 João seja um desses três, é possível perceber algumas semelhanças entre ele e o “Gaio, de Corinto”. Este último foi uma das poucas pessoas batizadas pessoalmente por Paulo naquela cidade (1Co 1:14). Além disso, hospedou o apóstolo em sua casa – e é provável que a própria igreja de Corinto se reunisse ali (Rm 16:23). Considerando que há uma forte possibilidade de que a epístola aos Romanos tenha sido escrita “durante a estada de três meses de Paulo em Corinto, na terceira viagem missionária (At 20:1-3)”,4 é plausível concluir que ele a redigiu da casa de Gaio – razão pela qual agradeceu sua hospitalidade na conclusão da carta.
Ainda que não seja possível afirmar com certeza que se trata da mesma pessoa, apenas com as características reveladas na terceira carta de João já é possível reconhecer em Gaio um modelo de liderança digno de atenção. O “amado Gaio” (3Jo 1:1) era alguém profundamente estimado por João (v. 2) e cuja vida refletia um testemunho coerente com a verdade do evangelho (v. 3).
Gaio se destacava pelo cuidado com a igreja e, especialmente, com os pregadores itinerantes (v. 5), demonstrando esse zelo não apenas por meio da hospitalidade (v. 8), mas também com provisões materiais e financeiras (v. 6). A palavra grega usada por João, propempõ, indica esse apoio prático: “ajudar na viagem de alguém.”5
O apóstolo João também deixa claro que as ações de Gaio não derivavam de um cargo formal, de ambições pessoais ou estratégias manipuladoras, mas sim de um amor genuíno pela causa do evangelho (v. 6). Foi esse cuidado despretensioso e amor fraternal que levou João a afirmar que, ao agir assim, eles se tornavam “cooperadores da verdade” – expressão que, em outros contextos, é traduzida como “ministro” (1Ts 3:2).
Ao refletir sobre isso, lembro-me de uma visita que recebi do secretário ministerial da Associação local, quando eu ainda servia como obreiro bíblico em um determinado distrito. Foi nessa ocasião que Deus plantou no meu coração a semente do ministério pastoral, usando as seguintes palavras do pastor: “Infelizmente, temos muitos funcionários. Precisamos de mais pastores que amem essa igreja.” Sem dúvida, Gaio era alguém que amava a igreja e a missão que lhe havia sido confiada.
Quando se fala em liderança cristã e nas competências necessárias para liderar o povo de Deus, alguns textos das Escrituras servem como referência para a escolha desses líderes. Um desses critérios é o perfil do “bispo irrepreensível”, descrito em 1º Timóteo 3:2 a 7.
Ao analisarmos o caráter e o comportamento de Gaio à luz desse padrão, o resultado é altamente positivo. Ele era alguém “temperante, sóbrio, modesto, hospitaleiro”, “inimigo de contendas, não avarento” e com um “bom testemunho dos de fora”. Podemos afirmar que Gaio era um líder que não tinha “de que se envergonhar” (2Tm 2:15).
O modelo Diótrefes
De forma contrastante, João volta sua atenção para outro líder daquela mesma igreja: um homem chamado Diótrefes. Não há nenhuma outra menção a esse nome em todo o Novo Testamento. Segundo Simon Kistemaker: “Sabemos pouco sobre Diótrefes. Seu nome significa ‘filho adotivo de Zeus’, o que sugere que ele seja de descendência grega. Ele é um líder na igreja local e, de modo egoísta, tira vantagem de sua posição de liderança. Ele gosta de ser o primeiro. Em vez de servir à igreja, ele se recusa a reconhecer a autoridade superior. Ele próprio deseja governar a igreja. Ele age de maneira contrária à instrução de Jesus: ‘Quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós, será vosso servo’ (Mt 20:26, 27).”6
A primeira informação que temos sobre Diótrefes é que ele gostava de “exercer a primazia” (v. 9). Wiersbe observa que “a motivação de Diótrefes era o orgulho. Em lugar de dar primazia a Jesus Cristo (Cl 1:18), ele a tomava para si”.7 Percebe-se que esse líder estava dominado por “ambições profanas. Aspirava a ser o primeiro por causa da posição e não pelo bem que podia realizar”.8
Infelizmente, hoje muitos líderes de igrejas também estão apenas interessados no benefício da posição e não no serviço ao Senhor. Enxergam pessoas e oportunidades apenas como degraus para sua (enganosa) ascensão. Enganosa porque “antes da ruína vem a soberba, e o espírito orgulhoso precede a queda” (Pv 16:18).
Esse é um problema grave que frequentemente é varrido para debaixo do tapete. Em um mundo de valores invertidos – onde impera a lógica da “seleção natural”, na qual o mais forte permanece e o mais fraco é descartado –, a igreja, por vezes, tem coado um mosquito e engolido um camelo (Mt 23:24). O apóstolo Tiago adverte que esse tipo de comportamento “não é a sabedoria que desce lá do alto; pelo contrário, é terrena, animal e demoníaca. Pois, onde há inveja e rivalidade, aí há confusão e toda espécie de coisas ruins” (Tg 3:15, 16).
Comentando sobre o processo de conversão no ser humano, Ellen White observou: “Desprezamos o alcoólatra e dizemos-lhe que seu vício vai excluí-lo do Céu, enquanto o orgulho, o egoísmo e a cobiça geralmente não são condenados. Mas esses pecados são especialmente ofensivos diante de Deus, pois contrariam a benevolência de Seu caráter e o amor desinteressado que é a própria atmosfera do Universo não caído. Aquele que comete um pecado grave pode se sentir envergonhado e necessitado da graça de Cristo. O orgulhoso, porém, não sente essa necessidade; por isso, fecha o coração para Cristo e as bênçãos infinitas que Ele veio conceder.”9
Voltando a atenção para Diótrefes, sua lista de rebeldia ainda continua. Ele é descrito como alguém que não se submetia à autoridade de João (v. 9) e ainda proferia “palavras maliciosas” contra o apóstolo e outros líderes da igreja. Como se isso não bastasse, Diótrefes negava hospitalidade aos evangelistas itinerantes e impedia que os demais membros da igreja os recebessem. Mais grave ainda: expulsava da comunhão aqueles que ousavam agir de forma diferente (v. 10), como uma espécie de disciplina distorcida e autoritária.
Que situação deplorável! Esse tipo de postura é um inimigo antigo que, como um câncer, corrói a igreja e a vida de muitos cristãos sinceros. Somente no “tribunal de Cristo descobriremos quantos corações foram contristados e quantas igrejas foram destruídas por causa dos ‘ministérios’ arrogantes de pessoas como Diótrefes”.10
Conclusão
Talvez você seja um líder experiente ou alguém recentemente escolhido pela igreja para exercer uma posição de influência. Seja qual for o caso, todos nós nos encontramos na encruzilhada de 3 João. Em um contexto marcado pela busca de méritos e pela ânsia de projeção pessoal, muitos tentam encurtar o caminho da humildade e do serviço, tomando o atalho da autossuficiência.
Essa postura não é exclusividade da era das inteligências (e dos egos) artificiais. Os próprios discípulos de Jesus também pensavam assim. Mas Cristo fez questão de deixar claro o que Ele, o único “Cabeça da igreja”, espera daqueles que são chamados a liderar Seu povo: “Mas entre vocês não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vocês, que se coloque a serviço dos outros; e quem quiser ser o primeiro entre vocês, que seja servo de todos. Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a Sua vida em resgate por muitos” (Mc 10:43-45).
Que o contraste entre Gaio e Diótrefes tenha ajudado você a enxergar a diferença entre uma liderança servidora e uma ditadura gananciosa. E que, pelo batismo diário do Espírito Santo, você seja para a igreja de Cristo o cumprimento da promessa feita por Deus ao profeta Jeremias: “Darei a vocês pastores segundo o Meu coração, que os apascentem com conhecimento e com inteligência” (Jr 3:15).
Allan Jones, pastor em Vitória, ES
Referências
1 Warren W. Wiersbe, Comentário Bíblico Expositivo: Novo Testamento (Santo André, SP: Geográfica, 2008), v. 6, p. 695.
2 Wiersbe, Comentário Bíblico Expositivo, v. 6, p. 696.
3 Hernandes D. Lopes, 1, 2, 3 João – Comentários Expositivos Hagnos: Como ter garantia da salvação (São Paulo: Hagnos, 2010), p. 251.
4 Francis D. Nichol (org.), Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), v. 6, p. 509.
5 Francis D. Nichol (org.), Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), v. 7, p. 768.
6 Simon Kistemaker, Tiago e Epístolas de João (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), p. 528, citado por Lopes, 1, 2, 3 João – Comentários Expositivos Hagnos, p. 260, 261.
7 Wiersbe, Comentário Bíblico Expositivo, v. 6, p. 695.
8 Nichol (ed.), Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, v. 6, p. 769.
9 Ellen G. White, Caminho a Cristo (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2024), p. 20, 21.
10 Wiersbe, Comentário Bíblico Expositivo: Novo Testamento, v. 6, p. 696.
