Jonatas Leal
Entre a interpretação apocalíptica e a especulação política
A volta de Jesus é nossa bendita esperança (Tt 2:13). Ela não está só no nome denominacional, mas também no DNA da Igreja Adventista, e pode ser considerada “uma doutrina cardinal das Escrituras”.1 Contudo, essa mesma esperança tem se tornado uma armadilha para aqueles que, na tentativa de estabelecer um provável cenário político e religioso para os eventos finais, acabam criando uma expectativa de tempo na forma de uma narrativa que a hora da volta de Jesus finalmente chegou. Embora não haja dúvida da boa intenção dos que estão tentando decifrar o exato cenário apocalíptico, essas especulações falham em lidar com a insistência bíblica de que Jesus virá na hora em que as pessoas não esperam. Além disso, eles acabam usando uma motivação equivocada para criar um reavivamento espiritual, levando o povo de Deus a focalizar o motivo errado. Na falha dessas expectativas, o resultado final é incredulidade, desânimo espiritual e, às vezes, opróbio sobre a igreja.
Normalmente, eventos como a escolha de um novo papa, as eleições norte-americanas ou qualquer outro acontecimento que abala a dinâmica geopolítica mundial acabam potencializando o surgimento de novas especulações e narrativas em que os eventos finais se “encaixam”. Em nossos dias, as mídias sociais oferecem uma plataforma para a propagação dessas especulações.
A vez agora é de um presidente norte-americano católico que, aliado a um papa progressista, levará avante uma agenda mundial que busca resolver o problema do aquecimento global com o estabelecimento de um dia de conscientização semanal em nível global, nesse caso, o domingo. Junta-se a isso os novos mecanismos de controle criados durante uma pandemia mundial, e aí o cenário está pronto para a assinatura do decreto dominical. Embora eu deseje que essa hipótese esteja correta, quero apontar três razões pelas quais a criação desses cenários apocalíticos não é útil para a fé adventista.
Cenário equivocado
Ellen White afirma em O Grande Conflito que o decreto dominical de âmbito mundial terá sua origem na pressão popular e não em qualquer estratagema político da esquerda ou direita. Ela escreveu: “A corrupção política está destruindo o amor à justiça e a consideração para com a verdade. E mesmo na livre América do Norte, governantes e legisladores, a fim de conseguir o apoio do público, cederão ao pedido popular de uma lei que imponha a observância do domingo”.2 Além disso, “a fim de se fazerem populares e conquistarem a simpatia do povo, os legisladores hão de ceder ao desejo deste, de obter leis dominicais”.3
Vivendo nos Estados Unidos durante a era Trump, tive a oportunidade de ver de perto o nível de polarização política que criou abismos intransponíveis entre as pessoas.4 Somente uma crise de proporções apocalípticas será capaz de unir os lados do espectro para uma ação conjunta dessa magnitude. Deixando de lado a política norte-americana, imagine o que será necessário para unir muçulmanos, judeus e cristãos em torno de um dia comum de guarda! É improvável que qualquer aliança política seja capaz de fazer isso. Assim, a ideia de que a pressão popular será o fator-chave no estabelecimento de um decreto dominical é uma pista de que apenas eventos cataclísmicos que ponham em xeque a própria existência humana levarão a essa união.
Assim, fica evidente que a progressão dos eventos finais não é uma questão meramente política. Qualquer especulação que os faça depender de alianças governamentais ligadas a indivíduos ou ideologias partidárias está fadada ao fracasso. É bem provável que se Jesus não voltar antes do fim do governo Biden ou da morte do papa Francisco, outras narrativas serão criadas, alimentando novamente as massas sedentas por teorias que “revelem” o que acontecerá no futuro.
No fim, o catalizador dessas especulações é tão antigo quanto a curiosidade humana sobre o porvir. Cristo enfatizou que a profecia bíblica não foi dada para satisfazer nosso interesse pelo futuro, mas para que tenhamos confiança em Deus (ver Jo 13:19; 14:29). Expectativas fracassadas fazem exatamente o contrário. De fato, as palavras de Jesus implicam que “cumprimentos proféticos são melhor reconhecidos depois que eles acontecem, e não antes”.5 A história da interpretação apocalíptica deveria ser um alerta para nós, pois “vez após vez interpretações que faziam perfeito sentido em certo ponto no tempo provaram ser completamente equivocadas quando o verdadeiro tempo de cumprimento chegou”.6
Motivação errada
Outro efeito colateral indesejado da criação de cenários do tempo do fim é a promoção de um reavivamento com base no medo. Em meio à pandemia, é comum as pessoas dizerem: “Precisamos orar mais, pois o fim dos tempos chegou!” Concordo com a primeira parte da frase. De fato, precisamos orar mais. No entanto, o problema está na segunda parte. Se a pandemia terminar, ou for controlada nos próximos meses, é provável que a motivação para que oremos mais também acabe. Isso exemplifica, de modo formidável, o problema de ser motivado pelo medo. Quando o medo passa, a motivação se vai com ele. De fato, “há uma drástica disparidade entre essas duas entidades”.7 Em certo sentido, qualquer motivação por medo envolve certo egoísmo, pois, assim, agimos para nos livrar de algum tipo de perigo. Essa motivação é centralizada na sobrevivência do eu.
Ellen White provê insight valioso sobre isso. Ela escreveu: “A brevidade do tempo é apresentada com insistência como um incentivo para buscar a justiça e fazer Cristo o nosso amigo. Isso não deveria ser o grande motivo conosco; pois cheira egoísmo. Será necessário que os terrores do dia de Deus sejam mantidos diante de nós a fim de compelir-nos à ação correta? Não deveria ser assim. Jesus é cativante. Ele é cheio de amor, misericórdia e compaixão. Ele quer ser nosso amigo, andar conosco por todos os caminhos difíceis da vida.”8
É apenas o amor de Cristo que deve nos motivar à ação (2Co 5:14). Esse amor é a única força positiva que nos impulsiona a agir.9 Quando agimos por causa de Cristo, nossa motivação espiritual não depende dos noticiários. Não são os movimentos políticos e ideológicos que devem pautar nosso reavivamento, mas a contemplação diária do caráter amoroso de Jesus. Quando contemplarmos o Mestre e seguirmos Seus passos, imitando-O em nossa vida e refletindo Seu amor para com a humanidade, o mundo será abalado, e haveremos de experimentar o poder do Espírito Santo para cumprir a missão (ver At 2).
Foco distorcido
Especulações apocalípticas tiram o foco das pessoas da missão que a igreja tem a cumprir. Antes de Sua ascensão, Cristo foi abordado pelos discípulos com a pergunta: “Será este o tempo em que o Senhor irá restaurar o reino a Israel?” (At 1:6). A resposta de Jesus é muito esclarecedora. Em primeiro lugar, Ele relembra que esse conhecimento não compete aos discípulos (v. 7). Em seguida, Ele redireciona os discípulos para o foco principal: a missão. Cristo disse que os discípulos seriam capacitados para cumprir a missão até os confins da terra (v. 8). Seu foco deveria ser a missão e não o tempo de Deus.
Por isso, “especular sobre tempos e datas é inútil. O retorno do Senhor não gira em torno dessa especulação, mas em torno dos propósitos de Deus, e esses propósitos abarcam a salvação do mundo. A rota mais segura para a parousia é a evangelização do mundo”.10 No fim, Deus não levantou Sua igreja para a manutenção de uma expectativa, mas para o cumprimento de uma missão: pregar o evangelho. Sendo que a missão é a “expressão da própria natureza da igreja”,11 esse deve ser o nosso foco.
Tempo de prontidão
As observações acima não deveriam conduzir pessoas à complacência espiritual ou à ideia de que a urgência da volta de Jesus deve ser minimizada. Pelo contrário, em face da finitude de nossa existência e também de não sabermos quando será o fim do mundo, o senso iminente da volta de Cristo deve ser constante em nossa jornada espiritual. Quando essa urgência está conectada a movimentos políticos e “cenários apocalípticos”, ela é seriamente ameaçada. Devemos lembrar que os primeiros cristãos aguardavam com expectativa a volta de Jesus, e nós devemos seguir os seus passos (1Ts 4:15-17; 1Jo 2:18).
Os discípulos abordaram Jesus com a pergunta: “Diga-nos quando essas coisas vão acontecer e que sinal haverá da Sua vinda e do fim dos tempos?” (Mt 24:3). Eles queriam algo que os alertasse que o fim estava próximo. Cristo falou de coisas que deveriam acontecer antes do fim do mundo (v. 6-8), mas que ainda não seria o fim. Ele também mencionou que o fim não viria antes da pregação do evangelho a todo mundo (v. 14). Mas o único sinal que Ele realmente deu para os discípulos no monte das Oliveiras está no
verso 30: “Então, aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem; todos os povos da terra se lamentarão e verão o Filho do Homem vindo sobre as nuvens do céu, com poder e muita glória.”12 É como se Jesus dissesse que quando Ele realmente estivesse voltando, eles saberiam. Ele terminou Seu discurso com três parábolas: a dos servos fiel e infiel (v. 45-51); a das dez virgens (Mt 25:1-13) e a dos talentos (v. 14-30). Qual é o elemento comum em cada uma delas? A iminência da vinda do reino. Nesse sentido, as parábolas ilustram o ponto-chave do sermão profético: vigilância (Mt 24:42, 44).
Jesus frustrou a curiosidade dos discípulos sobre o tempo exato de Sua vinda. Especulações políticas e a busca de um possível cenário apocalíptico no sentido do que desencadeará a crise final são manifestações da antiga curiosidade dos discípulos.13 Escutemos a admoestação de Cristo, deixando o tempo com Deus, e abracemos, com ardor, o que realmente está em nossas mãos: a preparação individual e a missão mundial. Lembremos do conselho de Paulo: “Já é hora de despertarem do sono, porque a nossa salvação está agora mais perto do que quando no princípio cremos” (Rm 13:11).
Referências
1 Raoul Dederen, Handbook of Seventh-Day Adventist Theology, electronic edition (Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing Association, 2001), v. 12, p. 893.
2 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 592.
3 Ellen G. White, Testemunhos Seletos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2008), v. 2, p. 150.
4 O fenômeno da polarização política na América do Norte tem sido explorado em publicações recentes. Por exemplo, James E. Campbell, Polarized: Making Sense of a Divided America (Princeton, NJ: Princenton University Press, 2016).
5 Jon Paulien, The Deep Things of God (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2004), p. 56.
6 Paulien, The Deep Things of God, p. 59.
7 Daniel L. Akin, 1, 2, 3 John, v. 38, The New American Commentary (Nashville, TN: Broadman & Holman Publishers, 2001), p. 186.
8 Ellen G. White, Exaltai-O! (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1992), p. 99.
9 Ralph P. Martin, 2 Corinthians, Ralph P. Martin, Lynn Allan Losie, e Peter H. Davids (eds.), v. 40, Word Biblical Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2014), p. 286.
10 John B. Polhill, The New American Commentary (Nashville, TN: Broadman & Holman Publishers, 1992), v. 26, p. 86.
11 Gorden R. Doss, Introduction to Adventist Mission (Silver Springs, MD: Institute of World Mission/General Conference of the Seventh-Day Adventists, 2018), p. 81.
12 Craig Bloomberg, The New American Commentary (Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1992), v. 22, p. 362.
13 Jon Paulien, The Deep Things of God, p. 59.
Jonatas Leal, professor de Teologia na Faculdade Adventista da Bahia